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Aborto por opção da mulher: a experiência portuguesa da implementação da Rede Nacional

Aborto por opção da mulher: a experiência portuguesa da implementação da Rede Nacional

Autores:

Lisa Ferreira Vicente

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.36 supl.1 Rio de Janeiro 2020 Epub 06-Abr-2020

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00036219

Introdução

Até 1984, a prática de aborto era ilícita em Portugal. Ainda hoje o aborto, de acordo com o Código Penal Português, é considerado um crime contra a vida intrauterina. Ao longo dos anos, a Lei Portuguesa foi incorporando diferentes razões que excluem a ilicitude do aborto. Primeiro, em 1984, por decisão na Assembleia da República, passaram a constituir motivos para a exclusão da ilicitude da prática de aborto as situações de doença materna e fetal grave, a violação e, de uma forma mais ampla, os crimes contra a autodeterminação sexual. São por isso situações aceitas há 35 anos nos serviços de saúde portugueses.

Em 1998, existiu um referendo nacional em que foi colocada à discussão a questão sobre a descriminalização do aborto por opção da mulher. Votaram “Não” 50,9% e “Sim” 49,1%. A abstenção foi superior a 50% (votaram 31,9% dos eleitores) o que tornou o referendo não vinculativo.

Em 2007, na sequência de um segundo referendo nacional sobre a descriminalização do aborto por opção da mulher, o movimento “Pelo Sim” ganhou com 59,3% dos votos (votaram 43,6% dos eleitores). Com esse resultado, o aborto por decisão da mulher deixou de ser ilícito quando realizado até as 10 semanas de gestação em unidades oficiais ou oficialmente reconhecidas 1,2.

Desconhece-se o número absoluto de abortos realizados por vontade da mulher antes de 2007. O fato de serem realizados na ilegalidade fazia com que apenas pudessem ser estimados indiretamente por meio do número de atendimentos por complicações registadas nos serviços de saúde, ou com base em estudos e inquéritos realizados em Portugal até essa data.

No Inquérito sobre a Fecundidade de 1997, 2% das mulheres entre os 15-24 anos, 5,1% entre os 25-34 anos e 9,7% entre os 35-49 anos referiram ter realizado pelo menos um aborto 3. A análise dos dados da Rede de Médicos Sentinela e dos diagnósticos de altas hospitalares de 1993-1997 4 estimava que existiram cerca de 20 mil abortos ilegais por ano. Num outro trabalho realizado pela Associação para o Planeamento da Família 5, com 2.000 mulheres entre 18-49 anos de todo o país, 20% delas já tinham realizando pelo menos um aborto.

Implementação da rede de resposta para as interrupções de gravidez até as 10 semanas

Há 12 anos, deixou de ser ilícita a prática de aborto a pedido da mulher, nas primeiras 10 semanas de gestação, quando realizada em unidades oficiais ou oficialmente reconhecidas 1,2. Nessa situação, estão as unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS de Obstetrícia-Ginecologia) e unidades Privadas, que foram certificadas para realizá-lo pelas entidades competentes (nomeadamente a Direção-Geral da Saúde). Ao longo dos anos, chegaram a existir quatro unidades Privadas nessa situação. Neste momento, estão em funcionamento apenas duas unidades em Lisboa.

Quando em 2007 foi necessário criar uma rede de resposta para as interrupções de gravidez até às 10 semanas, alguns aspetos fundamentais determinaram as características dos serviços e da rede de resposta, nomeadamente:

(a) a existência de uma rede de referência materno-infantil preexistente, que serviu de base à concretização e articulação dos cuidados a prestar;

(b) a publicação de um conjunto de protocolos de atuação 6,7,8,9;

(c) a introdução simultânea de uma base nacional de registo on-line obrigatória para a introdução dos dados de todos os serviços públicos e privados 10;

(d) a publicação anual dos dados sobre a interrupção de gravidez por todos os motivos;

(e) a disponibilidade do fármaco mifepristona e a existência de estudos que permitiram a sua utilização na interrupção de gravidez medicamentosa de forma segura;

(f) a preocupação na formação contínua e a troca de experiências entre os profissionais que trabalham nesses serviços e consultas. Exemplo claro disso é o fato de continuarem a realizar os Encontros Nacionais de Consultas que realizam interrupções de gravidez, progressivamente aumentados a outros profissionais ou focos de interesse;

(g) a realização regular de auditorias de qualidade dos serviços, quer públicos, quer privados, o que permitiu assegurar a melhoria contínua na qualidade dos serviços prestados.

Salienta-se a importância de dispor da experiência científica acumulada com o protocolo de atuação medicamentosa para a prática de aborto. Esse fato, aliado à disponibilidade do fármaco mifepristona, à publicação de um conjunto de protocolos de atuação clínica e à existência de estudos publicados na Europa e Estados Unidos permitiram a sua utilização de forma segura em meio hospitalar e em ambulatório. A combinação desses fatores colocou Portugal entre os países que mais utiliza o método medicamentoso na prática da interrupção da gravidez, com dados publicados e apresentados em reuniões científicas. Neste momento, todos os países que desejem implantar serviços de aborto seguro têm ao seu alcance ainda mais experiência e informação sobre a utilização segura do aborto medicamentoso.

Resultados da implementação ao longo dos anos

O número de interrupções realizadas em nível nacional aumentou nos primeiros anos e tem diminuído progressivamente desde 2011. Antes da descriminalização, o número estimado de abortos ilegais realizados era de 20 mil por ano 3. Após 2011, esse número nunca foi ultrapassado 11,12 (Figura 1), sendo a opção da mulher o principal motivo para a interrupção da gestação (Tabela 1).

A maioria dos abortos é realizada em unidades do SNS (com variação de 67 a 72% do total dos abortos realizados ao longo dos anos) 11,12. Nas unidades do SNS, quando não existe capacidade de resposta para uma interrupção de gravidez, as mulheres devem ser referenciadas, em tempo útil, para as outras unidades do SNS ou para unidades privadas oficialmente reconhecidas. Conforme está consagrado na Legislação publicada em 2007, essa referenciação é sempre suportada financeiramente pelo SNS.

Figura 1 Número total de interrupções da gestação e por opção da mulher até as 10 semanas gestacionais. Portugal, 2008-2017. 

Tabela 1 Motivo da interrupção da gestação até a 10ª semana gestacional. Portugal, 2008-2017. 

Motivo da interrupção da gestação 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Único meio de remover perigo de morte ou grave lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da grávida 21 14 9 14 12 14 7 9 7 13
Evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para a saúde física e psíquica da grávida 100 73 72 61 55 41 99 135 84 100
Grave doença ou malformação congênita do nascituro 455 524 484 470 461 486 462 466 442 466
Gravidez resultante de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual 17 15 12 14 13 12 14 14 10 14
Por opção da mulher até as 10 semanas gestacionais 18.014 19.222 19.560 19.921 18.615 17.728 16.180 16.028 15.416 14.899
Total 18.607 19.848 20.137 20.480 19.156 18.281 16.762 16.652 15.959 15.492

Em Portugal, o aborto medicamentoso (com mifepristona e misoprostol, segundo normas da Direção-Geral da Saúde) é a forma de interrupção mais frequente. Essa utilização cresceu ao longo dos anos e é atualmente praticado em 70,2% dos casos anuais 11,12. Nas unidades do SNS, a utilização do método medicamentoso é de 95-97%, já nas unidades privadas a maioria usa o método cirúrgico, em cerca de 97-98% dos casos 11,12.

As mulheres estrangeiras residentes em Portugal têm também acesso aos cuidados de abortos gratuitos. No total das interrupções de gravidez, essas mulheres representaram, ao longo dos anos, cerca de 15-19% das mulheres que realizaram um aborto 11,12.

No que diz respeito à idade, cerca de dois terços delas têm entre 20-34 anos (64% -65% em diferentes anos). O número de abortos abaixo dos 20 anos manteve-se sempre baixo, variando entre 12% em 2008 e 10% em 2017 11,12.

As mulheres que acederam aos serviços para realizar um aborto tiveram e têm a possibilidade de escolher um método de contracepção seguro, confortável e gratuito, dado que a contracepção em Portugal é gratuita, em serviços do SNS, para todas as mulheres. Escolheram um método de contracepção 93-97% das mulheres, com aumento do uso de métodos de longa opção durante os anos (26%-38%) 11,12.

O número de atendimentos por complicações de aborto ilegal nos serviços de urgência diminuiu consideravelmente desde 2007, após a entrada em vigor da Lei nº 16/2007. Verifica-se na análise dos relatórios publicados uma importante redução das complicações graves (perfuração uterina e de outros órgãos e sépsis), como se pode observar na Tabela 2 e nos relatórios publicados pela Direção-Geral da Saúde referentes aos internamentos por complicações de aborto ilegal e legal 13.

Entre 2001 e 2007, ocorreram 14 mortes maternas reportadas, associadas a complicações de aborto (para um total de 92 mortes maternas no mesmo período de tempo) 14. Desde 2007, 2 mortes maternas foram relatadas: uma em consequência de aborto ilegal, em 2008, e uma morte associada a aborto medicamentoso, em 2010. Esse caso esteve associado a uma complicação rara, mas já descrita em outros países, de choque tóxico com Clostridium sordellii14.

Tabela 2 Número de complicações segundo tipo de aborto. Portugal, 2001-2014. 

2001 * 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Número de respostas/Número de serviços 40/50 40/50 50/50 49/50 48/50 42/42 42/42 36/42 34/41 37/41 37/40 38/41 33/44 29/44
Interrupção da gravidez não admitida no quadro legal
Total de complicações 578 1.600 1.019 1.426 976 1.063 1.465 333 245 236 160 229 - -
Aborto incompleto 359 1 030 704 911 604 610 864 211 145 132 109 177 62 13
Aborto retido 180 502 227 361 287 336 552 96 79 82 45 47 - -
Infeção/Sépsis 34 67 76 56 51 56 35 23 20 22 5 5 0 2
Perfuração útero/Outro órgão 5 1 0 0 0 1 12 3 1 0 1 0 1 0
Não especificado - - 12 98 34 60 2 - - - 0 - - -
Interrupção da gestação admitida no quadro legal
Total de complicações 550 774 1.082 1.031 750 - -
Aborto incompleto - - - - - - - 393 455 524 709 502 624 814
Aborto retido - - - - - - - 150 299 524 291 224 - -
Infeção/Sépsis - - - - - - - 5 18 31 31 23 46 31
Perfuração útero/Outro órgão - - - - - - - 2 2 3 0 1 2 0
Aborto espontâneo
Total complicações 2.217 5.205 6.803 7.159 7.161 6.772 6.157 5.771 5.084 5.113 5.186 4.718 - -
Aborto completo - - - - - - - 1.406 1.092 1.117 1.097 1.102 - -
Aborto incompleto - - - - - - - 2.044 1.627 1.689 1.375 1.234 - -
Aborto retido - - - - - - - 2.044 2.113 2.132 2.584 2.175 - -
Outro - - - - - - - 279 169 175 130 207 - -

Fonte: Direcção-Geral da Saúde 13.

* Apenas ao 2º semestre de 2001.

Conclusão

Decorrente do enquadramento legal que ficou estabelecido, os dados sobre as interrupções da gravidez passaram a ser recolhidos, analisados e publicados anualmente pela Direção-Geral da Saúde. Existe por isso, neste momento, mais de 10 anos de informação sistematicamente reunida, que permite dizer que as mulheres que realizam um aborto se distribuem por todos os grupos etários, graus de escolaridade ou profissões. Algumas já tiveram filhos, outras virão a ter. As mulheres que num ano fazem um aborto podem ter filhos em diferentes anos. Não são mulheres diferentes.

A possibilidade de acesso a serviços de aborto seguro não se traduziu num aumento dos abortos realizados. Antes da descriminalização o número estimado de abortos realizados na população portuguesa era de 20 mil por ano 3. Ao longo dos anos esse número nunca foi ultrapassado. Desde 2011, tem-se registado uma diminuição de interrupções de gravidezes, tanto em números absolutos como na razão do número de abortos por 1.000 nascidos vivos. Em Portugal, em 2010, aconteceram 199 interrupções de gravidez por 1.000 nascidos vivos; em 2015 diminuíram para 192 interrupções de gravidez por 1.000 nascidos vivos e, em 2017, voltaram a diminuir para 179,8 interrupções de gravidez por 1.000 nascidos vivos 11,12. Utilizando esse indicador para a comparação internacional, é possível dizer que o número de abortos por 1.000 nascidos vivos em Portugal tem estado sempre abaixo da média europeia: 216 interrupções de gravidez por 1.000 nascidos vivos em 2010, e 203 interrupções de gravidez por 1.000 nascidos vivos em 2015, não havendo ainda um valor estimado para o anos de 2016 e 2017 15.

Com a introdução do novo enquadramento legal ocorreu uma diminuição importante do número de mortes maternas, do número de complicações, em geral, e das complicações graves, em particular, decorrentes de aborto ilegal e inseguro 13,14. O conhecimento adquirido ao longo desses anos tem fornecido experiência para melhorar a intervenção clínica em outras situações, de que são exemplos o aborto espontâneo e o aborto retido. Em resumo, pode dizer-se que a combinação da vontade política e do trabalho empenhado dos profissionais que prepararam, implantaram no terreno e acompanharam todo esse processo foi essencial para o seu sucesso. A experiência portuguesa tem sido publicada internacionalmente em reuniões científicas. Em 2018, foi publicado na revista da Federação Internacional de Ginecologia-obstetrícia (FIGO) um artigo em que se analisa a forma como decorreu essa implementação. Trata-se de uma publicação de acesso livre, que se convida a consultar 16.

REFERÊNCIAS

1. Portugal. Lei nº 16/2007, publicada em 17 de abril. Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez. (acessado em 19/Ago/2019).
2. Portugal. Portaria nº 741-A/2007, publicada em 21 de junho. Regulamentação da Lei nº 16/2007 de 17 de Abril de 2007. Interrupção voluntária da gravidez. (acessado em 19/Ago/2019).
3. Serviço de Estudos Demográficos e Sociais, Gabinete de Estudos e Conjuntura, Instituto Nacional de Estatística. Inquérito à fecundidade e família: resultados definitivos: 1997. (acessado em 19/Ago/2019).
4. Matias Dias C, Marinho Falcão I, Marinho Falcão J. Contribuição para o estudo da ocorrência da interrupção voluntária da gravidez em Portugal Continental (1993-1997): estimativas utilizando dados da Rede de Médicos Sentinela e dos diagnósticos de altas hospitalares (grupos de diagnósticos homogêneos). Epidemiologia 2000; 18:55-63.
5. Vilar D, Souto E, Sampaio M, Alves MJ. A situação do aborto em Portugal - práticas, contextos e problemas. (acessado em 13/Ago/2019).
6. Organização dos serviços para implementação da Lei nº 16/2007 de 17 de abril. Circular Normativa nº 11/SR de 21.06.2007 da Direcção-Geral da Saúde. (acessado em 19/Ago/2019).
7. Direcção-Geral da Saúde. Interrupção cirúrgica da gravidez até às 10 semanas de gestação. Circular Normativa 2007; nº 10/SR. (acessado em 19/Ago/2019).
8. Direcção-Geral da Saúde. Interrupção medicamentosa da gravidez. Circular Normativa 2007; nº 9/SR. (acessado em 19/Ago/2019).
9. Direcção-Geral da Saúde. Modelo Normalizado do Consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez. Circular Informativa 2007; nº 20/SR. (acessado em 19/Ago/2019).
10. Direcção-Geral da Saúde. Norma nº 001/2013 de 29/01/2013. Registo de complicações de interrupção de gravidez. Definições e modelo de registo. (acessado em 19/Ago/2019).
11. Direcção-Geral da Saúde. Programa Nacional de Saúde Reprodutiva. Relatório de Registros de Interrupção da gravidez. (acessado em 19/Ago/2019).
12. Direcção-Geral da Saúde. Programa Nacional de Saúde Reprodutiva. Relatórios anuais referentes aos dados de 2007 a 2017. (acessado em 19/Ago/2019).
13. Direcção-Geral da Saúde. Programa Nacional de Saúde Reprodutiva. Relatório de análise das complicações relacionadas com a interrupção da gravidez 2013-2014. (acessado em 13/Ago/2019).
14. Direcção-Geral da Saúde. Programa Nacional de Saúde Reprodutiva. Relatório Mortes Maternas em Portugal, 2001-2007. (acessado em 13/Ago/2019).
15. World Health Organization. European Health Information Gateway. Abortions per 1000 live births. (acessado em 19/Ago/2019).
16. Stifani BM, Vilar D, Vicente L. "Referendum on Sunday, working group on Monday": a success story of implementing abortion services after legalization in Portugal". Int J Gynaecol Obstet 2018; 143 Suppl 4:31-3.