versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.1 Rio de Janeiro 2019 Epub 23-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0152
O leite materno constitui um dos alimentos oferecidos após o nascimento, tendo como um dos veículos a amamentação. O leite materno oferecido na amamentação contém micronutrientes responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento da criança, assim como bioativos como oligossacarídeos, proteínas e peptídeos que atuam na proteção da criança contra infecções.1
A amamentação é o processo pelo qual o aleitamento ao filho acontece através da sucção direta da mama da mãe nutriz, sendo a forma mais eficaz de atender aos aspectos nutricionais, imunológicos oportunizados pelo leite materno.2 A atuação da amamentação se estende a nível psicológico e envolve interação profunda e a construção de vinculação entre mãe e filho.3-5
Esse processo de amamentação torna-se comprometido em crianças com fenda labial e/ou palatina (FLP) devido às alterações nas estruturas anatômicas da face, que interferem na sucção e deglutição.3-6 Nesse sentido, o atendimento a crianças portadoras de FLP constitui um dos principais problemas mundiais de Saúde Pública e afeta um em cada 500-1000 nascimentos e é a malformação craniofacial mais comumente encontrada. Representa um quantitativo de 240 mil crianças por ano7 e são resultantes de defeitos na fusão dos processos craniofaciais que ocorrem entre a quarta e a décima segunda semana de gestação.2,3,8,9
O diagnóstico de uma criança com FLP precipita a necessidade de mudanças e adaptações e desencadeia a transição, processo constituído por um movimento de adaptação à mudança, na vida da pessoa após um período de instabilidade, face à ocorrência de uma perturbação. Os indivíduos acometidos pelas FLP e suas famílias sofrem um grande impacto na qualidade de vida e bem-estar psicossocial, já que esta al teração pode trazer repercussões na fala, respira ção, alimentação e problemas odontológicos.8-11
Tendo em vista a complexidade que envolve o cuidado da criança com FLP e, em especial, o processo de amamentação, propõe-se discutir a transição materna no processo de amamentação da criança com fenda labial e/ou palatina, na perspectiva da teoria da transição.
O presente estudo ancora-se na perspectiva teórica da Teoria das transições de Afaf Ibraim Meleis, subsidiando o fazer da enfermeira na compreensão das transições ocorridas com mães de crianças com FLP, estimulando o empoderamento e autonomia dessas mulheres durante o processo de amamentação.
A Teoria da transição propõe assistência sistematizada frente às pluralidades de transições e fatores precipitadores como a FLP. Tem como eixos e interferentes, nesse processo, a natureza da transição (Tipo, Padrão e Propriedades), condições facilitadoras e inibidoras (Pessoais, Comunidade, Sociedade) e padrões de resposta (indicadores do processo e indicadores de resultados) e a terapia de enfermagem.11-13
A natureza das transições corresponde ao perfil das transições e pode ser de quatro tipos: desenvolvimental, situacional, saúde doença e organizacional. O desenvolvimental refere-se às situações do ciclo da vida. O situacional ocorre quando há mudança de papéis de um indivíduo em sua família ou sociedade e a saúde doença quando se instala um quadro de adoecimento no indivíduo. Por fim, o tipo organizacional se dá quando fatores socioeconômicos e políticos influenciam na vida de um indivíduo.11
Os tipos de transições se manifestam no atendimento aos padrões, que se dividem em número de transições, organização e as possíveis relações existentes entre elas. Quanto ao número de transições podem ser simples, onde o indivíduo passa por um tipo isolado de transição ou múltiplo, quando ocorrem em um mesmo espaço de tempo vários tipos de transição. Quando o indivíduo possui a necessidade de mais de um evento transicional, eles podem se organizar de forma simultânea, onde eles transcorrem paralelamente; ou sequencial, quando se manifestam e desenvolvem em efeito cadeia. Podem ou não existir relação de causalidade entre os tipos de transições, e pode ser classificada como relacionada ou não relacionada.11
As propriedades de transição constituem um processo dinâmico e associado e caracterizam-se pela: conscientização, envolvimento, mudança e diferença, espaço temporal e eventos críticos. A conscientização está relacionada à percepção, conhecimento e reconhecimento da vivência do processo de transição e o envolvimento, corresponde ao grau de interação frente à situação vivenciada.11
A mudança refere-se a eventos de desequilíbrio nas relações, rotinas e ideias. Já a diferença trata-se à alteração comportamental, com a satisfação ou divergência das expectativas. O espaço temporal caracteriza-se pelo período necessário para experimentar diferentes estratégias e incorporá-las no seu próprio conhecimento. Já os eventos críticos resumem-se em situações de maior destaque dentro do processo de transição.11
O segundo eixo da transição é chamado de condições facilitadoras ou inibidoras de transição, que podem ser pessoais, comunitárias e sociais. São quatro condições pessoais onde o significado corresponde à representatividade da situação vivenciada e a preparação e conhecimento, que está associado ao conhecimento sobre expectativas e estratégias inteligíveis no processo de transição.11
A terceira condição pessoal, a socioeconômica, se dá quando o trabalho e a geração de renda trazem influências às situações de saúde. E a quarta são as crenças culturais e atitudes que influenciam o indivíduo que vive a transição.11
Os recursos comunitários são, igualmente, condições para a transição e incluem o apoio do grupo comunitário, suporte dos profissionais de saúde e esclarecimento a perguntas. Outro interferente do processo transicional dos indivíduos é a sociedade, que inclui as instituições e organizações, com categorias estruturais, solidárias e de processos criativos.11,14
O terceiro eixo avaliativo da teoria da transição intitula-se padrões de respostas e demarcam a condição da transição e de possíveis situações de risco e vulnerabilidade durante o processo de mudança. Divide-se em indicadores de processo e indicadores de resultado. Como indicador de processo têm-se: sentir-se ligado, interação, estar localizado/situado e desenvolvimento da confiança e de enfrentamento.11
Sentir-se ligado trata da rede social que o indivíduo estabelece com os amigos, com a família e com os profissionais de saúde e a interação refere-se à descoberta dos problemas e subsequentes esclarecimentos a respeito e o desenvolvimento de estratégias. A localização diz respeito aos sentidos e percepções atribuídos às experiências do indivíduo no processo transicional, decorrentes do deslocamento do indivíduo de um lugar para outro.11
Desenvolver confiança e enfrentamento relacionam-se à forma como o indivíduo lida com mudanças como o diagnóstico, possibilidades terapêuticas, limitações, recursos disponíveis e as estratégias adotadas.11
Nos indicadores de resultado avalia-se a maestria enquanto competências individuais durante o processo de transição e a fluida identidade integrativa, refere-se às mudanças na identidade ou condições a ela relacionadas no processo de transição.11
Após o levantamento desses elementos, tem-se a terapêutica de enfermagem, realizada através da suplementação de enfermagem que visa suprir a hipossuficiência do cliente em suas necessidades transicionais específicas. O resultado dessas transições pode ser: saudável, ineficaz ou com insuficiência de papel. É saudável quando o indivíduo tem o domínio de conhecimento. Ineficaz, quando não há o alcance dos resultados ideários e o indivíduo encontra-se em situações de risco e vulnerabilidade; e com insuficiência de papel, quando há dificuldade em desempenhar um papel.11,13
Trata-se de pesquisa descritiva, qualitativa, tipo estudo de caso único, desenvolvido com uma mãe de criança com FLP. Segundo Hyett, Kenny e Dickson-Swift, o estudo de caso é considerado uma abordagem utilizada em pesquisa qualitativa, que contém desenhos de estudo e métodos diferenciados.15
Segundo Stake,16 o procedimento para desenvolver o estudo de caso possui 5 etapas que são a verificação da adequação da abordagem do estudo de caso para contemplar o problema da pesquisa, a seleção do estudo de caso, a coleta de dados, tipo de análise e a interpretação dos dados do caso. A adequação do estudo de caso para um problema a ser investigado deve ser realizada a partir da delimitação criteriosa das questões de pesquisa, onde se possui um caso identificável com entraves e busca compreendê-los.16 Verificou-se a pertinência de adoção do estudo de caso único, que segundo Stake16 busca a compreensão de um fenômeno particular, que, nesse caso, é a transição da mulher na amamentação com filho com FLP.
A seleção do estudo de caso prevê uma reflexão, que possibilitará a compreensão do fenômeno a ser estudado e o tipo de estudo de caso mais adequado. Optou-se por um estudo de caso único de forma a facilitar a contextualização da transação materna frente aos problemas vividos com o filho com malformação.16 Os critérios de inclusão para a seleção da sujeita da pesquisa foi ter filho com FLP em atendimento no referido centro de tratamento que tentaram iniciar a prática da amamentação. O critério de exclusão adotado foi apresentação de desorientação psíquica-materna que inviabilizasse o relato de caso.
Na coleta de dados, foi utilizado como instrumento um roteiro semiestruturado aplicado em entrevista, constando os seguintes dados: tipos de malformação, diagnóstico, descoberta da malformação e orientações pelo profissional de saúde; processo de amamentação (dúvidas, dificuldades, efetividade das próteses na amamentação); orientações acerca do pré-natal e pós-natal sobre amamentação. A entrevista foi gravada em MP4 e transcrita. Realizou-se consulta ao prontuário, utilizando-se o mesmo roteiro como norteador da coleta de dados.
O tipo de análise foi realizado conforme delimitação de Stake16 que prevê a pormenorização da história do caso, narrada pela entrevistada desde o pré-natal até o procedimento cirúrgico reparador da FLP do seu filho, sendo esses dados complementados com informações do prontuário.
Implementou-se a interpretação dos dados do caso por meio da organização e categorização dos dados a fim de facilitar a delimitação dos problemas.16,17 Após a leitura flutuante da entrevista e dos dados do prontuário, os mesmos foram agrupados por similaridade e organizados em 1 categoria temática: As transições de mãe com filho com FLP e a amamentação com 4 subcategorias, que compreenderam os eixos da Teoria da Transição: Natureza da transição, Condições facilitadoras ou inibidoras do processo de transição, Padrões de respostas às transições e Terapêutica de Enfermagem.
Os dados foram coletados em julho de 2015, em um Centro de Tratamento de Anomalias Craniofaciais, no sudeste do país. A coleta de dados ocorreu após a anuência da entrevistada e respectivo consentimento, conforme resolução 466/12 e aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa no parecer nº 41/13 da Secretária Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Trata-se de mãe de criança com FLP, com 33 anos, do lar, católica, casada, ensino médio completo, moradora em um município da Região Sudeste do Brasil. Recebeu o diagnóstico de fenda palatina e lábio leporino bilateral do seu filho no quinto mês de gestação, após a realização da ultrassonografia morfológica. Ainda durante a gestação, a participante buscou informações complementares quanto aos cuidados em saúde e os procedimentos adotados para o tratamento de seu filho. O médico, ao fazer o exame de ultrassom, comunicou o diagnóstico à gestante, mas a explicação sobre o quadro fetal foi fornecida em consulta pelo pediatra e pela obstetra que a acompanhava no pré-natal. Além das orientações recebidas, a participante pesquisou na internet acerca da etiologia e tratamento da anormalidade facial. Recebeu orientação prévia dos profissionais de saúde em relação aos procedimentos a serem adotados após o nascimento. Desconhecia o tratamento para correção da anomalia. O parto foi normal e o período de internação em unidade neonatal foi postergado por 2 semanas devido ao diagnóstico e espera para confecção da prótese palatal. Os profissionais do hospital não a orientaram adequadamente em relação ao processo de amamentação. Também não foi permitida sua permanência no hospital no alojamento conjunto, durante a internação de seu filho, para possibilitar este processo. Ocorreu tentativa de colocar o bebê para sugar uma vez, antes da alta hospitalar, com saída de leite pelas vias aéreas. Depois, não conseguiu mais efetivar a amamentação, o que a levou à prática de ordenha mecânica e oferta do leite via chuquinha. Após a confecção da placa palatal, o neonato teve alta, e a mãe foi orientada sobre o seu manuseio. O aleitamento materno complementado com leite artificial perdurou até o 5º mês, seguido somente de leite artificial. Foram realizadas as cirurgias reconstrutoras da FLP, quilorrafia e palatorrafia, com 1 ano e 6 meses.
A maternidade é um dos precipitadores mais comuns para o processo de transição de uma mulher e é afetada diretamente pelas condições de saúde da sua prole.13 O diagnóstico de um filho com FLP traz consigo necessidades adaptativas e o desafio materno para cuidar e maternar.
Na perspectiva da teoria da transição, quanto à natureza da mesma, a participante do estudo ao ter um filho com FLP, apresentou duas transições: desenvolvimental e situacional. A transição do tipo desenvolvimental relacionou-se a mudança esperada no ciclo da vida, como a maternidade e a chegada de um filho, que ocasionam mudança no ciclo gravídico-puerperal da mulher e a concretude de uma fase socialmente esperada de sua vida.11,12
A transição situacional ocorreu com o acréscimo de mais um indivíduo no seio familiar, que alterou a estrutura da família, em especial, pelo acréscimo de um indivíduo com anomalia craniofacial, com necessidade da confecção da prótese palatal e internação hospitalar, que causou a redefinição do papel materno.
As transições apresentaram padrões múltiplos, ocorreram de forma simultânea e relacionada, fato comum nas transições maternas, pois despertam a necessidade de uma série de transformações.11,12
A propriedade de consciência para a transição ocorreu com o diagnóstico no pré-natal com a informação do problema da formação fetal, e das necessidades após nascimento, complementado com a propriedade de envolvimento materno, face à busca por informações em meios de comunicação, com amigos e profissionais de saúde quanto à patologia e tratamento de seu filho. Igualmente se mostrou presente no pós-parto, através da manifestação de interesse em amamentar.11
A propriedade de mudança teve o diagnóstico de FLP como evento de desequilíbrio, frente ao processo natural da gestação, que interferiu na dinâmica materna. Na propriedade de diferença observa-se o não atendimento da expectativa de amamentar em função das condições anormais da criança e da necessidade de cuidados especiais em saúde para que a amamentação ocorresse satisfatoriamente.11,18,19
O espaço temporal para a transição materna iniciou no diagnóstico e, considerando-se o processo de amamentação malsucedido, findou-se com a oferta do aleitamento artificial exclusivo.
Os eventos críticos que marcaram o processo de transição11,18 foram o diagnóstico de FLP, o nascimento do bebê com anomalia, o desejo de amamentar o filho e as dificuldades/incapacidades para tal.
No que tange às condições pessoais de transição, pode-se afirmar que o significado constituiu uma condição inibidora da transição, pois inclui o imaginário social de preconceito e discriminação à criança com deficiência e à impossibilidade da amamentação. A adaptação materna à condição da criança com FLP resultou em um novo significado de possibilidades para o ser mãe.11-13
A preparação e o conhecimento se mostraram condições pessoais facilitadoras e inibidoras. Facilitador pela busca por informações sobre FLP e o interesse de adquirir conhecimento para a mãe cuidar de seu filho. Todavia, ainda que a mãe tivesse interesse em adquirir conhecimento sobre a FLP e de compreender as possíveis dificuldades que enfrentaria, não foi suficiente para apresentar uma transição saudável em relação à amamentação de seu filho, o que caracteriza como um fator inibidor da transição.
O nível socioeconômico não foi facilitador, nem inibidor, permanecendo neutro no processo transicional, tendo em vista que a ferramenta necessária para a prática da amamentação foi fornecida pela unidade de saúde e não dependeu dos recursos financeiros maternos.
A amamentação é uma prática que carrega consigo crenças e valores construídos socialmente e transferidos a cada geração, a qual acarreta um grau de complexidade em definição pelos padrões dos profissionais de saúde.19,20 No estudo de caso, as crenças culturais e atitudes foram condições pessoais facilitadoras na acreditação do sucesso na prática de amamentação, o que culminou na tentativa no puerpério.
A comunidade mostrou ser uma condição facilitadora, com parceria e solidariedade do cônjuge nas situações de enfretamento frente a um filho com FLP. Estudos indicam que a família representa o grupo comunitário mais importante para mulheres na transição desenvolvimental da maternidade.20
O incentivo à prática da amamentação e do aleitamento a participante foi realizada pelos profissionais de saúde como um ato encorajador para a execução de tais práticas, ainda que sem acompanhamento e aporte técnico. Nesse sentido o enfermeiro, enquanto profissional de saúde, é considerado como fonte de apoio comunitário e é fundamental para oferecer a suplementação de enfermagem mais eficaz, como por exemplo, na efetivação da prática da amamentação, "no ganho de peso neonatal e na facilitação à serviços apropriados".20,21
A sociedade, aqui representada pelas instituições que acolheram a mulher com filho com FLP na gestação e no puerpério, deveria proporcionar suporte emocional, orientar e esclarecer as puérperas sobre dúvidas em relação à amamentação do neonato, o que não foi facilitado. Para isso, as instituições devem possuir uma equipe interdisciplinar bem treinada,4 principalmente a enfermeira, pois ela é a responsável, na maioria dos casos, pelo acompanhamento no alojamento conjunto nas 24h e na atenção básica.11,23
Sentir-se ligado em sua rede social se evidenciou através de uma forte conexão materna com seu filho, seguida de ligação com conjugue e com os profissionais de saúde, ainda que este último não tenha atingido a função genuína dessa conexão, de esclarecer as inquietações sobre a amamentação.11
O desenvolvimento de estratégias na etapa de interação no processo de transição se deu de forma fragilizada, visto a inexistência de troca de saberes, sem incluir ações de empoderamento da participante quanto à amamentação de seu filho com FLP.4
A localização gerou interferência no processo transicional, enquanto sentidos e percepções frente ao planejamento natural de deslocamento da unidade hospitalar para o domicilio.11,18 Com o nascimento de uma criança com necessidades de cuidados especiais de saúde, houve o encaminhamento para o Centro de tratamento de anomalias craniofaciais e para hospital pediátrico para realização de cirurgia, que ocasionou mudanças em termos de localização geográfica.13
O processo de desenvolver confiança e enfrentamento, no sentido de manejo de mudanças, ocorreu por preparo prévio da participante em relação à doença, diagnóstico e tratamento do filho, mas não sobre a amamentação, o que acarretou a situação deficitária de enfrentamento e a desistência dessa prática.11,18
A teoria das transições descreve dois indicadores de resultado: A maestria (competências) e a fluida identidade integrativa (construção de papéis adaptados a necessidade da transição).11 Nesse estudo, ficou claro que não houve maestria para a efetivação da amamentação, ainda que a mãe buscasse reformulações na identidade materna para cuidar da criança com FLP.
Quanto à terapêutica de enfermagem, tendo em vista a delimitação das demandas frente ao processo de transição situacional e desenvolvimental apresentado pela participante no que tange o seu filho com FLP, observou-se a ausência de uma terapêutica que contemplasse o cuidado de enfermagem capaz de viabilizar o processo de transição saudável da mãe, principalmente, no desempenho da amamentação. É necessário que os profissionais desenvolvam competências e habilidades para realizar intervenções adequadas e superar as possíveis barreiras, principalmente, na sala de parto.24
A terapêutica de enfermagem de incentivo eficaz à amamentação deveria ser iniciada no pré-natal, ao prestar as orientações pertinentes a especificidade do caso, que devem ser continuadas no pós-parto, até a efetividade da prática da amamentação.25
Inicialmente, o profissional de enfermagem deve avaliar a viabilidade da amamentação e, portanto, compreender a capacidade física de cada criança para a prática. Protocolos de manejo à amamentação de crianças com FLP mostram que é possível esse processo, mas que requer prévia avaliação individual dos casos pelo profissional de saúde, orientação e acompanhamento das mães, em especial da enfermeira habilitada para tal prática.4,23,26,27 Não existem evidências que contraindiquem a amamentação; ao contrário, constitui um método de nutrição viável, ainda que dificultoso.2,4,25
A alimentação com o leite materno, bem como a forma indireta de ofertá-lo, seja por copo ou colher, deve ser promovida antes da tentativa de inserir o leite artificial, que deve ser utilizado como último recurso.2 As mães, além da orientação, devem ser aconselhadas sobre as possibilidades de amamentação, não ser o meio exclusivo de nutrição e a possível necessidade da oferta do leite materno por outros meios.2,26 No presente estudo de caso, foi prescrito o leite artificial, possivelmente, por ser um meio mais prático de nutrição da criança com FLP.
Tendo o interesse da mãe na amamentação, o suporte técnico capacitado torna-se fundamental para socializar o conhecimento e a enfermeira é, inclusive, referenciada como profissional capacitada para a condução de tal aporte. Ressalta-se a importância da orientação com enfoque na posição adequada da criança durante as mamadas, que deve estar em posição semi vertical ou verticalizada ao corpo da mãe, de forma a minimizar o risco de regurgitação nasal e o refluxo do leite materno nas tubas auditivas.2
Nesse caso, o conhecimento é importante para o processo de amamentação, já que é necessário que a mãe introduza a maior parte da aréola na boca do bebê e que os seios lactíferos sejam esvaziados com a sucção. Durante a sucção, a aréola aumenta em três vezes o seu comprimento dentro da cavidade oral do bebê, encostando-se no palato duro e indo até o palato mole, estimulando a sucção.3 Como existe a FLP, não ocorre a pressão necessária na aréola para a ejeção do leite e são necessárias estratégias para compensar essa deficiência. Para que ocorra adequada sucção, deve ocorrer pressão intraoral negativa. Nas crianças com FLP, a pressão é insuficiente; consequentemente, a quantidade e o fluxo de leite ingerido são reduzidos.26,28,29
Nesse sentido, o posicionamento do mamilo é essencial para o sucesso da amamentação e deve ser alocado na área mais íntegra do palato ou com o osso mais intacto, a fim de facilitar a compressão do mamilo e impedir que ele seja conduzido para o interior da fenda. No caso da fenda bilateral, a mãe deve projetar o mamilo para a parte inferior da cavidade oral e, se precisar, pode também fazer a expressão da mama, como substituto do abocanhar da criança.2,4
O apoio tecnológico, como o uso de próteses ortopédicas, deve ser empregado como facilitador do processo de amamentação, que se mostra fundamental na amamentação com a condução do leite materno pelo trato digestivo superior.2 Apesar de a participante informar que houve a disponibilização da prótese para seu filho, com a função de vedar a abertura palatal e viabilizar o processo de amamentação, não teve pleno aproveitamento.
Associado à condução técnica, devem ocorrer o monitoramento e supervisão das ações referidas na amamentação de forma a garantir a promoção efetiva da amamentação.25 A efetividade da amamentação deve ser feita através da observação da mamada, da verificação do ganho de peso e da hidratação da criança com FLP. A insuficiência de dados positivos durante o processo de amamentação pode ser um indicativo da necessidade da nutrição suplementar, com alimentação, mas não substitutiva.2
O suporte terapêutico deve ser complementado através de grupos de apoio de pais cujos filhos tenham FLP e que passaram pela experiência da amamentação ou alimentação.2 Importante enfatizar que a mãe informou que o processo de orientação acerca da amamentação foi estimulado no puerpério, mas não assistido, direta e continuamente, pelo profissional de enfermagem, nem tampouco houve recondução da mãe a grupos de apoio nos centros especializados de atenção a crianças com FLP.
No presente estudo de caso, a não suplementação de papel persistiu até o reparo cirúrgico da FLP, com a realização das cirurgias de quilorrafia, para correção do lábio, e palatorrafia, para correção do palato, com 1 ano e 6 meses, o que contradiz os protocolos que recomendam a suplementação de enfermagem na prática de amamentação, desde o nascimento.2
Dessa forma, ocorreu transição ineficaz em relação à situacional e desenvolvimental. O desempenho do papel materno ocorreu parcialmente diante da efetivação do aporte nutricional idealizado para o seu filho.
O objetivo do estudo foi atingido, com a discussão da transição materna no processo de amamentação da criança com fenda labial e palatina, na perspectiva da teoria da transição. Evidenciou-se que, mediante este diagnóstico, os sentimentos e reações maternas devem ser observados com cuidado e atenção. A dificuldade frente ao processo de amamentação se destaca diante de um diagnóstico que não era esperado e, tampouco, desejado.
O momento do conhecimento do diagnóstico também influencia no processo de entendimento e aceitação da situação. A presença de um profissional de enfermagem para esclarecer a família é fundamental para que o sofrimento diante do bebê real possa ser minimizado e a aceitação da criança diferente ocorra naturalmente. Além disso, esse profissional poderá ajudar a família a enfrentar as dificuldades positivamente, além de preparar a mãe para o processo de amamentação e auxiliá-la no alcance de uma transição saudável.
Nesse sentido, a participação da enfermeira no rastreamento, acolhimento e encaminhamento da mãe, mostra-se fundamental, principalmente no atendimento da necessidade de atuação eficaz na avaliação e suplementação de papéis no processo de transição das progenitoras e seus filhos com FLP. Considerou-se como limitação do estudo a escassez de registros no prontuário, de forma a complementar as informações técnicas desconhecidas pela entrevistada.