versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.106 no.5 São Paulo maio 2016
https://doi.org/10.5935/abc.20160078
A fibrilação atrial (FA) é reconhecidamente a arritmia cardíaca mais frequente na prática clínica e responsável pelo maior número de internações hospitalares. Na população geral, sua prevalência é menor de 0,1% em indivíduos com menos de 50 anos, mas aumenta exponencialmente com o envelhecimento, atingindo cerca de 8% dos idosos com mais de 80 anos. Portanto, com o aumento da expectativa de vida da população, um número crescente de pacientes está ou ficará exposto aos riscos da FA nos próximos anos.1,2
A introdução recente de novos anticoagulantes trouxe um avanço considerável na prevenção da embolia cerebral, a complicação mais grave da FA.3,4 Entretanto, o desenvolvimento de fármacos antiarrítmicos mais eficazes não apresentou progresso no mesmo período. Assim, um grande número de pacientes ainda convive com as limitações inerentes à FA, devido ao comprometimento da qualidade de vida por sintomas como palpitações, diminuição da capacidade funcional ou manifestações de insuficiência cardíaca, acrescidos de problemas psicológicos inerentes a essas condições.5,6
Neste contexto, a ablação por cateter surgiu como o tratamento mais efetivo para controle do ritmo em pacientes com FA, sendo utilizada em número crescente de pacientes em todo o mundo ao longo da última década.1 A grande maioria dos trabalhos confirmaram a necessidade da obtenção do isolamento elétrico das veias pulmonares (VPs) para sucesso do procedimento, uma vez que o mecanismo eletrofisiológico deflagrador desta arritmia localiza-se predominantemente no interior dessas veias.7
A técnica inicialmente idealizada para ablação da FA visava identificar as fibras musculares no interior das VPs com um cateter circular multipolar, seguida de suas desconexões do átrio esquerdo (AE) em pontos específicos, com aplicações de radiofrequência (RF) na porção interna do óstio das respectivas veias.8 Embora o procedimento fosse tecnicamente muito objetivo em relação à demonstração do isolamento das VPs, estudos subsequentes identificaram risco significativo de estenose venosa e alta taxa de recorrência ao longo do seguimento clínico, por reconexões e, supostamente, pela persistência de focos deflagradores localizados fora da área de isolamento, nos antros das VPs.8
Estas observações motivaram a mudança da estratégia para a técnica atual, que visa o isolamento (extraostial amplo) dos antros das VPs.1,8 Para isso, foram desenvolvidos e progressivamente aprimorados sistemas de mapeamento que permitem a construção virtual precisa da anatomia do AE e de sua respectiva drenagem venosa em três dimensões e sua visualização em tempo real. Além disso, foram introduzidos sistemas mais efetivos para liberar a RF e obter lesões atriais transmurais (cateteres com ponta de 8 mm, posteriormente com 3,5 mm e irrigada e, atualmente, com sensor de contato). Estudos comparativos mostraram claro progresso na taxa de sucesso no seguimento clínico e redução importante do risco de estenose das VPs.1,9 Entretanto, essas mudanças técnicas criaram condições para uma nova complicação que, embora rara, é altamente letal: a fístula átrio-esofágica (FAE).10
A parede posterior do AE mantém íntima relação anatômica com a parede anterior do esôfago.11 Consequentemente, o deslocamento das linhas de ablação dos óstios das VPs para a parede posterior do AE aproxima as linhas de isolamento em direção ao esôfago, cuja parede pode sofrer lesão térmica por contiguidade. Essa lesão, por sua vez, pode evoluir para uma lesão transmural e erosão de mucosa, que eventualmente progride para úlcera (por refluxo ácido gastroesofágico) e, mais raramente, fistulização para o AE.12
Os sintomas iniciais da FAE surgem classicamente entre 2 a 4 semanas após a ablação (há raros casos tardios entre 5 e 6 semanas).10 São aparentemente inocentes, como desconforto retroesternal leve, febre e leucocitose, e sem uma causa aparente. Se o processo não for diagnosticado e interrompido, evolui rapidamente para hematêmese e manifestações de septicemia por embolia séptica sistêmica e cerebral. Nesta fase, a recuperação completa, mesmo após cirurgia reparadora da fístula, é rara; aproximadamente 80% dos pacientes não sobrevivem ou persistem com sequelas neurológicas graves.10
Portanto, é fundamental que os clínicos que acompanham os pacientes no período posterior à ablação da FA tenham conhecimento destes fatos e tomem decisões rápidas para esclarecimento do diagnóstico e início do tratamento.
A FAE como consequência da ablação por cateter da FA foi descrita pela primeira vez em 2004, logo após as referidas mudanças da técnica.13,14 Sua ocorrência foi inicialmente interpretada como um problema transitório que poderia ser prevenido pelo reconhecimento das relações anatômicas do esôfago com o AE e VPs durante o procedimento e pela redução da energia de RF durante a ablação da parede posterior do AE em proximidade com o esôfago. No entanto, passados mais de 10 anos, a ocorrência da FAE ainda persiste como uma das mais preocupantes complicações da ablação da FA pela sua imprevisibilidade e gravidade.
Na atualidade, a FAE após ablação de FA tem sido descrita em torno de 0,1% dos procedimentos, mesmo quando realizados em centros experientes, sem uma convincente demonstração de que uma estratégia específica possa evitá-la com certeza.1,10 Estudo recente, reunindo a experiência de oito centros brasileiros com 8.500 procedimentos realizados identificou 10 casos de FAE (0,116%), todos ocorridos após a introdução da técnica de ablação circunferencial das VPs. Os dois primeiros casos ocorreram em 2004 e 2005 quando o risco da complicação de FAE ainda não era conhecido, com uma incidência em torno de 1%; os outros oito casos ocorreram entre 2008 e 2015 com incidência de 0,1%, após introdução das várias medidas preventivas, como monitorização da posição do esôfago, redução da potência da aplicação de RF na parede posterior do AE, monitorização da temperatura esofágica durante a ablação, uso de mapeamento eletroanatômico para dirigir as aplicações, ecocardiografia intracardíaca e monitorização da pressão do cateter de ablação.15
O aumento do número de casos no último período provavelmente está relacionado com o aumento do número de procedimentos realizados em nosso país. Mas vale salientar que o aprimoramento dos dispositivos para tornar a ablação mais efetiva e reduzir as reconexões das VPs (motivo mais frequente de recorrência após a ablação) também pode elevar a taxa de lesões esofágicas se medidas mais efetivas para proteger o esôfago não forem tomadas.
Em nosso meio, o método mais utilizado para evitar as lesões térmicas do esôfago é a monitorização da temperatura esofágica com ajustes da potência durante a aplicação de RF na parede posterior do AE.16 Habitualmente, a potência da aplicação de RF é de 30 a 40 W com os cateteres com ponta irrigada, durante a realização das linhas anteriores. Quando as aplicações são dirigidas para as linhas posteriores e em proximidade com o esôfago (identificado pelo termômetro radiopaco ao raio X), reduz-se a potência para 20 W e o tempo de aplicação (20 seg), evitando-se alta pressão de contato (10 g). A elevação da temperatura esofágica determina, em geral, a pronta interrupção da aplicação. Entretanto, há controvérsia entre diferentes serviços sobre o limite da temperatura para determinar a interrupção da aplicação, variando da elevação de 1ºC da temperatura inicial (nossa conduta) ou quando atinge o limite de 38,5ºC ou 41ºC.17,18 Dependendo da condição, a potência é reduzida para 15 ou 10 W e a aplicação é repetida após a redução da temperatura. Estas baixas potências por um lado dificultam a realização de lesões transmurais contíguas em tecido um pouco mais espesso e nem sempre evitam os aumentos de temperatura esofágica; por outro, frequentemente diminuem a taxa de sucesso do procedimento. A taxa de erosão do esôfago varia entre 5% a 40% quando a endoscopia digestiva é realizada sistematicamente nos primeiros dias após a ablação e depende das técnicas e limites para interrupção da aplicação utilizados durante o procedimento.10,12,16-18
A aplicação da monitorização da temperatura esofágica apresenta algumas limitações.19 O termômetro mais utilizado dispõe de apenas um eletrodo distal em um cateter linear não flexível que é mobilizado no sentido inferior e superior do esôfago para ser posicionado o mais próximo possível do local de ablação na parede posterior do AE. Para isso, é necessário que um profissional dedicado mobilize o termômetro a cada movimento do cateter de ablação. Outra limitação importante é que a falta de elevação crítica da temperatura no esôfago não significa necessariamente que o esôfago esteja afastado, pois pelas suas características anatômicas, pode estar comprimido (e não tubular) e o termômetro ocupar apenas uma parte de sua luz (que será bem monitorizada), deixando de mensurar a temperatura real da borda contralateral.
Para sanar essas duas limitações, foi desenvolvido um outro termômetro esofágico com múltiplos eletrodos distribuídos ao longo do cateter em um formato sinusoidal para ocupar a superfície achatada do esôfago.20 A utilização clínica deste segundo sistema tem mostrado maior sensibilidade e rapidez na detecção da elevação da temperatura esofágica, mas não há estudos randomizados comparando a eficácia dos dois sistemas ou a capacidade deste dispositivo em manter o esôfago distendido, aproximando-o do AE.19,20
Outro problema também ainda não resolvido é como conseguir produzir lesões efetivas e com segurança em áreas do AE em clara proximidade com o esôfago. Uma vez que o esôfago está livre na cavidade torácica, a proposta mais recente, promissora e em avaliação, é a mobilização do esôfago por um sistema mecânico dedicado para este fim. Uma vez documentada a relação do esôfago com a área de ablação no AE, o deslocador afastaria o esôfago da área em risco, permitindo aplicações mais efetivas com segurança.21
Não há diretrizes definidas sobre o manuseio do paciente com lesões esofágicas após a ablação da FA, assim como não há estudos clínicos comprovando a eficácia e segurança dos procedimentos que têm sido utilizados. Em nosso serviço, utilizamos a monitorização esofágica regularmente, com um dos sistemas citados e, atualmente, temos realizado endoscopia digestiva alta 24-72 horas após a ablação em todos os pacientes, independente da elevação da temperatura esofágica. O nosso objetivo é identificar a incidência real de lesões esofágicas e estabelecer as situações nas quais a realização da endoscopia é absolutamente necessária.
Fármacos bloqueadores de prótons (omeprazol ou pantoprazol) têm sido recomendados em dose alta (40 mg duas vezes ao dia) após a ablação por 30 dias, para reduzir o refluxo ácido para o esôfago, independente dos achados de monitorização da temperatura esofágica durante o procedimento. Nos pacientes com lesões esofagianas (eritema, erosão e hematoma) adicionamos sucralfato 2,0 g nos intervalos das refeições e orientamos dieta leve e pastosa. Pacientes com evidência de algum grau de gastroparesia na endoscopia ou com manifestação clínica também recebem bromoprida (10 mg três a quatro vezes ao dia) por 30 dias. Com estas medidas, as lesões agudas desaparecem, em grande maioria, na avaliação endoscópica realizada após 7 a 10 dias. Entretanto, há casos nos quais a lesão progride e adquire aspecto de úlcera ativa. A situação se torna mais preocupante se o paciente apresentar febre. Nesta condição, o paciente deve ser internado e permanecer em jejum alimentar, com monitoramento do leucograma e marcadores bioquímicos de resposta inflamatória (proteína C reativa e procalcitonina). A tomografia (TC) de tórax com contraste oral para investigar possível formação de fístula deve ser realizada. A esofagoscopia deve ser evitada nessa situação, pelo risco de embolização gasosa no caso de fístula presente.
Os sinais clássicos encontrados na TC são a presença de imagens gasosas ou infiltração de contraste no mediastino ou pericárdio. Os pacientes sem evidência de infecção e TC normal são mantidos internados sob monitorização, com manutenção do tratamento clínico da úlcera. Nos casos com resposta infecciosa mas sem fistulização definida, deve-se iniciar jejum prolongado com hidratação e alimentação parenteral, administrar atropina para reduzir a secreção salivar e antibioticoterapia de amplo espectro. Uma equipe de gastrocirurgia deve ser convocada para acompanhamento, pois uma intervenção de emergência pode ser necessária.22
A TC ou ressonância magnética (RNM) é repetida 1 semana após para avaliação da evolução. Em caso de evidência clínica de fistulização (embolia sistêmica ou cerebral, ou hematêmese) o paciente deve ser operado imediatamente. Quando o procedimento é realizado poucas horas após a manifestação inicial, há perspectiva de boa recuperação clínica; caso contrário, as taxas de mortalidade ou sequela definitiva são elevadas.22
Novas tecnologias para isolamento das VPs têm sido incorporadas no uso clínico. Dentre essas, a crioablação por balão foi a mais estudada. Na experiência inicial com balões de primeira geração (23 mm), não havia relatos de FAE, pois as lesões eram mais ostiais. Já nos de segunda geração, principalmente com balão de 28 mm, com o resfriamento mais potente envolvendo toda a face anterior do balão, há relatos de ocorrência de FAE23 e alguns grupos já iniciaram a monitoração da temperatura esofágica durante seu uso. Do outro lado, estão os sistemas com uso de RF aplicada simultaneamente por vários eletrodos montados em um cateter com ponta circular, posicionado ao redor dos óstios das VPs. Esses sistemas permitem que o operador aplique RF em todos os eletrodos simultaneamente, com objetivo de encurtar o tempo de procedimento. A FAE já foi relatada com a utilização dos sistemas que utilizam eletrodos irrigados (nMARQ).24 Ainda não há relatos de FAE com uso do outro sistema (PVAC) recentemente introduzido no Brasil, no qual os eletrodos não são irrigados e as aplicações são intermitentes; entretanto, endoscopias realizadas após a ablação revelaram lesões esofagianas em até 40% dos pacientes.25
Em um editorial que escrevemos em 2005 para o Journal of Cardiovascular Electrophysiology (JCE) a propósito de uma das medidas de prevenção da FAE após publicação dos três casos iniciais na literatura, alertamos: "Toda vez que uma nova intervenção, técnica ou tecnologia é proposta, uma nova complicação ou efeito adverso deverá ocorrer ... É apenas uma questão de tempo! Nesta situação, nossos esforços devem estar concentrados em como identificá-la, minimizá-la e evitá-la!".26 Nossa percepção é de que esta mensagem mantém-se atual e que os médicos envolvidos no tratamento de pacientes com FA devam estar informados e alertas, pois as FAE ainda persistem, apesar da intensa evolução tecnológica ocorrida na ablação de FA neste período.
Em conclusão, um maior refinamento da tecnologia continua sendo necessário não só para tornar a ablação da FA por cateter mais efetiva, mas também mais segura. Os eletrofisiologistas devem estar atentos aos aspectos técnicos que podem evitar as lesões esofágicas e os clínicos que acompanham os pacientes devem estar alertas para identificar precocemente as possíveis lesões que devem ser tratadas o quanto antes.