versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.12 Rio de Janeiro dez. 2019 Epub 25-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182412.25542019
Desde o início da epidemia de HIV/AIDS, nos anos 80, foram notificados mais de 900 mil casos de HIV no Brasil e, durante este período, em diferentes governos, construiu-se uma política de Estado voltada para o controle do HIV, mesmo com diferentes ênfases1,2. O objetivo deste artigo é refletir sobre as relações entre a crise atual e a resposta brasileira a esta epidemia. Esta crise é polifônica e marcada por querelas de poder próprias dos agentes num determinado campo3, configurando-se como fenômeno multidimensional com pelo menos três interrelações: social, política e econômica. Não se pode ignorar, ainda, que, se ampara em questões globais e especificidades locais.
Do ponto de vista econômico, há uma das maiores crises cíclicas no processo de acumulação capitalista, agravada por um mundo multipolar e financeiro-especulativo. Temporalmente, propomos 2013 como ponto de significância da crise, em um momento em que o Brasil ainda sustentava indicadores socioeconômicos positivos, apesar das desigualdades. As políticas não-regressivas posteriormente foram sustadas pela crise política, resultando na interrupção da redução sistemática da pobreza e no maior alijamento do acesso a bens e serviços essenciais, dos quais o Brasil vinha se afastando.
Paralelamente, há um fomento da desconfiança na política como meio de resolução de conflitos. Tal movimento se sustenta – e é instrumentalizado – a partir da publicização diuturna do patrimonialismo de alguns agentes do Estado brasileiro, sob a insígnia da corrupção e tem suporte judicial e midiático; o objetivo é recuperar a hegemonia de alguns grupos nos órgãos de Estado e vulnerabilizar políticas públicas e forças sociais progressistas. Por fim, no âmbito social, acrescenta-se a (re)produção de antagonismos e afetos políticos de raiva e medo provocando uma crise simbólica caracterizada por fissuras nas relações interpessoais e ameaças à alteridade, que deixam turvos os entendimentos sobre a distopia que vivemos e como enfrentá-la.
Neste cenário, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi afetado por medidas de austeridade fiscal, destacando-se a aprovação de uma emenda à constituição, a EC-95, limitando investimentos em saúde e educação por 20 anos, gerando perdas acumuladas e transformando o subfinanciamento do sistema em desfinanciamento4. Este fato contribui para a redução da oferta de serviços, a demissão dos profissionais, os apagões de insumos e o desinvestimento em Ciência & Tecnologia, justamente quando a população perde emprego e renda e passa a necessitar ainda mais da proteção social.
Estamos na quarta década da epidemia de HIV e a complexidade das dimensões envolvidas a tornaram metáfora dos tempos modernos, (re)atualizando esta “epidemia de significados”5. A narrativa hegemônica da resposta ao HIV no Brasil foi construída a partir da década de 80 por uma miríade de vozes da sociedade civil, profissionais da saúde, agentes públicos e artistas em torno da solidariedade6. Trata-se de uma narrativa inclusiva, pautada no reconhecimento da diversidade, na laicidade do Estado, no fortalecimento da democracia, assentada no SUS, com a garantia de direito à prevenção e assistência às pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA), e que começou a se materializar antes da implantação do SUS, sendo, também, tributária do processo vivenciado no país naquela época e do movimento da reforma sanitária2.
As políticas de prevenção pautaram-se na parceria dos governos com Organizações Não Governamentais (ONGs), destacando-se a metodologia de educação entre pares, na produção de campanhas oficiais educativas e de diversos materiais destinados a populações específicas, construídos em diálogo com os movimentos sociais1,7-10. A introdução dos conceitos de “sexo mais seguro” e “redução de danos” foram pedras angulares para aproximar os sujeitos vulnerabilizados do cuidado com a sua saúde. Um momento de inflexão na política brasileira aconteceu em 1996, com a aprovação de lei que assegurou a distribuição universal de terapia combinada, contribuindo para mitigar os preconceitos e a associação do HIV com a morte. Nos anos iniciais da década atual, as ações de assistência e prevenção a partir da incorporação tecnológica e da extensão do tratamento a todas as pessoas vivendo com HIV se destacaram.
A resposta brasileira à epidemia de HIV foi uma das grandes realizações no contexto do SUS. A crise instalada, no entanto, produz ameaças que já repercutem sobre ela e que poderão ter efeitos ainda mais significativos. Há, por exemplo, consensos estabelecidos que as políticas de austeridade têm impactos deletérios nas doenças infecciosas, o que dificulta o seu enfrentamento11.
O papel do SUS na garantia dos direitos das PVHA é inquestionável, sendo o sustentáculo para o acesso ao tratamento gratuito conquistado pela luta dos movimentos sociais aliado às evidências científicas. Esta garantia vai ao encontro de que a saúde é um direito humano inalienável, tal como grafado sob a noção abrangente de seguridade social na Constituição de 1988. Contrariamente, a fragilização ou redução de políticas sociais de Estado e o incentivo à sua privatização que vem se implantando desde o golpe parlamentar de 201612 – processo que depôs a Presidenta eleita Dilma Rousseff – produz constrangimentos orçamentários sobre as políticas de saúde e, no caso do HIV, reduzem as possibilidades de atenção integral.
Os desafios para o enfrentamento ao HIV/AIDS no Brasil não se restringem exclusivamente à dimensão econômica. Há um aspecto importante do ponto de vista da “agenda de valores”: além da instrumentalização da crise política, fomentaram-se anseios difusos e construíram-se “anti-agendas” que passaram a questionar categorias como o “gênero”, a “diversidade sexual” e a “redução de danos”, historicamente centrais à prevenção do HIV no Brasil13,14. O combate à “ideologia de gênero” e a proposta da “escola sem partido” vêm promovendo uma caçada, em termos inquisitoriais, a teóricos internacionalmente reconhecidos, como Paulo Freire e Judith Butler.
A eleição presidencial de 2018, em dois turnos, ocorreu em meio à amplificação da crise e foi marcada por uma disputa de narrativas. De um lado, aquelas dos direitos humanos caracterizadas pela ampliação do acesso à educação e à laicidade do Estado, que vinham consolidando a resposta brasileira ao HIV. Por outro, discursos obscurantistas de extrema direita que forjaram, nas representações coletivas, ataques à plataforma do principal candidato progressista - através de ficções abundantes nos grupos de Whatsapp e demais redes sociais como os emblemáticos kit gay e mamadeira de piroca15. A própria ciência foi oposta a noções como “família” e “bons costumes”, encontrando dentro do primeiro escalão do governo eleito a sustentação de posições anti-seculares que lamentaram, por exemplo, a perda de espaço da igreja e do criacionismo para a teoria da evolução.
Mesmo nos espaços institucionais de formulação e implementação de políticas já constituídos, como o Ministério da Saúde, voltou-se a questionar, após as eleições, as políticas de prevenção e controle da epidemia. Um exemplo é a campanha de prevenção de carnaval de 201916 que suprimiu qualquer referência às pessoas transexuais, gays e outros homens que fazem sexo com homens, especialmente afetadas pela epidemia. Outro é a defesa de que a sexualidade possa ser vista como assunto a ser tratado fundamentalmente no âmbito familiar17. Na Política Nacional sobre Drogas, recentemente publicada, a “redução de danos”, uma das matrizes do trabalho de prevenção ao HIV, é substituída pela “abstinência”, medida saudada pelas mais conservadoras corporações do campo da saúde mental18.
Tal guinada conservadora também teve como consequência prática, para além do debate nas plataformas oficiais, a censura a materiais especializados na área de HIV/AIDS, como uma cartilha de prevenção voltada à população de transexuais e travestis e outra dirigida a adolescentes19. Ambos os materiais foram produzidos a partir de consensos de especialistas sobre o papel das intervenções educativas em gênero e sexualidade e do combate a toda sorte de discriminações na maior adesão a estratégias de prevenção20-24.
Além do debate público que se sucedeu – evocando temas como sexo e prevenção – deu-se o fim do Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, HIV/AIDS e Hepatites Virais no Ministério da Saúde, tal como o conhecíamos25. O próprio acesso universal aos antirretrovirais, que parecia inquebrantável, pode estar sendo ameaçado26. Não se pode negligenciar os desdobramentos disso na saúde das PVHA que necessitam do direito aos antirretrovirais para continuar vivendo - e não morrendo - com HIV/AIDS.
Mais que recuperar elementos que (re)alimentem o que Herbert Daniel27 chamou de vírus ideológico, referindo-se a abordagens morais do HIV que discriminam as PVHA – o que já seria altamente danoso – esses totens servem como pano de fundo para implementação de uma orientação político-econômica neoliberal que ameaça o Estado brasileiro e, por conseguinte, a capacidade do país de seguir implementando uma resposta efetiva à epidemia de HIV.
A participação da sociedade civil foi alvo de ataques que culminaram na extinção de centenas de conselhos participativos no âmbito do executivo federal mesmo diante dos protestos de ativistas28. Como vimos, uma ciência socialmente referenciada, a participação ativa da sociedade civil e a incorporação de temas como gênero e sexualidade construíram uma amálgama reconhecida internacionalmente como fundamental na resposta à epidemia. Neste horizonte, as anti-agendas que proporcionaram o triunfo eleitoral agora ameaçam uma política de Estado na contramão de toda a expertise acumulada sobre o papel da circulação de informações e da produção científica e tecnológica na redução da vulnerabilidade à infecção, adoecimento e morte por HIV29,30. Não se pode perder de vista que os dados epidemiológicos recentes indicam o aumento expressivo da infecção pelo HIV entre jovens de 15 a 24 anos nas últimas duas décadas, sendo gays e outros homens que fazem sexo com homens os mais afetados31.
Considerando que uma das tônicas da epidemia durante a passagem do século foi a sua pauperização, evidenciando a incidência de desigualdades sociais nas novas infecções32, constranger as políticas de seguridade social significa atingir frontalmente as pessoas vivendo com HIV mais vulnerabilizadas. Foi o caso, por exemplo, da suspensão dos benefícios previdenciários e endurecimento dos critérios para sua concessão que afetou milhares de pessoas entre as quais muitas PVHA. O movimento social encampou o Projeto de Lei 188/2017, que dispensava da reavaliação pericial de pessoas aposentadas por invalidez em decorrência da Aids e que recebeu veto presidencial, derrubado posteriormente pelo Parlamento – o que, apesar do resultado, revela novos desafios à vida das PVHA, ainda marcada pela discriminação33.
A crise e o desfinanciamento do SUS não necessariamente repercutem de “outro modo” na política de HIV quando consideramos outras áreas da seguridade social, mas podem servir como catalisadores para a consolidação de retrocessos civilizatórios como a legitimação do fim da dispensação de medicamentos e serviços públicos para o tratamento do HIV e suas coinfecções. Tal movimento pode ameaçar não apenas o aprimoramento da política de HIV, mas a sua própria existência e essa, talvez, seja uma das dimensões mais singulares da repercussão da crise sobre a política de HIV.
A reforma sanitária brasileira, que teve no SUS sua materialização jurídico-institucional, foi forjada não apenas com uma concepção ampla de saúde, mas também de democracia e direitos humanos, passando pela conformação de políticas de participação e redes de atenção intersetoriais em uma perspectiva abrangente. Áreas como a Saúde Mental e HIV/AIDS revelam de modo agudo esta perspectiva na medida em que convocam posicionamentos ético-políticos de distintos atores sociais ao mesmo tempo que se constituem em focos de disputa, desafios e inovações no âmbito da atenção à saúde.
Se é verdade que a instituição do SUS foi central na construção de uma resposta nacional à epidemia de HIV, tal resposta enriqueceu, ainda que com tensões, ideários desejados no processo de luta da reforma sanitária, em parte através de estratégias e instâncias mais amplas que as de controle social formal existente no SUS. É por isso que o campo do HIV, em conjuntura de crise marcada por incerteza, desamparo, ódio social, conservadorismo e redução do papel do Estado, é afetado pelo desmonte mais geral do SUS, mas também por suas conexões com temas como gênero, sexualidade e ativismo político. Ao ter essa amplitude de pontes, sobre este campo podem incidir linhas de força de modo singular, vigoroso e antecipado na direção da sua destruição, mas também pode ser um dos campos oportunos e vitais de produção de resistências para si e para o SUS.
O objetivo deste artigo foi problematizar possíveis implicações da crise atual no Brasil para a política de enfrentamento ao HIV/AIDS. Esta crise, de múltiplas dimensões, resulta de uma combinação de processos que têm se dado em escala mundial (notadamente envolvendo o capital internacional, os estados nacionais e as democracias capitalistas) e nacional (crise econômica e ajuste fiscal - com efeitos sobre a vida das pessoas - acoplados com (r)emergência de forças conservadoras e emergência de novos métodos políticos, e com o esgarçamento das relações sociais materializados na disseminação de práticas de ódio e intolerância).
Neste cenário, a problemática do HIV/AIDS, pelas conexões simbólicas e práticas com temas alvo de disputas (no campo do gênero, da sexualidade, dos direitos humanos e dos ativismos políticos), apresenta-se com potencial de ser impactada diretamente pela crise simbólica, além de ser afetada pelo efeito das demais dimensões da crise no SUS. De fato, diferentes acontecimentos e iniciativas – no campo societário e governamental, dentro e fora do SUS – têm incidido de maneira feroz sobre aspectos centrais ao enfrentamento do HIV/AIDS, ampliando as possibilidades de estigmas, preconceitos, medos e violências, colocando em risco a continuidade de ações mundialmente reconhecidas e diminuindo as possibilidades de respostas adequadas ao perfil atual da epidemia no Brasil.
Este quadro requer dos atores comprometidos com a cidadania e a justiça social, ao mesmo tempo, um olhar agudo sobre a construção técnica, política e social da resposta brasileira ao HIV e sobre as singularidades da conjuntura atual. Mas também a criação de novas estratégias de intervenção que levem em consideração que a resposta à epidemia não pode se restringir ao enfrentamento biomédico e que o Estado não deve ser a única instância envolvida, apesar de sua importância estratégica34.