versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.3 São Paulo mar. 2019 Epub 07-Jan-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20180268
A troponina cardíaca de alta sensibilidade I (TnI-as) tem desempenhado um papel importante na estratificação de risco dos pacientes durante a fase intra-hospitalar da síndrome coronariana aguda (SCA), mas poucos estudos determinaram seu papel como marcador prognóstico de longo prazo no ambiente ambulatorial.
Investigar a associação entre os níveis de TnI-as medidos na fase subaguda após um evento de SCA e o prognóstico a longo prazo, em uma população altamente miscigenada.
Medimos os níveis de TnI-as em 525 pacientes em um período de 25 a 90 dias após a entrada em hospital por um evento de SCA; esses pacientes foram então divididos em tercis conforme os níveis de TnI-as, e acompanhados por até 7 anos. Comparamos as mortalidades por todas as causas e cardiovascular através de modelos de riscos proporcionais de Cox e adotando um nível de significância de 5%.
Após um acompanhamento médio de 51 meses, os pacientes no tercil mais alto apresentaram uma taxa de risco (HR) maior para mortalidade por todas as causas, após ajustes para idade, sexo, fatores de risco cardiovascular conhecidos, uso de medicação e fatores demográficos (HR: 3,84 IC 95%: 1,92-8,12). Esses achados persistiram após um ajuste adicional para uma taxa de filtração glomerular (TFG) estimada < 60 ml/min/1,73 m2 e uma fração de ejeção do ventrículo esquerdo < 0,40 (HR: 6,53; IC95%: 2,12-20,14). A mortalidade cardiovascular foi significativamente maior no tercil mais alto, após ajustes para idade e sexo (RR: 5,65; IC95%: 1,94-16,47) e tanto no primeiro modelo de ajuste multivariado (HR: 4,90; IC 95%: 1,35-17,82) quanto no segundo (HR: 5,89; IC95%: 1,08-32,27).
Níveis elevados de TnI-as, medidos na fase estabilizada após um evento de SCA, são preditores independentes de mortalidade por todas as causas e de mortalidade cardiovascular em uma população altamente miscigenada.
Palavras-chave: Doença da Artéria Coronariana / mortalidade; Troponina I; Prognóstico; Síndrome Metabólica; Variação Biológica da População; Fatores de Risco
High-sensitivity cardiac troponin I (hs-cTnI) has played an important role in the risk stratification of patients during the in-hospital phase of acute coronary syndrome (ACS), but few studies have determined its role as a long-term prognostic marker in the outpatient setting.
To investigate the association between levels of hs-cTnI measured in the subacute phase after an ACS event and long-term prognosis in a highly admixed population.
We measured levels of hs-cTnI in 525 patients 25 to 90 days after admission for an ACS event; these patients were then divided into tertiles according to hs-cTnI levels and followed for up to 7 years. We compared all-cause and cardiovascular mortality using Cox proportional hazards models and adopting a significance level of 5%.
After a median follow-up of 51 months, patients in the highest tertile had a greater hazard ratio (HR) for all-cause mortality after adjustment for age, sex, known cardiovascular risk factors, medication use, and demographic factors (HR: 3.84, 95% CI: 1.92-8.12). These findings persisted after further adjustment for estimated glomerular filtration rate < 60 ml/min/1.73 m2 and left ventricular ejection fraction < 0.40 (HR: 6.53, 95% CI: 2.12-20.14). Cardiovascular mortality was significantly higher in the highest tertile after adjustment for age and sex (HR: 5.65, 95% CI: 1.94-16.47) and both in the first (HR: 4.90, 95% CI: 1.35-17.82) and second models of multivariate adjustment (HR: 5.89, 95% CI: 1.08-32.27).
Elevated hs-cTnI levels measured in the stabilized phase after an ACS event are independent predictors of all-cause and cardiovascular mortality in a highly admixed population.
Keywords: Coronary Artery Disease / mortality; Troponin I; Prognosis; Metabolic Syndrome; Biological Variation, Population; Risk Factors
A síndrome coronariana aguda (SCA) é um importante fator de mortalidade e a principal causa de anos de vida perdidos em todo o mundo.1 Nas últimas décadas, diversas intervenções terapêuticas têm se mostrado benéficas no tratamento da SCA, e estratégias voltadas ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado têm sido recomendadas por várias sociedades de cardiologia.2-5 Devido aos progressos alcançados na terapêutica da SCA, um grupo heterogêneo de sobreviventes desta condição recebeu acompanhamento de longo prazo por parte dos serviços médicos. O prognóstico dos pacientes na fase estabilizada após a SCA varia de forma ampla;6 a validação de marcadores prognósticos de baixo custo e fácil obtenção pode melhorar a estratificação de risco a longo prazo para essa população.
Diversos estudos demonstraram que as troponinas cardíacas (Tnc) são mais sensíveis e específicas para o diagnóstico de infarto do miocárdio (IM), e têm uma maior correlação com níveis mais altos de mortalidade do que o padrão de referência anterior, a isoenzima creatina quinase-MB (CK-MB).7-11 Nas últimas duas décadas, foram desenvolvidas novos ensaios que conferiram maior sensibilidade ao diagnóstico de IM; essas Tnc de alta sensibilidade (Tnc-as) demonstraram maior precisão na identificação de pacientes com maior risco de morte, mesmo naqueles que tinham níveis de Tnc de primeira geração indetectáveis.12 Mais recentemente, o uso de TnT-as como marcador prognóstico na fase subaguda após um episódio de SCA foi estudado em uma coorte europeia de pacientes brancos.13 Esses achados não foram replicados em populações mais heterogêneas de países em desenvolvimento. Nesta coorte observacional unicêntrica, temos como objetivo estudar a associação entre níveis elevados de TnI-as e as mortalidades por todas as causas e cardiovascular, a longo prazo, em uma população altamente miscigenada no Brasil.
O desenho do estudo da Estratégia de Registro de Insuficiência Coronariana (ERICO) foi descrito em detalhes em outros trabalhos.14,15 Resumidamente, o ERICO é um estudo de coorte prospectivo de pacientes com SCA matriculados entre fevereiro de 2009 e dezembro de 2013 em um hospital comunitário em São Paulo, Brasil. Todos os pacientes com suspeita de SCA no departamento de emergência foram selecionados para participação no estudo. Os participantes do ERICO precisavam preencher os critérios diagnósticos de infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST (IAMST), infarto agudo do miocárdio sem elevação do segmento ST (IAMSST) ou angina instável (AI); os critérios utilizados para definir as síndromes coronarianas agudas eram:14
1) IM: presença de sintomas compatíveis com isquemia cardíaca dentro de 24 horas da apresentação hospitalar, e níveis de troponina I acima do percentil 99, com um coeficiente de variação < 10% do teste específico.
1a) IAMST: presença dos critérios para IM mais um dos seguintes: elevação persistente do segmento ST de ≥ 1 mm em duas derivações eletrocardiográficas contíguas, ou presença de um novo ou presumivelmente novo bloqueio do ramo esquerdo.
1b) IAMSST: presença dos critérios para IM, mas não IAMST.
2) AI: sintomas compatíveis com isquemia cardíaca 24 horas antes da admissão hospitalar, ausência de critérios do IM, e pelo menos um dos seguintes: (a) histórico de doença arterial coronariana; (b) teste de estratificação positivo para doença coronariana (invasiva ou não-invasiva); (c) alteração transitória do segmento ST ≥ 0,5 milímetros em duas derivações contíguas, nova inversão de onda T de ≥ 1 mm e/ou pseudo-normalização de ondas T anteriormente invertidas; (d) troponina I > 0,4 ng/ml; ou concordância diagnóstica de dois médicos independentes
Durante a fase intra-hospitalar, todos os participantes foram tratados pela equipe assistencial do hospital, sem influência da equipe do estudo. O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição. Todos os pacientes forneceram um termo de consentimento informado para o estudo.
Os participantes foram entrevistados durante a admissão hospitalar, e forneceram dados sobre fatores sociodemográficos, histórico médico e principais fatores de risco cardiovascular (hipertensão, diabetes, obesidade, dislipidemia, tabagismo, sedentarismo, uso de cocaína, menopausa e histórico familiar e pessoal de doenças coronarianas). Três médicos foram responsáveis por revisar as informações dos pacientes e validar os casos de SCA. Seguindo o protocolo do estudo, foi coletada uma amostra de sangue para exames laboratoriais (troponina I, CK-MB, glicose sérica, colesterol total, colesterol HDL e LDL, triglicérides e contagem total de células sanguíneas).
Aproximadamente 30 dias após o evento, os participantes foram convidados a passar por nova avaliação médica presencial, para atualizar os dados sobre a estratificação do risco cardiovascular, uso atual de medicação e dados clínicos adicionais. Novas amostras de sangue também foram coletadas. Seis meses após o evento-índice, e a partir de então, anualmente, todos os participantes foram contatados por telefone para atualizar as informações sobre seu estado vital, histórico cardiovascular, medicações e sintomas.
Todos os participantes inscritos no estudo ERICO que tiveram amostras de sangue coletadas entre 25 e 90 dias após um episódio de SCA foram incluídos nesta análise. O limite inferior desse intervalo foi escolhido para evitar confusões causadas pelos níveis elevados esperados de Tnc circulante nos primeiros dias após um episódio de SCA; o limite superior de 90 dias permite comparação com estudos anteriores,13,16 embora atualmente não haja na literatura uma definição amplamente aceita de fase subaguda após a SCA. A Tnc-as foi medida em todos os pacientes, na apresentação hospitalar e na fase subaguda após o evento. O ensaio utilizado para medir a TnI-as foi o Advia Centaur TnI-Ultra Assay (Siemens Medical Solutions Diagnostics, Tarrytown, Nova York, EUA), com valor de referência de 0.04 mcg/L no 99º percentil em sujeitos saudáveis, e coeficiente de variação menor do que 10% neste intervalo. Os sujeitos foram classificados em três subgrupos, conforme os tercis de TnI-as na fase subaguda após o evento índice de SCA.
Neste estudo, nossos desfechos foram mortalidade por todas as causas e mortalidade cardiovascular. Pesquisamos regularmente os registros oficiais de óbitos para obter informações sobre todos os participantes quando: (1) recebíamos informações de que haviam morrido; ou (2) não conseguíamos contatá-los no momento. Os órgãos municipais e estaduais de saúde consultavam seus arquivos para obter certidões de óbito, e encaminhavam os resultados dessa consulta à equipe de pesquisa do ERICO. Dois médicos revisavam esses dados e classificavam a causa da morte dos participantes falecidos de acordo com as informações dos atestados de óbito. Os participantes recebiam uma definição de morte por causa cardiovascular (mortalidade cardiovascular) quando identificávamos uma causa de morte classificada no capítulo IX da 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), intitulada “Doenças do aparelho circulatório”, ou quando identificávamos uma causa de morte classificada com o código CID-10 R57.0 - “Choque cardiogênico”.
As análises estatísticas foram realizadas com R para Mac versão 3.5.0. As variáveis categóricas são apresentadas como proporções e comparadas por meio do teste do qui-quadrado. Para testar a suposição de normalidade na distribuição das variáveis contínuas, utilizamos o teste de Shapiro-Wilk. As variáveis contínuas com distribuição normal são apresentadas como médias (desvios padrão) e comparadas utilizando ANOVA unidirecional. Variáveis contínuas com distribuição não normal são apresentadas como medianas (intervalos interquartílicos) e comparadas por meio do teste de Kruskal-Wallis. As probabilidades de sobrevivência cumulativa nos tercis são apresentadas como curvas de Kaplan-Meier e comparadas utilizando o teste log-rank.
Construímos modelos de risco proporcional de Cox para a mortalidade por todas as causas e a mortalidade cardiovascular, e os apresentamos como modelos brutos, ajustados para idade e em dois modelos multivariados. O modelo 1 foi ajustado para idade, sexo, subtipo de SCA, fatores de risco cardiovascular tradicionais (hipertensão, diabetes, dislipidemia, histórico de tabagismo e índice de massa corporal) e uso de medicação na primeira consulta de acompanhamento (aspirina, clopidogrel, betabloqueadores, inibidores da enzima conversora de angiotensina, bloqueadores dos receptores da angiotensina II e estatinas). O modelo 2 foi ajustado, adicionalmente, para de TFG < 60 ml/min/1,73 m2 e fração de ejeção do ventrículo esquerdo < 0,40, duas variáveis associadas a um pior prognóstico em estudos anteriores.13,17 Todos os testes foram bilaterais, e o valor de p < 0,05 foi considerado significativo.
De fevereiro de 2009 a dezembro de 2013, 1085 pacientes foram incluídos no estudo ERICO. Tanto no pronto-socorro como entre 25 e 90 dias após o evento inicial, amostras de sangue foram coletadas de 525 desses participantes, os quais foram incluídos no presente estudo (mediana do segundo intervalo de coleta: 39 dias após o evento-índice; intervalo interquartílico: 33-50 dias). O diagnóstico inicial foi IAMST em 144 (27,4%) pacientes, IAMSST em 230 (43,8%) e AI em 151 (28,8%). A idade média foi de 61,6 anos, e 60,2% eram homens. Os principais fatores de risco cardiovascular encontrados nessa população foram hipertensão (75,5%), tabagismo atual ou prévio (66,9%) e sedentarismo (69,9%). Os valores de corte para TnI-as entre os tercis foram < 0,012, 0,013-0,023 e > 0,023 mcg/L. A maioria das amostras de TnI-as coletadas de pacientes na fase subaguda após SCA estavam abaixo do 99º percentil do método (83,8%). Os pacientes foram acompanhados durante uma média de 51 meses; as características basais do estudo, conforme os tercis TnI-as, são apresentadas na Tabela 1. Os indivíduos situados no tercil mais alto apresentavam maior probabilidade de ser do sexo masculino, ter diagnóstico de IAMST ou IAMSST no evento-índice, além de doença renal crônica e sedentarismo no início do estudo.
Tabela 1 Características basais da população estudada, conforme o tercil de troponina de 25 a 90 dias
Característica | 1º tercil | 2º tercil | 3º tercil | valor-p |
---|---|---|---|---|
Número de participantes | 179 | 171 | 175 | |
Faixa de troponina de 25 a 90 dias | < 0,012 | 0,012–0,023 | > 0,023 | |
Subtipo ACS (%) | ||||
AI | 80 (44,9) | 47 (27,5) | 24 (13,7) | < 0,001 |
IAMSST | 67 (37,4) | 77 (45,0) | 86 (49,1) | |
IAMST | 32 (17,9) | 47 (27,5) | 65 (37,1) | |
Idade* (anos) | 60 (51-68) | 63 (55-70) | 61 (53-73) | 0,05 |
Sexo masculino (%) | 95 (53,1) | 102 (59,6) | 119 (68,0) | 0,02 |
Histórico pregresso de DC (%) | 49 (29,2) | 39 (23,8) | 40 (25,2) | 0,51 |
Histórico familiar de DCC (%) | 52 (36,4) | 43 (31,4) | 50 (38,46) | 0,46 |
Hipertensão (%) | 136 (78,2) | 127 (75,1) | 126 (73,3) | 0,56 |
Diabetes (%) | 61 (35,7) | 61 (37,2) | 67 (39,6) | 0,75 |
Dislipidemia (%) | 87 (54,4) | 85 (55,6) | 75 (48,4) | 0,40 |
Insuficiência cardíaca (%) | 27 (16,2) | 36 (22,4) | 39 (23,8) | 0,19 |
Doença renal crônica (%) | 5 (3,1) | 6 (4,1) | 15 (10,3) | 0,02 |
Histórico de AVC (%) | 17 (9,9) | 15 (9,1) | 21 (12,1) | 0,91 |
Estilo de vida sedentário (%) | 117 (68,8) | 106 (63,5) | 127 (77,4) | 0,02 |
Status de tabagismo (%) | ||||
Atual | 44 (25,6) | 48 (28,7) | 58 (33,9) | 0,31 |
Passado | 68 (39,5) | 64 (38,3) | 69 (40,4) | |
Nunca | 60 (34,9) | 55 (32,9) | 44 (25,7) | |
Índice de massa corporal* | 27,1 (24,5-30,4) | 26,6 (24,2-29,4) | 26,0 (23,5-29,4) | 0,05 |
Colesterol total* (mg/dL) | 174 (145-205) | 169 (139-207) | 174 (141-205) | 0,65 |
Colesterol LDL * (mg/dL) | 101 (79-133) | 103 (79-136) | 109 (80-135) | |
Colesterol HDL * (mg/dL) | 37 (31-44) | 36 (31-44) | 36 (30-44) | |
Triglicérides* (mg/dL) | 131 (100–190) | 141 (97–192) | 130 (97–181) | |
Hemoglobina* (g/dL) | 14,3 (13,4-15,2) | 14,1 (13,1-15,2) | 14,2 (12,9-15,4) | 0,84 |
Níveis de troponina na admissão† (mcg/L) | 1,88 (0,09–9,20) | 7,03 (1,16–41,97) | 16,82 (3,05–44,16) | 0,32 |
Estimativa de TFG-CKD-Epi * (ml/min/1.73m2) | 83 (67-95) | 79 (62-92) | 71 (48-94) | < 0,001 |
FEVE < 0.40 (%) | 4 (3,5) | 8 (6,6) | 28 (21,9) | < 0,001 |
Medicação no 1º acompanhamento (%) | ||||
Aspirina | 155 (87,6) | 143 (83,6) | 134 (79,3) | 0,12 |
Clopidogrel | 92 (52,0) | 100 (58,5) | 82 (48,5) | 0,17 |
Betabloqueador | 117 (66,1) | 119 (69,6) | 96 (56,8) | 0,04 |
Estatina | 137 (77,4) | 135 (78,9) | 123 (72,8) | 0,38 |
Inibidor da ECA | 120 (67,8) | 108 (63,2) | 94 (55,6) | 0,06 |
Bloq. receptor angiotensina | 10 (5,6) | 15 (8,8) | 6 (3,6) | 0,12 |
*Mediana (intervalo interquartil).
A partir dos dados coletados após a admissão dos pacientes, uma menor taxa de filtração glomerular (calculada segundo a CKD-Epi) e uma menor fração de ejeção estimada na ecocardiografia foram fortemente correlacionadas com níveis persistentemente elevados de TnI-as (p <0,001).
A Figura 1 mostra as curvas de Kaplan-Meier para sobrevivência cumulativa conforme cada tercil de TnI-as durante o acompanhamento. Encontramos taxas de sobrevivência significativamente menores em indivíduos no tercil mais alto (p < 0,001). Análises avaliando a mortalidade cardiovascular como desfecho principal mostraram achados semelhantes (Figura 2).
Figura 1 Curva de Kaplan-Meier para mortalidade por todas as causas, conforme o tercil de TnI-as medida 25 a 90 dias após síndrome coronariana aguda.
Figura 2 Curva de Kaplan-Meier para mortalidade cardiovascular, conforme o tercil de TnI-as medida 25 a 90 dias após síndrome coronariana aguda.
A Tabela 2 mostra os resultados das análises da regressão de Cox. Quanto aos participantes situados no terceiro tercil de troponina, utilizando o primeiro tercil como referência, apresentaram uma razão de risco (HR) de 4,14 (Intervalo de Confiança 95% [IC 95%]: 2,19-7,86) para mortalidade por todas as causas, após ajuste para idade e sexo; esse efeito persistiu nos modelos de ajuste multivariado 1 (HR: 3,84; IC95%: 1,92-8,12) e 2 (HR: 6,53; IC95%: 2,12-20,14). Para a mortalidade cardiovascular, houve diferenças significativas entre o primeiro e o terceiro tercis após ajustes para idade e sexo (HR: 5,65; IC 95%: 1,94-16,47) e em ambos os modelos de ajuste multivariado 1 (HR: 4,90; IC 95%: 1,35-17,82) e 2 (HR: 5,89, IC 95%: 1,08-32,27).
Tabela 2 Taxas de risco e respectivos intervalos de confiança de 95% nos modelos bruto e ajustados por idade, e nos dois modelos ajustados de regressão multivariada de Cox
Bruto | Ajustado para sexo-idade | Ajuste de regressão multivariada (Modelo 1) |
Ajuste de regressão multivariada (Modelo 2) |
|
---|---|---|---|---|
Mortalidade por todas as causas | ||||
1º tercil | (referência) | 1,0 (referência) | 1,0 (referência) | 1,0 (referência) |
2º tercil | 2,44 (1,23-4,81) | 2,02 (1,02-4,01) | 1,86 (0,86-4,05) | 2,33 (0,74-7,33) |
3º tercil | 4,20 (2,22-7,94) | 4,14 (2,19-7,86) | 3,84 (1,92-8,12) | 6,53 (2,12-20,14) |
Mortalidade cardiovascular | ||||
1º tercil | (referência) | 1,0 (referência) | 1,0 (referência) | 1,0 (referência) |
2º tercil | 3,77 (1,24-11,47) | 2,90 (0,95-8,90) | 2,66 (0,72-9,84) | 1,30 (0,21-8,00) |
3º tercil | 6,05 (2,08-17,57) | 5,65 (1,94-16,47) | 4,90 (1,35-17,82) | 5,89 (1,08-32,27) |
Modelo 1: Ajustado para idade, sexo, subtipo da SCA, hipertensão, diabetes, dislipidemia, histórico de tabagismo, índice de massa corporal e uso de medicação no primeiro acompanhamento (25 a 90 dias após a SCA). Modelo 2: Modelo 1 acrescido de TFG estimada < 60 ml/min /1,73 m2 e FEVE < 0,40.
Nesta coorte de pacientes com níveis de TnI-as medidos 25 a 90 dias após um evento de SCA, os participantes apresentavam características sociodemográficas e comorbidades cardiovasculares semelhantes às de grandes registros internacionais, como o Registro Global de Eventos Coronarianos Agudos (GRACE).18 Como nesse registro, nossa coorte tinha uma população predominantemente masculina, com alta prevalência de hipertensão; outros fatores de risco cardiovascular, como insuficiência cardíaca e histórico de tabagismo, foram mais prevalentes em nosso estudo. O tipo de SCA mais frequente em nosso estudo foi o IAMSST (41,5% dos participantes), o que também é consistente com a tendência atual de incidência de IM,19 embora contrastante com a frequência menor de IAMSST na coorte do GRACE (26% dos participantes).18
O uso de medicamentos na primeira consulta de acompanhamento foi semelhante ao tratamento recebido na alta dos participantes do estudo do Registro Brasileiro de Síndromes Coronarianas Agudas (BRACE), que incluiu hospitais de todas as regiões do Brasil.20 Quando avaliamos a porcentagem de pacientes que receberam cada grupo terapêutico, encontramos claras semelhanças entre nosso estudo e o BRACE com relação ao uso de aspirina (83,6% vs. 86,0%, respectivamente), clopidogrel (53,0% vs. 50,1%), betabloqueadores (64,2% vs. 69,8%), inibidores da ECA/bloqueadores dos receptores da angiotensina (68,3% vs. 70,6%) e estatinas (76,4% vs. 82,7%). Esses dados também mostram que a adesão às terapias recomendadas pelas diretrizes ainda não era ótima na época do recrutamento desses participantes.
A maioria dos pacientes em nosso estudo (83,8%) apresentou níveis de TnI-as abaixo do 99º percentil durante a fase subaguda após um evento de SCA; entretanto, mesmo nessa faixa, os que se situavam no tercil mais alto apresentavam uma razão de risco maior para mortalidade por todas as causas e cardiovascular, em comparação com o primeiro tercil. Níveis elevados de TnI-as verificados 25 a 90 dias após uma SCA permaneceram sendo um fator de risco independente para mortalidade por todas as causas e mortalidade cardiovascular após ajustes para diversos fatores de confusão.
Os mecanismos pelos quais alguns pacientes apresentam elevações persistentes nos níveis de troponina cardíaca não estão bem estabelecidos. Estudos experimentais anteriores demonstraram a incidência de lesão miocárdica crônica após obstrução coronária mecânica induzida em ratos;21 apoptose acelerada por disfunção miocárdica crônica também foi demonstrada em pacientes com insuficiência cardíaca.22 Outros mecanismos propostos incluem a renovação normal dos miócitos, a liberação celular de produtos de degradação proteolítica, maior permeabilidade da parede celular dos miócitos e formação de bolhas nas paredes celulares, com a presença dessas proteínas.23
A associação entre níveis mais elevados de Tnc e desfechos piores em ambientes extra-hospitalares foi relatada por estudos anteriores. Em 2007, Eggers et al.,16 analisaram uma coorte de pacientes com troponina I (TnI) anteriormente gerada, medida em 6 semanas, 3 meses e 6 meses após um evento de SCA. Ao longo deste estudo, o subgrupo de pacientes com níveis permanentemente elevados de TnI (≥ 0,01) apresentou maior probabilidade de morte durante o acompanhamento do que os pacientes com TnI transitoriamente elevada ou negativa.16
Em 2012, dois estudos abordaram o papel prognóstico da troponina T cardíaca de alta sensibilidade (TnT-as) na fase estabilizada após um evento cardíaco. Ang et al.,13 acompanharam 326 pacientes por uma média de 30 meses, após medição da TnT-as 7 semanas após uma SCA; após ajustes para idade, subtipo da SCA, hipertensão, diabetes tipo 2, tabagismo, anemia, BNP, TFG estimada e achados ecocardiográficos, a TnT-as permaneceu como um forte preditor de morte e IM durante o acompanhamento. Koenig et al.,24 estudaram 1050 pacientes por uma média de 8,1 anos após um evento de SCA ou CRM, com níveis de TnT-as medidos aproximadamente 43 dias após o evento; os pacientes no quartil mais alto apresentavam maior risco de novos eventos cardíacos durante o período de observação. Um estudo publicado em 2014 também abordou o papel prognóstico da TnI-as após um episódio de SCA. White et al.,25 acompanharam 7.836 pacientes que haviam sofrido um evento de SCA; após uma média de 6 anos de seguimento, os pacientes no tercil mais alto apresentavam risco aumentado de morte por DAC e IM. Em comparação com a população de nosso estudo, esses estudos acompanharam pacientes com idade e TFG estimada semelhantes, mas com menor frequência basal de hipertensão, diabetes e dislipidemia.
Fora do escopo da SCA, vários estudos também encontraram uma associação entre níveis elevados de Tn cardíaca e risco de morte. Em pacientes com doença coronariana estável, um maior risco de mortalidade cardiovascular e de incidência de insuficiência cardíaca foi encontrado nos indivíduos com níveis mais altos de TnT-as26-28 e TnI-as.29 Também foi demonstrado que a elevação da TnT-as circulante está independentemente associada à maior mortalidade em pacientes ambulatoriais com insuficiência cardíaca estável,30,31 e em pacientes com estenose aórtica.32 Mesmo na população geral, de Lemos et al.,33 encontraram uma associação entre altos níveis de TnT-as e uma menor sobrevida em uma coorte populacional de 3546 indivíduos. Tais resultados sugerem que níveis persistentemente elevados de Tnc circulantes são marcadores gerais de maior risco de morte em diferentes populações, independentemente de idade e comorbidades.
Merecem destaque alguns aspectos de nosso estudo. Primeiramente, ele foi realizado em um hospital comunitário, sem equipe cardiológica própria; esse tipo de atendimento médico é recebido por muitos pacientes com SCA no Brasil, mas poucos estudos prognósticos foram publicados nesse cenário. Segundo, o tamanho da nossa amostra, bem como o acompanhamento a longo prazo, fazem deste um dos maiores estudos com biomarcadores prognósticos em pacientes com SCA no Brasil. Além disso, como pesquisamos os registros de óbito de todos os pacientes que não puderam ser contatados durante o acompanhamento, nossa análise da mortalidade por todas as causas não foi significativamente afetada por viés.
Este estudo tem algumas limitações. Como em todos os estudos unicêntricos, os resultados em ambos os grupos poderiam ter sido influenciados por práticas locais. Como as intervenções coronarianas não foram realizadas no local, os dados sobre o tipo de revascularização (se houve) não estavam acessíveis no caso da maioria dos pacientes, não podendo, portanto, ser computados em nosso modelo de Cox. Também não dispúnhamos de dados sobre a proporção de pacientes apresentando IAMSST que receberam terapia de reperfusão. Além disso, a adesão às terapias recomendadas pelas diretrizes para SCA foi subótima em nossa coorte. Por fim, apesar de usarmos ensaios padronizados para medir todos os níveis de troponina na fase subaguda da SCA, tais ensaios não foram os mesmos utilizados na admissão desses pacientes no hospital; isso impediu a realização de mais análises das tendências evolutivas dos níveis de TnI-as ao longo do tempo. Apesar dessas limitações, nossos achados puderam demonstrar uma associação entre níveis elevados de TnI-as e piores desfechos nessa população altamente miscigenada.
Níveis elevados de TnI-as na fase estabilizada após um evento de SCA estão associados a maior mortalidade cardiovascular e por todas as causas, independentemente de comorbidades, função renal e fração de ejeção do ventrículo esquerdo. Esses achados podem, potencialmente, melhorar a estratificação de risco de pacientes pós-SCA no ambiente ambulatorial.