versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.110 no.5 São Paulo maio 2018 Epub 03-Maio-2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180069
A ablação por cateter da fibrilação atrial (FA) é realizada com menor frequência em mulheres. Além disso, há informações divergentes na literatura em relação à eficácia e segurança do procedimento ablativo no sexo feminino.
O objetivo deste estudo é comparar as características clínicas e desfechos em homens e mulheres submetidos à ablação de fibrilação atrial paroxística (FAP).
Estudo do tipo coorte de pacientes submetidos ao primeiro procedimento de ablação por cateter de FAP refratária a drogas antiarrítmicas. As informações foram retiradas dos prontuários dos pacientes por meio de instrumento digital de coleta e indexadas a uma base de dados online (Syscardio®). As características clínicas e procedimentos foram comparados entre gêneros (H x M), sendo adotado nível de significância estatística de 5%. O desfecho primário associado à eficácia foi ausência de arritmia atrial ao longo do seguimento com único procedimento.
225 pacientes foram incluídos no estudo, 64 (29%) mulheres e 161 (71%) homens. Mulheres apresentaram mais sintomas devido à FA segundo o escore CCS-SAF (1,8 ± 0,8H x 2,3 ± 0,8M p = 0,02) e maior escore CHADS2 em relação aos homens (0,9 ± 0,8H x 1,2 ± 1M). A recorrência pós-ablação ocorreu em 20% dos pacientes, não havendo diferença associada ao gênero (21%H x 20%M p = 0,2). A taxa de complicações foi inferior a 3%, tanto para homens como mulheres (p = 0,8).
Mulheres submetidas ao primeiro procedimento de ablação por cateter de FAP apresentam taxa de complicação e desfecho clínico semelhante comparado aos homens. Estes achados sugerem que a atual subutilização da ablação de FA por cateter em mulheres possa representar uma discrepância no cuidado.
Palavras-chave: Arritmias Cardíacas; Fibrilação Atrial; Ablação por Cateter; Eletrofisiologia Cardíaca; Gênero
The catheter ablation of atrial fibrillation (AF) is performed less frequently in women. In addition, there is divergent information in the literature regarding the effectiveness and safety for the ablative procedure to females.
The objective of this study was to compare the clinical characteristics and outcomes in men and women undergoing paroxysmal atrial fibrillation (PAF) ablation.
Cohort study of patients undergoing first-ever PAF catheter ablation procedure refractory to antiarrhythmic drugs. The information was taken from patients’ records by means of a digital collection instrument and indexed to an online database (Syscardio®). Clinical characteristics and procedures were compared between each gender (M x F), adopting a level of statistical significance of 5%. The primary endpoint associated with efficacy was freedom from atrial arrhythmia over the follow-up time.
225 patients were included in the study, 64 (29%) women and 161 (71%) men. Women presented more symptoms due to AF according to the CCS-SAF score (1.8 ± 0.8M x 2.3 ± 0.8F p = 0.02) and higher CHADS2 score compared to men (0.9 ± 0.8M x 1.2 ± 1F). Post-ablation recurrence occurred in 20% of the patients, with no difference based on gender (21% M x 20% F p = 0.52). The rate of complications was less than 3% for both groups (p = 0.98).
Women undergoing the first-ever PAF catheter ablation procedure present similar complication rate and clinical outcome compared to men. These findings suggest that the current underutilization of AF catheter ablation in women may represent a discrepancy in care.
Keywords: Arrhythmias,Cardiac; Atrial Fibrillation; Catheter Ablation; Cardiac Electrophysiology; Gender
Apesar da prevalência de fibrilação atrial (FA) ajustada por idade ser relativamente maior em homens que mulheres, o número absoluto de portadores da arritmia entre os gêneros é semelhante, com a maioria dos casos ocorrendo em pacientes entre 65 e 85 anos, período este em que, proporcionalmente, mais mulheres estão vivas.1
Estudos populacionais demonstram menores taxas de indicação e realização do tratamento ablativo da FA em mulheres com fibrilação atrial quando comparadas aos homens.2-5 No entanto, não é claro se isto representa uma discrepância assistencial ou uma diferença real. Partindo-se do pressuposto de que maiores taxas de complicações e recorrência ocorrem em mulheres comparativamente aos homens, a subutilização da ablação de FA em mulheres, neste caso, poderia ser entendida como uma diferença apropriada e não carência direta na assistência.
Estudos prévios avaliando diferenças entre os gêneros quanto à segurança e eficácia da ablação da FA por cateter apresentam resultados contraditórios, sendo escassa a literatura nacional quanto ao tema.6-13 Neste estudo, avaliamos as características clínicas e desfechos de uma coorte brasileira atual de mulheres submetidas à ablação de FA por cateter comparativamente aos resultados obtidos em homens.
Estudo do tipo coorte de pacientes submetidos ao primeiro procedimento de ablação por cateter de fibrilação atrial paroxística (FAP) refratária a drogas antiarrítmicas com tempo de acompanhamento mínimo por paciente igual a 12 meses. O estudo foi realizado entre 2013 e 2015 em um único centro. As informações foram retiradas dos prontuários dos pacientes por meio de instrumento digital de coleta e indexadas a uma base de dados online (Syscardio®). As características clínicas e procedimentos foram comparados entre cada gênero (H x M). O desfecho primário associado à eficácia foi a ausência de arritmia atrial com duração > 30 segundos durante o período de acompanhamento após o primeiro e único procedimento de ablação.
Todos os pacientes foram submetidos ao isolamento circunferencial das veias pulmonares (VPs) por meio de ablação por cateter irrigado com ponta de 3,5 mm sem aferição da força de contato, utilizando energia de radiofrequência com aplicações de até 35 Watts e 43ºC por 10-45 segundos e demonstração de bloqueio elétrico de entrada e saída das VPs em relação ao átrio esquerdo ao final do isolamento. Todos os procedimentos foram realizados sob anestesia geral, intubação orotraqueal e monitoramento invasivo da pressão arterial por punção radial ou femoral esquerda aos cuidados de anestesiologista. As punções transeptais foram realizadas com auxílio de Eco intracardíaco, que foi mantido durante todo o procedimento. Aplicações na parede posterior do átrio esquerdo foram monitoradas por meio de termômetro esofágico com sensores múltiplos recobertos (Circa) e interrompidas sempre que houvesse alteração na temperatura esofágica acima de 38ºC. Durante todos os procedimentos, realizados com sistema de mapeamento eletro-anatômico baseado em impedância torácica (EnSite Navx - Abbott), foi realizado bolus de heparina IV de 100 mg/kg seguida de infusão contínua para manter um tempo de coagulação ativado entre 350 e 450 seg.
Após o procedimento os pacientes permaneceram em uso de drogas antiarrítmicas (propafenona, sotalol ou amiodarona dependendo da preferência do médico assistente) por 1 mês e de anticoagulante por um período mínimo de 3 meses independentemente do CHA2DS2-VASc. Realizado acompanhamento clínico 1, 3, 6 e 12 meses após o procedimento com realização de ECG e no mínimo dois Holters ao longo de todo o seguimento clínico. Na 10ª semana após a ablação, os pacientes foram encorajados a realizar monitorização eletrocardiográfica continua (Holter) de 5 dias. Qualquer arritmia atrial maior que 30 segundos de duração documentada após 1 mês de blanking period indicou recorrência da arritmia.14 A severidade dos sintomas antes da ablação e durante as eventuais recorrências foi caracterizada pelo escore CCS-SAF (Canadian Cardiovascular Society Severity of Atrial Fibrillation).15
As características clínicas e procedimentos foram comparados entre cada gênero (H x M). As taxas de recorrência após um único procedimento, assim como as complicações também foram comparadas entre os grupos. Adotou-se uma amostra por conveniência (não-probabilística) durante o tempo de estudo, respeitando-se os critérios de inclusão/exclusão e tempo de seguimento.
Variáveis contínuas foram descritas como média e desvio padrão e comparadas utilizando teste-T de Student não-pareado (bicaudal), respeitando-se os critérios de normalidade pelo teste de Shapiro-Wilk. Variáveis categóricas foram descritas por número absoluto e porcentagens em relação à amostra total, sendo comparadas utilizando-se o teste de c² ou Exato de Fischer. O nível de significância estatística adotado foi de 5%. Foi utilizado curva de Kaplan-Meier para evidenciar as taxas de recorrência ao longo do tempo de seguimento e o teste de Log-Rank para avaliar diferença entre os grupos (H x M). A análise estatística foi realizada utilizando-se IBM SPSS Statistics Editor software, versão 22.0.
Foram incluídos na análise do estudo 225 pacientes submetidos à ablação de FA: 161 (71%) homens e 64 (29%) mulheres. Em relação ao tempo de acompanhamento, não houve diferença entre homens e mulheres. A tabela 1 resume as características clínicas dos homens e mulheres submetidos à ablação de FA paroxística durante o período estudado. Em relação à média de idades, mulheres submetidas à ablação por cateter eram mais velhas que os homens (57 ± 11 H x 62 ± 9 M p < 0,1) porém não houve diferença entre os grupos em relação ao índice de massa corporal (IMC) e o diâmetro anteroposterior do átrio esquerdo, apesar de uma menor fração de ejeção do VE, possivelmente sem relevância clínica, ter sido observada entre os homens (63 ± 10% H x 66 ± 6% M p < 0,5).
Tabela 1 Características clínicas de pacientes submetidos à ablação de FA, categorização por gênero
Variáveis | Homens (n = 161) | Mulheres (n = 64) | Valor de p |
---|---|---|---|
Idade (anos) | 57 ± 11 | 62 ± 9 | 0,001* |
IMC | 27 ± 3,7 | 27 ± 5 | 0,64 |
Fração de Ejeção (%) | 63 ± 10 | 66 ± 6 | 0,02* |
Diâmetro do AE (mm) | 38 ± 5 | 38 ± 5 | 0,93 |
CHADS2 | 0,9 ± 0,8 | 1,2 ± 1 | 0,04* |
ICC | 12 (7%) | 4 (6%) | 0,73 |
HAS | 85 (52%) | 43 (67%) | 0,06 |
Diabetes Mellitus | 17 (10%) | 11 (17%) | 0,18 |
Doença Art. Coronária | 25 (15%) | 12 (19%) | 0,44 |
AVC/AIT prévio | 6 (4% ) | 5 (8%) | 0,06 |
CCS SAF escore | 1,8 ± 0,8 | 2,3 ± 0,8 | 0,02* |
Uso Estatina | 44 (27%) | 26 (40%) | 0,03 |
Inib ECA/ARA-2 | 66 (41%) | 30 (46%) | 0,25 |
Uso prévio/atual de AA | 134 (83%) | 58 (90%) | 0,21 |
Tempo diagnóstico (meses) | 11 ± 12 | 14 ± 10 | 0,87 |
Tempo de seguimento (meses) | 34 ± 17 (12 - 66) | 33 ± 14 (13 - 64) | 0,87 |
Valores com ± indicam a média e desvio padrão; CCS SAF: Canadian Cardiovascular Society Severity of Atrial Fibrillation scale; ECA: enzima conversora de angiotensina; ARA-2: antagonista do receptor de angiotensina 2; Teste t de Student e χ2 para amostras independentes.
*p-valor indica diferença estatisticamente significativa ao nível de 5%
Também não houve diferença entre os gêneros no tocante as comorbidades como hipertensão arterial, diabetes mellitus, insuficiência cardíaca, doença coronariana e história pregressa de AVC/AIT. No entanto, mulheres apresentaram maior escore CHADS2 (0,9 ± 0,8 H x 1,2 ± 1 M; p = 0,04) e foram mais sintomáticas do que os homens segundo o escore CCS-SAF (1,8 ± 0,8 H x 2,3 ± 0,8 M p = 0,02). Entre os gêneros, não houve diferença na proporção do uso de Inibidores ECA/ARA-2 e drogas antiarrítmicas, porém, mulheres mostraram maior utilização de estatinas em comparação aos homens (27% H x 40% M p = 0,03 - Tabela 1).
As taxas de recorrência após único procedimento de ablação foram semelhantes entre os grupos (21% H x 20% M p = 0,52). A tabela 2 resume os resultados dos procedimentos assim como as complicações por gênero. Houve 3 pseudoaneurismas inguinais, 1 hematoma inguinal e 1 trauma uretral durante sondagem vesical no grupo dos homens; entre as mulheres observou-se 1 hematoma inguinal e 1 hematoma retroperitoneal (5 (3%) H x 2 (3%) M p = 0,98). Apesar de terem prolongado o tempo de hospitalização, nenhuma das complicações necessitou de intervenção cirúrgica para ser controlada. Ao longo do estudo, não foram relatadas fístulas átrio-esofágicas, derrames pericárdicos, AIT/AVC pós-ablação ou óbito.
Tabela 2 Resultado dos procedimentos: Eficácia e segurança
Variáveis | Homens (n = 161) | Mulheres (n = 64) | Valor de p |
---|---|---|---|
Nº de procedimentos | 195 | 77 | - |
Complicações* | 5 (3%) | 2 (3%) | 0,98 |
Tempo de internação | 2,5 ± 0,7 dias | 2,1 ± 0,8 dias | 0,76 |
Recorrência | 34/161 (21%) | 13/64 (20%) | 0,89 |
Valores com ± indicam a média e desvio padrão;
*Homens: 3 pseudoaneurismas inguinais, 1 hematoma inguinal e 1 trauma uretral (sondagem vesical), Mulheres: 1 hematoma inguinal e 1 hematoma retroperitoneal; Não houve óbitos. Teste t de Student e χ2. p-valor indica diferença estatisticamente significativa ao nível de 5%
A curva de Kaplan-Meier (Figura 1) mostra, ao longo do estudo, equidade entre os gêneros em relação as taxas de recorrência, que ocorreram com maior frequência nos 12 primeiros meses de seguimento, independentemente do gênero do paciente. Não houve diferença no tempo de internação (dias) dos pacientes categorizados por gênero (2,5 ± 0,7 H x 2,1 ± 0,8 M p = 0,76).
Diferenças específicas associadas ao gênero podem influenciar as condutas clínicas e terapêuticas na assistência de mulheres portadoras de FA. Em estudo canadense, Singh et al.,16 caracterizaram a equivalência e homogeneidade da segurança e eficácia do procedimento ablativo entre homens e mulheres com FA Persistente (post-hoc MAGIC-AF Trial),16 garantindo a segurança do mesmo. No presente estudo, em uma coorte atual de pacientes com FA paroxística submetidos ao primeiro procedimento de ablação por cateter, sugere-se que as taxas de recorrência e complicações independem do gênero do paciente. Tais achados indicam que eventuais considerações clínicas acerca da segurança e eficácia do procedimento ablativo em mulheres com FA possam ser a principal causa da subutilização da ablação em pacientes do sexo feminino.
Diferenças relacionadas ao gênero no controle farmacológico do ritmo cardíaco são bem descritas na literatura. As mulheres mostram-se mais sintomáticas pelo escore CCS-SAF e referem uma menor melhora na qualidade de vida quando submetidas a tratamento medicamentoso, comparado aos homens.17 Além disso, pacientes do sexo feminino apresentam uma maior taxa de toxicidade e intolerabilidade a drogas antiarrítmicas maior que os homens, estando mais propensas a Torsade de Pointes e necessidade de implantes de marcapasso por bradicardia induzida por drogas.17,18 Portanto, a ablação por cateter pode ser cogitada como uma alternativa precoce para o tratamento de mulheres com FA: trata-se de um método terapêutico superior à terapia medicamentosa na manutenção do ritmo sinusal19 com baixas taxas de complicações, na mesma proporção que os homens.
Especula-se que haja diferenças biológicas no mecanismo da FA entre homens e mulheres que, em tese, poderiam justificar resultados distintos quando estes são submetidos à ablação, porém tal hipótese parece improvável. Em estudos prévios, Walters et al.,20 demonstraram similaridade quanto características eletrofisiológicas do átrio esquerdo e veias pulmonares de homens e mulheres.20 Da mesma forma, Pfannmuller et al.,21 constataram não haver diferenças específicas entre os gêneros decorrente do remodelamento atrial na FA por meio da expressão de proteínas amiloides, colágenas ou vinculadas as junções intercelulares (gap junctions).21
Em nosso estudo, a hipótese de que mulheres com FA em idades avançadas apresentam maior remodelamento elétrico e estrutural do átrio e, consequentemente, pior desfecho pós-ablação, não foi validada. O grupo das mulheres foi mais velho do que o dos homens e, no entanto, o tempo de diagnóstico da arritmia é semelhante em ambos os gêneros. Somado a isso, o diâmetro do átrio esquerdo, marcador para recorrência clínica pós-ablação, acidente vascular encefálico e morte,22,23 foi semelhante em ambos os grupos. O fato dos mesmos desfechos clínicos terem sido observados a longo prazo entre os grupos também sugere que, em nosso estudo, não haja diferenças biológicas significativas entre homens e mulheres submetidos a ablação FA.24
Além de retrospectivo, o tamanho da amostra pode não ter sido suficiente para evidenciar diferenças entre os grupos (H x M). A existência de viés de seleção em nossa coorte também deve ser considerado, já que somente mulheres candidatas e submetidas ao procedimento de ablação foram incluídas na análise. Por último, não foi realizada uma análise detalhada na avaliação dos sintomas decorrentes da FA; em vez disso, utilizou-se o escore CCS-SAF de maneira abrangente.
Em conclusão, nesta população, mulheres submetidas ao primeiro procedimento de ablação por cateter de FA apresentam resultados clínicos relativos à segurança e eficácia do procedimento semelhantes aos homens.