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A saúde pública brasileira num universo "sem mundo": a austeridade da Proposta de Emenda Constitucional 241/2016

A saúde pública brasileira num universo "sem mundo": a austeridade da Proposta de Emenda Constitucional 241/2016

Autores:

Áquilas Nogueira Mendes

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.32 no.12 Rio de Janeiro 2016 Epub 15-Dez-2016

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00188916

O filósofo Slavoj Žižek1) ao refletir sobre o capitalismo e sua crise contemporânea, comenta que se trata de um movimento com caráter propriamente sem mundo. Žižek se apoia em Alain Badiou que associa esse conceito de mundo ao estatuto inigualável do universo capitalista como "sem-mundo". Žižek argumenta: "Talvez seja aí que devamos localizar o 'perigo' do capitalismo: apesar de global, de englobar todos os mundos, ele sustenta uma constelação ideológica 'sem mundo' stricto sensu, privando a grande maioria do povo de todo e qualquer 'mapeamento cognitivo' que tem sentido. A universalidade do capitalismo reside no fato de que o capitalismo não é o nome de uma 'civilização'..." 1(p. 90).

Essa passagem contribui para compreender a perversidade do capitalismo contemporâneo, sob dominância do capital portador de juros (capital financeiro) e sua crise, especialmente por meio de seus efeitos sobre os direitos sociais, em destaque para a saúde. A Proposta de Emenda Constitucional 241/2016 (PEC 241) ao instituir um novo regime fiscal, que limita a expansão dos gastos públicos, a partir de 2017, pelos próximos 20 anos, corrigidos apenas pela inflação (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA), parece ser a expressão mais recente do caráter desse capitalismo contemporâneo como "sem mundo", com o seu ataque ao subfinanciamento histórico do Sistema Único de Saúde (SUS). Com a PEC 241, os trabalhadores brasileiros serão arrancados súbita e violentamente de suas já precárias condições sociais e de saúde, e lançados num futuro de condições ainda piores de preservação da vida e da dignidade humana, num quadro de intenso processo de transição demográfica, com crescimento populacional e aumento do envelhecimento, com o avanço permanente da inovação tecnológica no setor saúde e aumento das doenças crônicas não transmissíveis. Essa PEC remete a saúde pública a esse universo capitalista "sem mundo".

Desde 1990, nos tempos do capitalismo contemporâneo de supremacia do capital portador de juros, não foi possível identificar a retirada do Estado da economia, mas ao contrário, vimos assistindo a uma particular "presença". Evidencia-se a adoção de políticas austeras por parte do Estado, com redução dos direitos sociais e da saúde, intensificando mecanismos de mercantilização no seu interior, no contexto dos países capitalistas centrais e do Brasil. Ocorre a permissão do Estado à apropriação do fundo público pelo capital, com a existência de disputas constantes por recursos financeiros do SUS, que sempre estiveram presentes desde a sua criação pela Constituição Federal de 1988.

A PEC 241 constitui a política mais austera desses anos, na medida em que não limita os juros, mas apenas as despesas primárias por duas décadas. Numa análise comparada, o Brasil é o país que dispõe do maior custo de financiamento da sua dívida (pagamento de juros), levando em conta o seu patamar de endividamento em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). A dívida pública líquida brasileira refere-se a 33,6% do PIB (2013) e tem um custo de financiamento de 5,2% do PIB. Já países cujas dívidas líquidas são significativamente maiores, dispõem de um custo de financiamento bem menor, como a Grécia, que deve 169,7% do PIB; Portugal, 118,5%; e Espanha, 60,5%, sendo que o custo de financiamento é, respectivamente, de 3,6%, 3,8% e 2,9% do PIB. Essa distorção foi ainda mais grave em 2015, quando o Brasil alcançou 8,5% do PIB, cerca de R$ 500 bilhões com o custo de financiamento dessa dívida, sendo cinco vezes superior ao gasto do Ministério da Saúde 2.

A reflexão sobre a PEC 241 deve ser realizada na articulação entre a crise contemporânea e o financiamento da saúde.

Há várias interpretações sobre a crise contemporânea. Segundo os economistas do mainstream (os neoliberais austeros), o sistema de crédito provoca booms desestabilizadores e o Estado não deve fazer nada para previnir este estouro, apenas moderar a expansão do crédito, deixando-o livre no seu curso natural. Para ilustrar, o economista neoclássico da Universidade de Chicago, Estados Unidos, Robert Lucas Jr. (2003, apud Roberts3, p. 65) afirma: "o problema central da prevenção-depressão foi resolvido, para todos os efeitos práticos". Essa resolução vem sendo alcançada pela redução dos gastos estatais, principalmente em políticas sociais.

Diferentemente desse enfoque, a crise do capitalismo reside num contexto mais amplo de existência de duas principais tendências, articuladas entre si, especialmente a partir do final dos anos 1960. São elas: a tendência de queda da taxa de lucro nas economias capitalistas, em todo pós-II guerra, principalmente na norte-americana, com declínio de 41,3% entre 1949 a 2001 (4; e como resposta a esta tendência, o sistema capitalista entra no caminho da valorização financeira, em que o capital portador de juros, a sua forma mais perversa, o capital fictício, passa a ocupar a liderança na dinâmica do capitalismo nesse período, especialmente depois de 1980, apropriando o fundo público 5.

A existência de uma pequena recuperação da taxa de lucro na economia norte-americana, após a década de 1980, além de ser recompensada pelo crescimento dos lucros fictícios, também se deveu às políticas econômicas neoliberais que vêm reduzindo os direitos sociais 4), (5.

Esse cenário contribui para os impasses na história do financiamento do SUS, desde a sua criação, passando pela vinculação de recursos federais para a aplicação da saúde por meio da Emenda Constitucional 29/2000 (EC 29), com o frágil esquema baseado no montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB, até a Lei nº 141/2012 (regulamentação da EC 29) que não modificou esta base de cálculo. Entre 1995 e 2014, o gasto do Ministério da Saúde não foi alterado, mantendo-se 1,7% do PIB, já o gasto com os juros da dívida representou, em média, 7,1% 6.

O subfinanciamento do SUS foi intensificado com a EC 86. Ficou alterada a base de cálculo de aplicação do Governo Federal para 13,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), em 2016, elevando-se de forma escalonada, até alcançar 15% da RCL, em 2020. Observa-se uma perda de R$ 9,2 bilhões para o orçamento do Ministério da Saúde já em 2016 6.

Apesar do avanço que significou a criação do SUS, em 2014 o seu gasto foi de 3,9% do PIB (União - 1,7%, estados - 1% e municípios - 1,2%), já o gasto público em saúde na média dos países europeus com sistemas universais correspondeu a 8% 6.

Por fim, nos defrontamos com uma das maiores medidas de austeridade defendida pelos arautos do capital financeiro, sendo a "pá de cal" no histórico subfinanciamento do SUS: a PEC 241. Ela impõe à saúde pública sua desestruturação e privatização crescente. O texto substitutivo da PEC revogou o escalonamento previsto na EC 86, passando a incidir o "teto" para a saúde, em 2017, de 15% da RCL. Mesmo assim, os prejuízos acumulados nos próximos 20 anos para o SUS seriam R$ 433 bilhões, considerando um crescimento do PIB de 2% ao ano (média mundial) e uma projeção do IPCA de 4,5%. Num cenário retrospectivo, entre 2003 e 2015 essa perda seria R$ 135 bilhões, a preços médios de 2015, diminuindo os recursos federais do SUS de 1,7% do PIB para 1,1% 7.

O argumento falacioso do governo se baseia na ideia de que em 2017 haveria um incremento de recursos para a saúde. A estimativa da RCL apresentada pelo governo é de R$ 758,3 bilhões, o que proporcionaria à saúde o valor de R$ 113,7 bilhões, cerca de R$ 10 bilhões a mais da base de cálculo da EC 86 (13,7% da RCL) 7. Contudo, ainda que tenha havido um incremento da alíquota, observa-se que não há ampliação de recursos. Se analisarmos o quadro problemático do orçamento do Ministério da Saúde nos anos recentes, tal argumento revela-se impróprio. A situação de execução orçamentária para 2015 foi pior que o penoso orçamento executado em 2014, que atrasou as transferências federais de dezembro a municípios (R$ 3,8 bilhões), principalmente para média e alta complexidades, repassando-as apenas no final de janeiro de 2015. Com isso, a insuficiência para 2015 foi de R$ 5,8 bilhões. Já a insuficiência orçamentária para 2016, seguindo a nova base de cálculo definida pela EC 86, está estimada em R$ 16,6 bilhões 6. A falácia do ganho de recursos na saúde pela PEC 241 para 2017 fica explícita. A PEC não aporta maiores recursos para a saúde nos primeiros anos de sua vigência, como é anunciado pelo Governo Federal; ao contrário, representa uma grande "nuvem cinzenta" para ofuscar os anos seguintes que se mostram catastróficos para o financiamento do SUS.

Com o crescimento da economia, possivelmente a partir de 2018, a arrecadação federal voltará a crescer, mas com a PEC, os recursos decorrentes deste aumento não serão direcionados proporcionalmente para saúde e para a seguridade social, compondo os recursos do superávit primário nos próximos 20 anos para pagar os juros da dívida.

Em substituição à PEC 241 necessitamos realizar uma profunda reforma tributária com impostos progressivos, adotando, por exemplo, mecanismos de tributação para a esfera financeira - responsável pela grande riqueza nos últimos 35 anos - por meio da criação de uma Contribuição Geral sobre as grandes movimentações financeiras, para quem movimenta mais de R$ 2 milhões mensais, e ter destinação vinculada à Seguridade Social. A proposta de adoção de uma taxação sobre as transações financeiras é importante para explicitar a luta contra o capital financeiro, ainda que tenha caráter reformista no atual quadro do capitalismo contemporâneo, num universo que já é em si sem mundo.

REFERÊNCIAS

1. Žižek S. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo Editorial; 2008.
2 . Lacerda AC. Crônica de um (des)ajuste anunciado. In: Dowbor L, Mosaner M, organizadores. A crise brasileira: crônicas de contribuições de professores da PUC/SP. São Paulo: Editora Contracorrente; 2016. p. 149-68.
3. Roberts M. The long depression. Chicago: Haymarket Books; 2016.
4. Kliman A. The failure of capitalist production. London: Pluto; 2012.
5. Chesnais F. Finance capital today corporations and banks in the lasting global slump. London: Brill; 2016. (Historical Materialism, 131).
6. Mendes A, Funcia F. O SUS e seu financiamento. In: Marques RM, Plola SF, Roa AC, organizadores. Sistema de saúde no Brasil: organização e financiamento. v. 1. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Economia da Saúde/Brasília: Ministério da Saúde; Organização Pan-Americana da Saúde; 2016. p. 139-68.
7. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Nota técnica sobre a PEC 241/2016.