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A saúde das professoras, os contornos de gênero e o trabalho no Ensino Fundamental

A saúde das professoras, os contornos de gênero e o trabalho no Ensino Fundamental

Autores:

Mary Yale Rodrigues Neves,
Jussara Cruz de Brito,
Hélder Pordeus Muniz

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.35 supl.1 Rio de Janeiro 2019 Epub 15-Abr-2019

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00189617

Mesmo reconhecendo um avanço na produção de conhecimento no que tange à visibilidade do trabalho como prática sexuada 1, observa-se que a compreensão desta questão como transversal nos estudos dos mundos do trabalho e especificamente no campo da Saúde Coletiva 2 ainda não se encontra suficientemente sedimentada. Dessa forma, este texto se propõe a refletir como a convocação da ótica das relações sociais de gênero e da divisão sexual do trabalho pode contribuir para estudos mais pertinentes acerca da atividade de trabalho e saúde de professoras de escolas do Ensino Fundamental, trabalho desenvolvido majoritariamente por mulheres 3,4,5,6.

O conceito de relações sociais de gênero permite colocar as relações de poder entre os sexos em análise, assinalando que a persistente divisão desigual e hierárquica do trabalho existente entre homens e mulheres é um problema que exige atenção, tendo em vista possíveis mudanças 1,2,3. Além disso, como enfatiza Kergoat 7, as relações entre os sexos e as relações entre as classes não devem ser hierarquizadas, conferindo-se maior importância a uma delas. Tais relações não apenas coexistem: são coextensivas, isto é, elas se produzem e se reproduzem mutuamente. Ambas estruturam e estão presentes nas duas esferas de atividades: a doméstica e a profissional. Portanto, seria um equívoco desconsiderar a questão do trabalho e das relações de classe nos estudos que tratam da vida no âmbito familiar (por exemplo, em estudos sobre violência doméstica), bem como seria ignorar o problema da opressão das mulheres nas pesquisas que abordam o mundo da produção. A questão da consubstancialidade das relações sociais ilumina outro aspecto a ser considerado: há um cruzamento dinâmico do conjunto de relações sociais, pois cada uma delas imprime uma marca sobre as outras 7.

Observa-se historicamente que dentre as alternativas possíveis para determinados segmentos de classe do sexo feminino, a inserção no mercado formal de trabalho ocorrerá especialmente em profissões que guardam similaridades com a esfera doméstica. É o caso das atividades de “cuidados” e responsabilidades relativas à casa e aos familiares, que favorecerão a concentração de mulheres em determinados tipos de trabalho, como o magistério 3.

Feminização do trabalho docente

Frente à necessidade progressiva de expansão da rede de ensino brasileira, decorrente do processo de urbanização e industrialização em curso, verifica-se que os homens se retiram gradualmente no início do século XX do exercício da docência no Ensino Fundamental, que passa a ser considerado como “trabalho de mulher” 3,6. Contudo, o processo de feminização do magistério se deve não apenas à paulatina presença maciça das mulheres, mas também por se atrelar à certa maneira tida como feminina de percebê-lo e exercê-lo, sedimentando assim um determinado tipo de fazer 3,6.

Tornar-se professora, sobretudo da primeira fase do Fundamental, mais do que uma opção profissional, é percebido socialmente como uma possibilidade que a mulher, em geral, encontra para pôr em ação determinadas habilidades e competências que, por não serem adquiridas apenas em estabelecimentos formais, não são vistas como qualificações, mas como qualidades inerentes às mulheres, já que seriam naturalmente dedicadas, atenciosas, pacientes, afetuosas, carinhosas e abnegadas, atributos tidos como importantes no ato de educar as crianças 3,6. Observa-se, assim, que a coextensividade e a consubstancialidade das relações sociais se materializam na desqualificação simbólica e econômica do trabalho feminino 7.

Nessa direção, destaca-se a deterioração dos salários no magistério no contexto brasileiro, provocando a progressiva precarização das condições de vida das professoras. Ocupado incialmente por mulheres de classe média (após a saída gradativa dos homens), o magistério passou por profundas transformações em termos de origem de classe, sendo posteriormente exercido por aquelas oriundas das classes trabalhadoras 3,6.

A atividade de trabalho e saúde das professoras

Ao longo de várias pesquisas/intervenções realizadas por estes pesquisadores (de 1999 a 2017), procurou-se analisar as relações entre a atividade de trabalho e saúde de professoras da rede pública do Estado do Rio de Janeiro e do Município de João Pessoa (Paraíba), pela ótica das relações sociais de gênero e pelo ponto de vista da atividade 8,9. Com a perspectiva de compreender-transformar o trabalho, a vida e a saúde de docentes, partiu-se do pressuposto de que a construção de um saber sobre tal atividade, e da relação dela com a saúde, deve ser fruto de experimentações a serem desenvolvidas conjuntamente por pesquisadores profissionais e trabalhadoras, já que são elas que vivem a experiência da docência 6,10,11,12. Portanto, os conceitos de relações de gênero e de divisão sexual do trabalho foram ferramentas que dinamizaram esse trabalho conjunto, sendo mobilizados em debates e reflexões sobre a precarização do trabalho docente, que em parte é um reflexo do valor que é atribuído às atividades feminizadas de ensino. Conceitos-ferramentas que permitiram ainda um questionamento sobre o processo saúde-doença de professoras e sua desnaturalização 3,10,12.

Do mesmo modo, privilegiar o ponto de vista da atividade 8,9 possibilitou detectar que as trabalhadoras engendram cotidianamente um substancioso processo de reinvenção diante dos limites e da imposição do prescrito, das variabilidades e do acaso sempre presentes. Sob essas forças contraditórias, desenvolve-se um conjunto de acontecimentos que configura a vida no trabalho - uma luta sem tréguas para lidar com o sofrimento que o próprio trabalho provoca, afastar as doenças e procurar um mínimo de equilíbrio psicossomático (sempre instável).

Nas pesquisas efetuadas no Município de João Pessoa 6,12, focou-se, então, não somente os possíveis processos de adoecimento, mas também as vivências de prazer e sofrimento psíquico das professoras, a forma pela qual constroem/reconstroem o sentido do/no trabalho em condições tão adversas. A vivência delas em relação à doença se refere, sobretudo, a problemas relacionados à voz, à alergia, à visão, à coluna vertebral e a varizes. Encontram-se ainda as queixas psicossomáticas, expressas por alterações digestivas e de sono e dores de cabeça. Diante das diversas situações de constrangimento, as professoras apontam para um conjunto de sinais de sofrimento psíquico, expresso em desânimo, fadiga, frustração, depressão, impotência, manifestações de desamparo, irritação, angústia e, até mesmo, “sensação de enlouquecimento”. O sofrimento tem sido relacionado a fatores como: relações hierárquicas conflituosas, horário extenso e mal estruturado de trabalho (somado ao trabalho doméstico invisibilizado), dificuldade para operar o que se descobriu representar uma regra de ouro do ofício - o “controle de turma”, desconforto térmico e de ruído (em sinergia com problemas tidos como de indisciplina dos alunos) nas salas de aula, o crescente rebaixamento salarial, a contaminação das relações familiares e, especialmente, a progressiva desvalorização e o não reconhecimento social de seu trabalho. A maior fonte de prazer é remetida à relação que desenvolvem com seus alunos.

Os estudos desenvolvidos no Estado do Rio de Janeiro 10,11 incidem sua análise nos fatores que contribuem para a sobrecarga de trabalho. Destaca-se que o trabalho efetivamente realizado pelas professoras extrapola os limites da jornada de trabalho. De acordo com a prescrição, essas trabalhadoras deveriam cumprir por semana um determinado número de horas em sala de aula, e outro tempo seria reservado para elaboração de aulas e demais atividades. Entretanto, em razão das precariedades - como turmas numerosas (o que também implica excessivo trabalho de ensino, correlato ao número de exercícios e de provas a corrigir e a consequente escassez de tempo para o atendimento individualizado adequado), más condições de trabalho (ruído, falta de recursos materiais...), violência urbana e graves problemas de segurança pública crescentemente invadindo os muros das escolas etc. -, uma regulação feita pelas docentes é ocupar o seu tempo livre com essas atividades, invadindo as suas vidas domésticas, com maiores implicações para as mulheres professoras, já que são elas que tradicionalmente assumem o trabalho realizado no espaço privado (doméstico) 11. Adotando uma perspectiva de cruzamento de métodos de investigação, foram analisados também os dados oficiais sobre licenças médicas e “readaptação profissional”. Merece atenção o fato de que se ampliaram aquelas licenças por transtornos psíquicos e problemas vocais, evidenciando modificações nas condições e na organização do trabalho, que tornaram a docência mais nociva ao longo dos anos pesquisados 10.

Com base nessas pesquisas/intervenções, evidenciaram-se, como exposto anteriormente, processos de desvalorização do trabalho docente marcados pelas relações sociais de gênero e classe produzindo dinâmicas de adoecimento e sofrimento psíquico nas professoras. De modo similar, como em outros estudos 4,5,13, não se encontrou um fator único nocivo ao processo saúde-doença dessas trabalhadoras, mas um conjunto complexo e sinérgico ainda mais nocivo, embora pouco visível.

Notou-se ainda que as relações de gênero geravam diferentes modos de construção de sentido no/do trabalho por conta das formas distintas como homens e mulheres o concebiam na escola. Para as mulheres, a construção desse sentido era fortemente permeada pela afetividade, entrando em ressonância profissão e maternidade. As variabilidades - e precariedades - do cotidiano são assumidas por elas como parte integrante e, até mesmo, primordial de seu trabalho, indicando uma grande disponibilidade para lidar com o previsto e o imprevisto, particularmente com o que está relacionado ao âmbito do afetivo, dos cuidados. No entanto, se há construção de sentido com base em aspectos afetivos, tal dedicação gera, paradoxalmente, sobrecarga de trabalho e desgaste físico e psíquico nas trabalhadoras.

Por fim, cabe frisar que se entende que a contribuição da ótica das relações sociais de gênero nos estudos acerca do trabalho e saúde de professoras não se limita à possibilidade de melhor descrever os problemas encontrados (o que já se mostra bastante relevante), mas propicia uma análise qualitativa e abrangente de seus diferentes aspectos. Envolve questionamentos sobre os modos de vida e relações de poder vigentes e, nesse sentido, pode contribuir para alavancar mudanças das condições de trabalho nas escolas ou fortalecer processos de emancipação das mulheres-professoras.

REFERÊNCIAS

1. Hirata H, Kergoat D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad Pesqui 2007; 37:595-609.
2. Brito J. Trabalho e saúde coletiva: o ponto de vista da atividade e das relações de gênero. Ciênc Saúde Coletiva 2005; 10:879-90.
3. Neves MY, Brito J, Araújo A, Silva EF. Relações sociais de gênero e divisão sexual do trabalho: uma convocação teórico-analítica para estudos sobre a saúde das trabalhadoras da educação. In: Minayo-Gomez C, Machado JMH, Pena PGL, organizadores. Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011. p. 495-516.
4. Araújo TM, Godinho TM, Reis EJB, Almeida MMG. Diferenciais de gênero no trabalho docente e repercussões sobre a saúde. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11:1117-29.
5. Gasparini SM, Barreto SM, Assunção AA. O professor, as condições de trabalho e os efeitos sobre sua saúde. Educação e Pesquisa 2005; 31:189-99.
6. Neves MY, Seligmann-Silva E. A dor e a delícia de ser (estar) professora: trabalho docente e saúde mental. Estud Pesqui Psicol 2006; 6:63-75.
7. Kergoat D. Dynamique et consubstantialité des rapports sociaux. In: Dorlin E, editor. Sexe, classe, race: pour une épistémologie de la domination. Paris: Presses Universitaires de France; 2009. p. 111-25.
8. Daniellou F. Introdução: questões epistemológicas acerca da Ergonomia. In: Daniellou F, organizador. A ergonomia em busca de seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Edgard Blucher; 2004. p. 1-18.
9. Schwartz Y, Durrive L, organizadores. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2ª Ed. Niterói: Eduff; 2010.
10. Brito J, Athayde M. Trabalho, educação e saúde: o ponto de vista enigmático da atividade. Trab Educ Saúde 2003; 1:63-89.
11. Gomes L, Brito J. Desafios e possibilidades ao trabalho docente e à sua relação com a saúde. Estud Pesqui Psicol 2006; 6:1-14.
12. Neves MY, Muniz HP, Silva EF, Costa JD, Brito J, Athayde M. Saúde, gênero e trabalho nas escolas públicas: potencialidades e desafios de uma experiência com o dispositivo "Comunidade Ampliada de Pesquisa e Intervenção". Laboreal 2015; 11:53-68.
13. Assunção AA, Oliveira DA. Intensificação do trabalho e saúde dos professores. Educação & Sociedade 2009; 30:349-72.