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Abscessos cervicais profundos: estudo de 101 casos

Abscessos cervicais profundos: estudo de 101 casos

Autores:

Thiago Pires Brito,
Igor Moreira Hazboun,
Fernando Laffite Fernandes,
Lucas Ricci Bento,
Carlos Eduardo Monteiro Zappelini,
Carlos Takahiro Chone,
Agrício Nubiato Crespo

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Otorhinolaryngology

versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686

Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.3 São Paulo mai./jun. 2017

http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.04.004

Introdução

Os abscessos cervicais profundos (ACP) são definidos pela presença de pus nos espaços e nas fáscias da cabeça e do pescoço. Os ACP podem ser categorizados em retrofaríngeos, peritonsilares, massetéricos, maxilares pteropalatinos, parafaríngeos, submandibulares, parotídeos e do assoalho da boca.1 A despeito do progresso em testes de diagnóstico e da disponibilidade de moderna antibioticoterapia, essas infecções ainda causam taxas de morbidade e mortalidade significativas, especialmente quando um tratamento precoce não é instiuído.2 As mesmas ocorrem com frequência considerável, sendo que a gravidade e a extensão podem ser subestimadas, o que as tornam um diagnóstico desafiador para os médicos emergencistas, pediatras, otorrinolaringologistas e cirurgiões de cabeça e pescoço. Os sinais clínicos e os sintomas frequentemente se sobrepõem aos de outros quadros clínicos comuns (como faringite, tonsilite e torcicolo), particularmente em crianças, nas quais o exame físico pode ser mais difícil do que o realizado em adultos. No entanto, aparentemente, em adultos é mais frequente haver envolvimento de múltiplos espaços cervicais, ter maior potencial de complicações e ser mais grave do que em crianças.3,4 Além disso, o uso de medicamentos analgésicos e anti-inflamatórios pode mascarar as manifestações. Às vezes é difícil encontrar a origem dos ACP, porque a principal fonte de infecção pode precedê-los por semanas.5

Os ACP são potencialmente fatais e exigem uma abordagem diagnóstica e terapêutica agressiva para evitar complicações com risco à vida, tais como obstrução das vias respiratórias, fasciíte necrosante cervical, trombose da veia jugular, empiema, coagulação intravascular disseminada, mediastinite, pneumonia por aspiração ou trombose/aneurisma da artéria carótida. Em geral, ACP polimicrobianos ocorrem a partir de infecções prévias não controladas, como tonsilite, infecções dentárias e linfadenite cervical após infecção de vias respiratórias superiores.2,6 É necessário investigar os fatores de risco, como infecções, corpos estranhos, traumatismo ou cirurgia cervical, imunossupressão e dependência de drogas intravenosas. Doenças concomitantes, tais como cistos e fístulas congênitos, tuberculose, diabetes mellitus, HIV, tumores, entre outras, também devem ser consideradas.7 As manifestações clínicas são diversas e dependem da área cervical acometida. O uso inadequado de antibióticos também pode alterar a apresentação clínica de infecções desse tipo e torná-las imperceptíveis.4 Os pacientes podem apresentar leves sintomas, como febre e dor, ou apresentar sintomas mais graves ou ameaçadores à vida, como dispneia, obstrução das vias respiratórias e choque séptico.

O presente estudo tem como objetivo relatar nossa experiência na condução de infecções dos espaços cervicais profundos.

Método

Foram revisados os prontuários de 101 pacientes com diagnóstico de infecção dos espaços cervicais que foram atendidos pelo setor de otorrinolaringologia e cirurgia de cabeça e pescoço de um hospital universitário, durante o período de janeiro de 2007 a janeiro de 2013. Todos os pacientes assinaram documentação, na qual autorizaram o uso de dados de seus prontuários (procedimento padrão do hospital).

Em todos os casos, os pacientes foram submetidos a procedimentos cirúrgicos para drenagem dos abcessos. O diagnóstico de abscesso cervical profundo foi suspeitado pela história clínica e confirmado por tomografia computadorizada (TC) ou cirurgia. Este estudo excluiu pacientes com infecções cervicais que não necessitaram de cirurgia, tais como celulite e infecções superficiais ou limitadas. Todos os pacientes foram submetidos a antibioticoterapia e, quando possível, coletou-se amostra para cultura e sensibilidade.

As seguintes características clínicas foram analisadas e comparadas: idade, sexo, sintomas clínicos, área cervical acometida, hábitos de vida, uso de antibióticos, comorbidades, etiologia, cultura bacteriana, duração da internação, necessidade de traqueostomia e complicações.

Todos os dados descritivos foram relatados em porcentagens. As avaliações estatísticas foram feitas com um teste t bilateral corrigido para desigualdade de variâncias e graus de liberdade. O teste exato de Fisher e o teste χ2 foram usados para comparar a variável categórica. SPSS (13.0, SPSS Inc., Chicago, IL) foi usado para analisar os dados e um valor p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.

Resultados

População

Dos 101 pacientes, 56 eram do sexo masculino e 45 do feminino, 55,5% e 44,5%, respectivamente. As idades variaram de um a 81 anos, com média de 28,1 anos. A maioria dos pacientes era jovem, com faixa etária entre as segunda e quarta décadas. Entre as crianças, a idade média foi de 8,4 anos, com uma ligeira predominância do sexo masculino (57% dos pacientes) (fig. 1).

Figura 1 Distribuição dos indivíduos de acordo com a idade. 

Sintomas e tempo para diagnóstico

Os sintomas mais comuns ao diagnóstico foram febre (86,1%) e dor cervical (81,1%). Outros sintomas foram odinofagia (75,2%), edema cervical (60,3%) e trismo (47,5%). Treze pacientes (12,8%), sendo oito homens e cinco mulheres, com média de idade de 31,3 anos, tinham sintomas de obstrução das vias respiratórias. Quinze pacientes (14,8%) apresentavam sinais de bacteriemia no momento do diagnóstico e desses foram coletadas hemoculturas. O tempo médio entre o início dos sintomas até a procura aos serviços de saúde foi de oito dias (variação de 2 a 20 dias).

Hábitos de vida e comorbidades

Dezenove pacientes (18,8%) eram fumantes, 24 (23,7%) alcoólatras e 10 (9,9%) usuários de drogas. As comorbidades mais prevalentes foram hipertensão (19 pacientes, 18,8%) e diabetes mellitus (DM) (13 pacientes, 12,8%). Outras comorbidades menos prevalentes foram obesidade (10 pacientes, 9,9%), hipotireoidismo (quatro pacientes, 3,9%) e hepatite C (três pacientes, 2,9%). Em dois pacientes, houve associação com o HIV (1,9%). Os adultos apresentaram mais comorbidades do que as crianças (p < 0,01) (tabela 1).

Tabela 1 Comparação entre crianças e adultos 

N° de pacientes Múltiplos espaços cervicais N° de complicações Morte N° de comorbidade
Crianças 27 2 8 0 0
Adultos 74 31 40 2 51
Valor p < 0,001 0,005 > 0,10 < 0,001

Etiologia

A tonsilite bacteriana foi a causa mais comum de abscesso cervical (32 pacientes, 31,68%), seguida por infecção odontogênica (24 pacientes, 23,7%). Em 15 pacientes (14,8%), a causa não pôde ser identificada. Outras etiologias foram: linfadenite pós-infecção das vias respiratórias e ingestão de corpo estranho (nove pacientes cada, 17,8%), adenite (submandibulite: 6 casos, 5,9% e caxumba: 2 casos, 1,9%) e fasciíte (quatro pacientes, 3,96%). Em 58,3% dos casos de etiologia odontogênica havia história de manipulação dentária recente (fig. 2).

Figura 2 Etiologia dos abscessos cervicais profundos. 

Espaços e linfonodos cervicais

A TC de pescoço foi realizada para diagnosticar e avaliar a extensão da infecção em 71,2% dos pacientes. Os demais tiveram a extensão da doença estabelecida no intraoperatório. A região cervical peritonsilar foi a mais acometida em 26,7% dos casos (27 pacientes). As outras áreas afetadas, em ordem decrescente, foram: submandibular/assoalho da boca (23 pacientes, 22,7%), parafaríngea (19 pacientes, 18,8%), retrofaríngea (18 pacientes, 17,8%), mastigatória (oito pacientes, 7,92%) e jugulo-carotídea (quatro pacientes, 3,96%) (fig. 3).

Figura 3 Extensão da infecção por abscessos cervicais profundos. 

Conforme mostra a tabela 2, o local mais comumente envolvido no grupo das crianças foi o espaço peritonsilar (10 pacientes, 37%), seguido pelo espaço parafaríngeo (nove pacientes, 33,3%), o submandibular em quatro pacientes (14,8%) e o retrofaríngeo em quatro pacientes (14,8%). No grupo dos adultos, a localização mais frequente foi a de múltiplos espaços cervicais (31 pacientes, 41,8%), seguida pelo espaço submandibular em 19 pacientes (25,6%) e o peritonsilar em 17 pacientes (22,9%). Os pacientes adultos desenvolveram infecção em múltiplos espaços com mais frequência do que as crianças (p < 0,01) (tabela 1).

Tabela 2 Distribuição dos locais de abscessos cervicais profundos 

Crianças n (%) (n = 27) Adultos n (%) (n = 74) Total (n = 101)
Múltiplos espaços 2 (7,4) 31 (41,8) 33 (32,6)
Espaço parafaríngeo 9 (33,3) 10 (13,5) 19 (18,8)
Espaço peritonsilar 10 (37) 17 (22,9) 27 (26,7)
Espaço submandibular 4 (14,8) 19 (25,6) 23 (22,7)
Espaço retrofaríngeo 4 (14,8) 14 (18,9) 18 (17,8)
Espaço mastigador 0 8 (10,8) 8 (7,92)
Espaço jugular‐carótida 0 4 (5,4) 4 (3,96)
Mediastino superior 0 2 (2,7) 2 (1,9)

Houve a ocorrência de múltiplos espaços cervicais em 33 pacientes (32,7%). Quando presente, a linfadenopatia atingiu, com maior frequência, os níveis cervicais II e III. Houve extensão para o mediastino superior em dois pacientes (1,9%).

Bacteriologia e antibioticoterapia

Todos os pacientes receberam terapia antimicrobiana. Amoxicilina com clavulanato foi o antibiótico mais usado como tratamento de primeira linha (82,1% dos casos), seguido pela combinação de ceftriaxona + metronidazol. A mudança de antibiótico dependeu dos resultados de cultura ou do resultado clínico.

O material para cultura foi obtido em 76,2% dos pacientes. Não houve crescimento bacteriano em 14,5% dos casos. A cultura polimicrobiana foi detectada em 18,8% dos pacientes, sendo Streptococcus pyogenes + Streptococcus pneumoniae a associação mais frequente. O Streptococcus pyogenes foi o microrganismo mais comum, presente em 25 pacientes (23,3%). A prevalência de outros organismos foi a seguinte: Streptococcus intermedius (20 pacientes, 18,6%), Streptococcus constelattus (16 pacientes, 14,9%), Staphylococcus aureus (13 pacientes, 12,1%), Streptococcus viridans (nove pacientes, 8,4%), Streptococcus pneumoniae (oito pacientes, 7,4%) e Neisseria spp. (sete pacientes, 6,5%). Demais microrganismos (Corynebacterium spp., Eikenella corrodens, Enterococcus faecium, Klebsiella pneumoniae e outros estreptococos) foram menos frequentes, totalizando 12 pacientes (11,8%). Dezessete pacientes apresentaram sinais clínicos de sepse na chegada ao setor de emergência. Em decorrência desses sinais, hemoculturas foram feitas, com resultados positivos em 13 pacientes (12,8%, do total), sendo também mais prevalente a ocorrência de Streptococcus pyogenes. (fig. 4).

Figura 4 Cultura de crescimento bacteriano em abscessos cervicais profundos. 

Complicações, traqueotomia e mortalidade

As complicações das infecções cervicais profundas são apresentadas na tabela 3. Foram encontradas complicações em 48 pacientes (oito crianças, 40 adultos). Dos oito pacientes do grupo crianças com complicações, três tiverem pneumonia, três choque séptico e dois necessidade de reintervenção cirúrgica. As principais complicações dos abscessos cervicais incluíram sepse (17 pacientes, 16,8%), pneumonia (11 pacientes, 10,8%), mediastinite (dois pacientes, 1,9%) e trombose da veia jugular (um paciente, 0,9%). A reintervenção cirúrgica foi necessária em nove pacientes (8,9%), provavelmente devido à reorganização da infecção em compartimentos. Os pacientes adultos desenvolveram complicações infecciosas com mais frequência do que as crianças (p = 0,005) (tabela 1).

Tabela 3 Complicações de abscessos cervicais profundos 

Crianças n (%) (n = 8)a Adultos n (%) (n = 40)a Todos os pacientes n (%) (n = 101)a
Mediastinite 0 2 (5) 1,98
Trombose de veia jugular 0 1 (2,5) 0,99
Traqueotomia de emergência 0 8 (20) 7,92
Pneumonia 3 (37,5) 8 (20) 10,80
Choque séptico 3 (37,5) 14 (35) 16,80
Reintervenção cirúrgica 2 (25) 7 (17,5) 8,90

aPaciente isolado pode ter duas ou mais complicações.

A obstrução das vias respiratórias superiores e a impossibilidade de intubação levaram à traqueotomia em 17 pacientes (16,8%). Desses, oito (7,9%) foram submetidos à traqueotomia de emergência devido à insuficiência respiratória.

Houve duas mortes (taxa de mortalidade de 1,9%). O primeiro caso foi uma mulher saudável de 19 anos, com abscesso cervical extenso, associado à mediastinite descendente de etiologia indeterminada. A morte ocorreu no terceiro dia pós-operatório e a paciente apresentou sepse, com hemocultura positiva para Streptococcus pyogenes. O segundo caso foi um homem diabético de 49 anos, com abscesso de etiologia odontogênica (angina de Ludwig), que se estendeu para os espaços cervicais submandibulares/assoalho da boca e para o espaço parafaríngeo. Ele apresentou sepse com hemocultura polimicrobiana (Streptococcus viridans + Neisseria spp).

O tempo médio de internação foi de 9,7 dias, com uma variação entre 2 e 45 dias. As complicações do abscesso prolongaram o tempo de internação em cerca de cinco dias (tempo médio de permanência de 14,8 dias).

Discussão

Os abscessos cervicais profundos são doenças de grande importância por conta de sua frequência e de suas graves complicações. A incidência dos mesmos é estimada em cerca de 10/100.000 habitantes/ano, com tendência a aumentar, especialmente em crianças menores de 5 anos,1 nas quais a incidência estimada é de cerca de 2/100.000 habitantes/ano.1 As infecções não têm preferência por sexo ou idade e podem acometer qualquer pessoa. Em concordância com as análises de Eftekharian et al., o presente estudo constatou maior incidência na população jovem do sexo masculino, com idade média de 28,1 anos.8 Huang et al. e outros estudos também mostram uma tendência crescente na incidência de infecções em pacientes idosos e com doenças sistêmicas.9 Nesse grupo, os mecanismos de defesa seriam menos eficientes, as taxas de recuperação mais lentas e as complicações bastante frequentes.

Muitas causas estão associadas aos ACP. Na era pré-antibiótica, as infecções faríngeas/tonsilares eram responsáveis por 70% dos casos de infecções dos espaços cervicais profundos.10 Atualmente, muitas pesquisas mostram um declínio significativo dessa incidência, sendo as infecções odontogênicas a causa mais frequente.6,10,11 No presente estudo, a tonsilite bacteriana foi a causa mais comum (31,68%), seguida de infecção odontogênica (23,7%), correspondendo juntas a 55,3% da amostra. Outros estudos mostraram um aumento das infecções associadas ao abuso de drogas intravenosas e aos traumatismo cervicais, embora não tenham sido aqui identificadas essas etiologias.12

Em Coelho et al., o foco dentário foi a origem de abscessos em 37% dos pacientes, enquanto doenças das tonsilas palatinas e faríngeas estavam presentes em 20% dos casos, não sendo possível identificar a fonte de infecção em 33% dos pacientes.13 Para Sennes et al., a infecção odontogênica foi causa em 42,1% dos pacientes, a tonsilite em 17,5%, as linfadenite pós-infecções das vias respiratórias superiores em 15,8% e causa desconhecida em 8,8%.14 Entre outras causas, a linfadenite pós-infecção das vias respiratórias superiores e a ingestão de corpo estranho foram foram encontradas em nosso estudo em 17,8% dos casos; adenite (submandibular e parotídea) em 7,8% e fasciíte em 3,96%. Outros autores também relataram uma proporção significativa de ACP com origem primária desconhecida, que atingiu até 50% dos casos.2,6,15,16 Em 14,8% dos pacientes do nosso estudo a etiologia da infecção não pôde ser determinada, provavelmente porque a infecção inicial não foi prontamente diagnosticada e por ela poder preceder o abscesso em semanas. Assim, o tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico de ACP foi de oito dias, tendo chegado a até 20 dias, encontrando-se como principais sintomas a febre e a dor cervical.

O conhecimento das relações anatômicas entre os espaços cervicais é importante para a conduta terapêutica, uma vez que as fáscias que delimitam esses espaços são importantes barreiras anatômicas para a propagação da infecção, mas também servem para direcioná-la, quando sua resistência natural é superada.17

A maioria dos estudos anteriores1,18,19 relatou que as crianças representam uma proporção relativamente baixa de seus pacientes com ACP.

Já aqui, encontrou-se proporção mais elevada de pacientes com menos de 18 anos (27 casos, 26,7%) e nenhum deles tinha doenças associadas. O conhecimento amplo sobre quais medicamentos foram administrados previamente e sua frequência não foi obtido em grande parte dos casos, porque a maioria dos pacientes recebeu tratamento em outras unidades de saúde. No entanto, os abscessos podem ter sido facilitados pelo uso indiscriminado de antibióticos, especialmente no tratamento de gripes e outras infecções virais, que são mais comuns em crianças do que em adultos, ocasionando resistência aos antimicrobianos.20,21

O uso prévio de antibióticos está correlacionado com um maior isolamento de organismos resistentes e um aumento da incidência de bactérias produtoras de β-lactamase.22,23 Em última análise, a resistência parece ter efeito sobre a incidência de infecção cervical profunda.24 São necessários estudos prospectivos para elucidar muitos desses questionamentos e definir melhor a consequência de tratamentos inadequados com antimicrobianos.

Grande parte dos estudos5,25 relatou o espaço retrofaríngeo como o mais comum envolvido em crianças. No presente estudo, o espaço peritonsilar foi o de maior ocorrência no grupo das crianças (10 de 27 pacientes, 37%), seguido pelo espaço parafaríngeo (9 de 27 pacientes, 33,3%). Existe um estudo4 que mostrou o espaço parafaríngeo como o mais comumente envolvido em crianças. Isso pode ser explicado porque as infecções nos espaços peritonsilar, submandibular, mastigatório e parotídeo podem se espalhar para o espaço parafaríngeo.9 A infecção em múltiplos espaços cervicais foi encontrada em 31 pacientes adultos (41,8%) e em duas crianças (7,4%) (p < 0,001). Os adultos apresentaram maior facilidade em desenvolver infecção em múltiplos espaços, em comparação com as crianças, além de mostrarem uma tendência de desenvolverem mais complicações e de maior tempo de internação hospitalar. O fato pode estar relacionado com uma maior incidência de comorbidades em adultos. Pacientes com comorbidades tendem a ter uma defesa mais precária contra infecções, o que resulta em infecções mais graves e amplas.18 Nos dois casos que evoluíram para óbito, havia envolvimento de múltiplos espaços cervicais.

A microbiologia do ACP é caracterizada como polimicrobiana, incluindo bactérias aeróbicas e anaeróbicas, particularmente gram-positivas. Entre os agentes mais encontrados estão: Streptococcus viridans, Streptococcus milleri, Prevotella spp, Peptosstreptococcus spp. e Klebisiella pneumoniae, esse último mais comum em pacientes diabéticos.26 Sennes et al. encontraram Streptococcus viridans em 41,5% dos casos, Staphylococcus aureus em 20,7% deles e 3,8% com Haemophilus influenza.14 No nosso estudo, Streptococcus pyogenes foi o agente mais frequentemente isolado (23,3%), o que pode ser explicado pela maior incidência de infecções peritonsilares. De todos os pacientes, 14,5% não apresentaram crescimento bacteriano em cultura, o que pode ser explicado pelo uso de altas doses de antibióticos intravenosos, antes da drenagem cirúrgica do abscesso.27 Em 12,8% dos pacientes, foi detectada hemocultura positiva, o que mostra a elevada possibilidade de disseminação sistêmica de uma infecção inicialmente não controlada.

Muitos estudos mostraram a associação do DM com ACP.9,28 Huang et al. 9,20 e Lee et al. 18 indicaram que pacientes idosos com DM eram mais suscetíveis à infecção cervical profunda. Em pacientes com DM, a hiperglicemia pode prejudicar vários mecanismos de defesa do hospedeiro, como as funções dos neutrófilos (aderência, quimiotaxia e fagocitose), resultando em predisposição à infecção e complicações.29 Huang et al. encontraram altas taxas de infecção por Klebsiella pneumoniae em pacientes diabéticos.9 A prevalência de pacientes diabéticos, no nosso estudo, foi baixa (12,8%), sendo o Staphylococcus aureus (cinco pacientes) e o Streptococcus pyogenes (quatro pacientes) como os microrganismos presentes mais comuns nestes pacientes. Em uma das evoluções fatais, o paciente com DM mal controlado apresentou hemocultura positiva para Streptococcus viridians + Neisseria spp.

O manejo do ACP envolve drenagem cirúrgica associada ao uso de antibióticos intravenosos. A tomografia computadorizada com contraste foi o exame de escolha para o diagnóstico e avaliação da extensão do abscesso. Embora tenha alta sensibilidade, a especificidade desse exame é baixa, por exemplo, como acontece nos casos de aglomerados linfonodais sem abscesso associado, o que pode levar a procedimentos cirúrgicos desnecessários.30 Oh et al. e outros pesquisadores demonstraram a eficácia da drenagem de abscesso com agulha guiada por ultrassom, sem aumento das taxas de complicações.27 Em geral, o tratamento conservador é eficaz em pequenas coleções e não apresenta evidências de complicações iminentes. A drenagem cirúrgica aberta foi preferencialmente utilizada em todos os casos deste estudo, visto que nossa experiência com o tratamento anteriormente citado ainda é pequena.

A antibioticoterapia foi iniciada empiricamente antes de os resultados de cultura e sensibilidade estarem disponíveis. A escolha de amoxicilina + ácido clavulânico como tratamento de primeira linha em 82,1% dos casos foi baseada na cobertura de bactérias comumente encontradas em nosso meio, tanto as gram- positivas como anaeróbios. Muitos autores aconselham, para uma cobertura empírica ideal, uma penicilina combinada com um inibidor de β-lactamase (como amoxicilina e ácido clavulânico) ou um antibiótico β-lactamase resistente (como cefuroxima, meropenem ou imipenem) em combinação com um fármaco que seja altamente eficaz contra a maioria dos anaeróbios (como o metronidazol ou clindamicina).17,28 Afebril depois de 48 horas, o paciente recebia alta hospitalar com prescrição de antibiótico oral.

Apesar do uso generalizado de antibióticos, várias complicações do ACP indesejáveis e ameaçadoras à vida são conhecidas, como mediastinite descendente, trombose da veia jugular, pericardite, empiema pleural, erosão arterial, obstrução das vias respiratórias superiores e sepse. Em nosso estudo, houve dois casos de mediastinite, ambos em adultos e envolvendo múltiplos espaços cervicais, com choque séptico e óbito em um deles (tabela 1). Na mediastinite, há queixa frequente de dor torácica ou de dispneia. A extensão da doença ocorre via espaço visceral anterior e a mortalidade pode chegar a 50% dos casos, exigindo drenagem torácica combinada.31 A obstrução da via área superior e a consequente insuficiência respiratória obrigou a realização de traqueotomia de emergência em 7,9% dos pacientes. Har-El et al. descrevem que o envolvimento do assoalho da boca e do espaço retrofaríngeo está mais associado a obstrução da via aérea e maior necessidade de traqueotomia, procedimento necessário em 75% dos casos.10 É interessante observar que, em nosso estudo, especialmente nos pacientes com trismo secundário ao acometimento da musculatura mastigatória, a traqueotomia foi necessária devido à impossibilidade de intubação, mesmo sem a presença de insuficiência respiratória. A nossa taxa de mortalidade foi de 1,9%, semelhante ao descrito por Huang et al. (1,6%).9

Apresentamos aqui informações relevantes sobre os resultados clínicos e cirúrgicos dos ACP. No entanto, o curso e a gravidade da mesma infecção em pacientes diferentes podem variar grandemente, o que requer uma equipe experiente para a abordagem adequada.

Conclusões

As infecções cervicais profundas constituem uma emergência médica e cirúrgica. As características clínicas e a gravidade do ACP variaram de acordo com as diferentes faixas etárias, possivelmente em razão da localização da infecção e maior incidência de comorbidades em adultos. Assim, o ACP em adultos apresenta com maior frequência o envolvimento de múltiplos espaços e leva a complicações aparentemente mais graves do que em crianças.

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