versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 no.7 Rio de Janeiro 2017 Epub 27-Jul-2017
http://dx.doi.org/10.15090/0102-311x00138516
La cultura digital y su red comercial se expandieron a partir de los años 2000 con el advenimiento de las plataformas de redes sociales, incitando a sus partícipes a la (hiper) exposición y espectacularización de sus intimidades, con consecuencias inherentes a la imagen personal y a la privacidad, publicitando en los medios digitales cuestiones de carácter íntimo, especialmente las que son relativas a la sexualidad y corporalidad. En este contexto, se busca comprender cómo es concebido y caracterizado el fenómeno del abuso digital en las relaciones afectivo-sexuales en los estudios científicos, qué daños a la salud están asociados al mismo y qué tecnologías sociales de intervención se sugieren. Esta forma de abuso digital es una nueva expresión de la violencia en pareja que involucra, entre otras prácticas, la difusión de fotos y vídeos comprometedores y mensajes íntimos sin consentimiento previo, con el fin de humillar y difamar a la persona. El presente trabajo constituye una revisión sistemática integradora, incluyendo 35 artículos, donde predominan estudios norteamericanos (22). Entre los tipos de abusos digitales se destacan las formas de agresión directa y control/monitorización. A pesar de la alta prevalencia, especialmente entre adolescentes y jóvenes, la literatura destaca que la práctica de este tipo de abuso digital está considerada muchas veces natural. Las intervenciones sugeridas son mayoritariamente de prevención y concientización sobre las relaciones abusivas, actuación de orientadores en la escuela y en las familias. La alta reciprocidad de la práctica del abuso digital en las relaciones afectivo-sexuales entre hombres y mujeres indica que los análisis futuros deben buscar comprender cómo se reproducen y subvierten las dinámicas de violencia de género en este contexto.
Palabras-clave: Violencia de Pareja; Red Social; Internet; Adolescente
A sociabilidade contemporânea foi radicalmente transformada a partir da virtualização das relações, mediadas por cibertecnologias de comunicação, permitindo novos espaços de trocas comerciais, informacionais, estéticas, sexuais, afetivo-amorosas e de ativismo político 1. As relações sociais realizadas a partir da interconexão mundial de computadores (rede ou ciberespaço) definem uma cultura peculiar. Definida por Lévy 2, a cibercultura seria o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.
Como qualquer processo tecnocientífico, as sucessivas transformações incorporadas acabam por produzir saltos qualitativos nos modos de operar e reproduzir as tecnologias. A popularização da Internet, iniciada em 1980, ganhou expansão inigualável a partir dos anos 2000. Tal fase, denominada “web 3.0”, trata das plataformas voltadas às redes sociais, suportada por uma nova categoria de aparelhos (smartphones, tablets) permitindo conexões mais velozes, remotas por acesso sem fio (wi-fi e wi-max), por redes caseiras, por tecnologias bluetooth e autoatualizáveis 3,4. Além de permitirem conexão instantânea, também possibilitaram aos sujeitos mobilidade, fazendo com que qualquer pessoa tenha a liberdade de se expressar, produzir, distribuir e compartilhar informações, fotos, vídeos, mensagens de texto, a qualquer hora, em qualquer lugar.
Na cibercultura, a ubiquidade da informação, os documentos interativos interconectados, as telecomunicações recíprocas e assíncronas em grupos e intergrupais fazem do ciberespaço vetor de um universo aberto 2.
Todavia, da mesma forma que permite a “livre-expressão” de ideias e modos de viver, que viabiliza associativismos de toda ordem, que democratiza o acesso à informação, o desenvolvimento de tecnologias capazes de rastrear informações, atitudes e gostos pessoais constitui uma oportunidade ímpar para a oferta insistente de mercadorias por diversas empresas, e tal função seria o sustentáculo desta cultura, instituindo uma espécie de “panóptico de mercado” sem igual 5.
Os críticos da cibercultura irão pontuar também que a cultura digital com base em suas lógicas e gramáticas próprias, convida seus partícipes à (hiper) exposição de identidades e espetacularização das intimidades, com consequências inerentes à imagem pessoal e à privacidade 3,6. Nesse contexto, no dia a dia, os sujeitos acabam naturalizando a prática de postar para uma multidão de espectadores todo tipo de informação, como acidentes, manifestações, passeios realizados, amores correspondidos ou não, relações afetivo-sexuais iniciadas e desfeitas, fotos e vídeos íntimos.
Assim, seria possível associar a cibercultura ao conceito de “sociedade do espetáculo”, cunhado por Debord 7. Todavia, não se trata mais da apropriação do real por meio da representação do mundo via uso de mídias de massa. Na cibercultura, a simulação é tomada como via de apropriação do real (realidade virtual). Passamos de meros observadores maravilhados com a obra (sociedade do espetáculo) aos agentes dentro da obra, como navegadores, exploradores e atores (sociedade da simulação) 4.
As comunidades virtuais eletrônicas permitem agregações em tornos de interesses comuns, independentes de fronteiras ou demarcações territoriais fixas, instituindo um território simbólico de pertencimento e partilha 8.
As relações sociais virtuais estão pautadas numa “hipervisibilidade” da vida pessoal nas mídias, publicizando nos meios digitais questões particulares, de foro íntimo, especialmente os relativos à sexualidade e ao corpo 5. Se estar fora das redes sociais virtuais é sinônimo de exclusão e visto como um comportamento antissocial, ser um partícipe das mesmas redes não significa a expansão de laços reais de solidariedade ou de convivência face a face.
“...paradoxalmente, a experiência de vivermos globalmente conectados parece que não está nos transformando em pessoas mais ‘sociais’. Existem poucas evidências que redes como Facebook, Skype, Instagram ou Twitter estão nos tornando sujeitos mais compassivos ou tolerantes; pelo contrário, é comum o uso desses espaços para práticas desrespeitosas, violentas ou discriminatórias a determinados grupos sociais, mostrando que os discursos que alimentam os preconceitos não são estáticos, mas se atualizam e se reproduzem com a mesma velocidade com que incorporamos as tecnologias em nossas práticas cotidianas” 6 (p. 198).
As interações digitais também passam a constituir espaços de práticas de discriminação e violência, especialmente entre pessoas próximas, como pares e parceiros íntimos. As violências ocorridas nos relacionamentos afetivo-sexuais adolescentes começaram a ganhar maior destaque no meio científico nos Estados Unidos e Europa no fim dos anos 1990, sendo reconhecidas como um problema com severas repercussões à vida e à saúde daqueles que as vivenciam 9,10,11,12,13. Estudos recentes indicam que entre 20% e 50% dos adolescentes norte-americanos já experimentaram uma situação de violência durante as relações íntimas 14, atraindo a atenção da comunidade científica para o abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais.
Esses envolvem desde ameaças e insultos em mídias sociais digitais até mesmo a disseminação de fotos, vídeos, mensagens íntimas sem o consentimento prévio, com o intuito de humilhar, difamar a pessoa, bem como inclui as formas de controle das postagens e comunicações feitas 15,16,17.
Concordamos com distintos autores, como Dick et al. 18, Lucero et al. 19, Zweig et al. 20 e Schnurr et al. 21 que entendem que o abuso digital nas relações afetivo-sexuais é uma nova expressão da violência entre parceiros íntimos e não meramente uma forma de cyberbullying. Não é negar, entretanto, como demonstram alguns estudos, a existência de uma inter-relação entre esses fenômenos, isto é, quem já sofreu bullying/cyberbullying teria mais chances de também sofrer abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais 22.
O cyberbullying é uma forma de bullying que está circunscrito às relações entre pares 23,24 e também constitui um fenômeno recente, cujos estudos e primeiras publicações datam de aproximadamente meia década atrás, sobretudo na Europa e Estados Unidos 25,26,27,28. Consequentemente sua definição não é consensual nem mesmo entre os diversos autores que buscam definir esse fenômeno 24,29,30.
O abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais, apesar de também usar as mídias digitais como meios de veiculação, não se limita ao âmbito dos pares (há namorados com grande diferença etária, por exemplo), além de também se apresentar nos relacionamentos entre parceiros(as) adultos(as) (fato este que raramente ocorre no cyberbullying). A audiência (exposição para testemunhas) tem papel importante nas dinâmicas de poder e humilhação na prática do cyberbullying, o que não ocorre necessariamente no abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais. Essa forma de abuso digital é estabelecida especificamente entre parceiros ou ex-parceiros afetivo-sexuais (o que não é aplicado ao bullying) - o que implica relações de intimidade e de confiança de outra ordem que aquela entre pares/colegas. Como destacam Zweig et al. 20, a capacidade de compartilhar facilmente informações privadas e da intimidade sexual sobre o(a) parceiro(a) pode intensificar uma experiência qualitativamente diferente para quem a vivencia.
A forma como os conteúdos relativos ao abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais são disseminados pela Internet torna muito difícil identificar sua autoria, responsabilizar seus perpetradores, assim como impedir que o material exposto continue sendo reproduzido em outros meios digitais, acessado em todo o planeta, mesmo que já tenha passado meses ou anos.
Como já reportado pelos estudos da área, os adolescentes são extremamente vulneráveis a essas modalidades de violência. A sociabilidade digital atrai de forma particular os adolescentes, que no processo de construção da identidade incorporam a Internet ao seu cotidiano e nela se expressam e se expõem 31. As tecnologias digitais suscitam aos adolescentes a hiperexposição de sua imagem, de forma voluntária e sem crivos críticos ou protetivos. Assim, postagens com conteúdos íntimos podem ser replicadas sucessivamente para terceiros 32.
Conhecer o estado da arte sobre o abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais pode contribuir para uma maior compreensão deste fenômeno pouco conhecido, elencando subsídios para ações com vistas ao empoderamento especialmente dos jovens para uma reflexão crítica sobre a hipervisibilidade da intimidade nas relações digitais, assim como para a reflexão acerca das novas formas de violência entre parceiros, agora também mediadas pela Internet.
Este estudo objetiva compreender como a literatura científica sobre o abuso digital ocorrido nas relações afetivo-sexuais tem conceituado o fenômeno, quais designações lhe atribuem, quais implicações para a saúde são descritas e quais tecnologias sociais de intervenção são sugeridas.
O presente artigo constitui uma revisão bibliográfica integrativa. Essa forma de revisão sistemática que prevê a inclusão de estudos realizados sob a condução de metodologias as mais diversas, tem por objetivo analisar o conhecimento já construído em pesquisas anteriores sobre um determinado tema, permitindo a geração de novos conhecimentos 33. Assim, a revisão integrativa apresenta o estado da arte sobre um tema e contribui para o desenvolvimento de novas teorias 34.
Adotamos as seis fases descritas por Botelho et al. 12. Inicialmente elaborou-se a questão de investigação, que orientou o levantamento de artigos científicos e a caracterização das fontes estudadas. As questões investigativas deste estudo foram: “Quais conceitos e denominações são atribuídos ao abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais?”; “Como o abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais é caracterizado (tipos, vivências e consequências)?”; “Quais as implicações para a saúde dos envolvidos são citadas?” e; “Quais os tipos de tecnologias sociais são sugeridos como prática de intervenção?”.
A segunda fase envolveu a definição dos critérios de inclusão dos textos: estar nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), MEDLINE, PubMed e Periódicos Capes; qualquer ano de publicação (até 2016 inclusive); qualquer nacionalidade; qualquer idioma; e estar disponível para impressão. Os descritores utilizados foram: Cyber Dating Abuse (CDA); Cyber Dating Abuse (AND) Revenge Porn (CDARP); Cyber Dating Abuse (AND) Sexting (CDAS); Cyber Dating Aggression (CDAgg); Teen Dating (AND) Cyber Abuse (TDCA). Foram desconsiderados todos os artigos que não se enquadravam nos objetivos do referido estudo.
Durante a terceira fase foi realizada a leitura criteriosa dos títulos, resumo e palavras-chave de todas as publicações selecionadas. Após a leitura de cada publicação e eliminação dos textos duplicados, foram selecionados 35 artigos (Tabela 1).
BVS: Biblioteca Virtual em Saúde; CDA: Cyber Dating Abuse; CDAgg: Cyber Dating Aggression; CDARP: Cyber Dating Abuse (AND) Revenge Porn; CDAS: Cyber Dating Abuse (AND) Sexting; TDCA: Teen Dating (AND) Cyber Abuse.
* Foram excluídos todos os artigos que não traziam a discussão sobre cyber dating abuse e/ou teen dating & cyber abuse, artigos duplicados e os que foram publicados em 2017.
Na quarta fase foi elaborada a matriz de síntese dos estudos selecionados com base nas variáveis: fonte/ano, referência, país de origem, palavras-chave e base de dados, e fonte, objetivo e metodologia do estudo.
Ao longo da quinta fase, os artigos foram classificados segundo as categorias definidas: conceituação/denominações, caracterização e tecnologias sociais de intervenção. Na sexta fase realizou-se a síntese de todo o conhecimento conforme a categorização descrita.
Como é possível observar nos Tabelas 2 e 3, os estudos sobre abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais além de serem muito recentes (o mais antigo data de 2010), em sua maioria foram realizados por instituições norte-americanas (22), seguidos das espanholas (6), belgas (4), britânica (1), italiana (1) e da República Tcheca (1).
BVS: Biblioteca Virtual em Saúde; CDA: Cyber Dating Abuse; CDAgg: Cyber Dating Aggression; CDARP: Cyber Dating Abuse (AND) Revenge Porn; CDAS: Cyber Dating Abuse (AND) Sexting; TDCA: Teen Dating (AND) Cyber Abuse.
Soma-se a isso o fato de 13 das 35 publicações serem resultados de pesquisas de quatro grupos 18,20,35,36,37,38,39,40,41,42,43,44,45, demonstrando que o tema ainda está ganhando espaço no meio acadêmico científico e que basicamente são os mesmos pesquisadores que se dedicam ao estudo deste novo fenômeno social.
A maior parte das publicações optou pela realização de estudos transversais (12), seguidos daqueles que optaram pela revisão da literatura (5) e survey (5), pelo estudo longitudinal (3), pelo modelo de caso-controle (2), pelo estudo quantitativo (2), ensaio (1), análise de banco de dados quantitativo e qualitativo (1) e somente quatro artigos adotaram exclusivamente a metodologia qualitativa.
Cabe ressaltar ainda que delimitamos, intencionalmente, o fenômeno do abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais na busca bibliográfica, excluindo as formas usuais de cyberbullying, objetivando a delimitação desta nova expressão da violência entre parceiros íntimos. Diante disso, é possível verificar na Tabela 4 a polifonia de termos no trato científico do fenômeno, no qual o abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais é também definido como: cyber dating violence/abuse (o mais frequente); on-line dating abuse; cyber aggression; cyberacoso/cyber perseguição; intimate partner cyber harassment; technology based abuse; electronic dating aggression/cyber-stalking; technology and dating conflict; technology assisted adolescent dating violence and abuse (TAADVA); digital forms of dating abuse; socially interactive technologies (SITs) abuse/violence; partner cyber abuse, evidenciando que o fenômeno ainda não foi suficientemente reconhecido e explorado pelo campo científico, e seus contornos ainda estão sendo demarcados pelos estudiosos.
Por ser um fenômeno que ainda não está suficientemente definido na literatura científica, como é possível verificar na Tabela 4, o abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais - com base na síntese da literatura levantada - pode ser caracterizado como: uma nova expressão da violência entre parceiros íntimo; um fenômeno emergente, com características específicas e elementos diferenciados da violência ocorrida no namoro face a face e no cyberbullying, perpetrado por meio do uso da Internet e de tecnologias digitais que não têm barreiras geográficas ou temporais para sua expressão, com a intenção de causar danos ao(à) parceiro(a), e com importantes consequências à saúde mental de suas vítimas.
Ainda tomando por base a Tabela 4, dentre os tipos de abusos digitais identificados estão: (1) a agressão direta e controle; (2) a associação com outros tipos tradicionais de violência entre parceiros íntimo; e (3) a interação das formas de abusos digitais nos relacionamentos afetivo-sexuais com o sexting.
A agressão direta está relacionada a comportamentos deliberados por meio do uso de tecnologias que permitem acesso às mídias sociais, com a intenção de causar danos ao parceiro, seja com ameaças, insultos, disseminação de informações privadas, incluindo fotos e vídeos pessoais e roubo de identidade realizada por meio da criação de perfil falso do parceiro atual ou ex-parceiro em rede social, e o controle/monitoramento à vigilância ou invasão de privacidade do parceiro atual ou ex-parceiro a fim de rastrear a última conexão, ou usar a senha pessoal do parceiro sem o seu consentimento para verificar seu e-mail, mensagens, contatos telefônicos, rede social ou até mesmo para monitorar a sua localização por sistema de posicionamento global (GPS), por meio de insistentes contatos telefônicos, ou ainda postando fotos e vídeos com o propósito de humilhar e embaraçar o parceiro ou ex-parceiro 19,22,35,36,37,41,42,43,46,47,48,49,50,51,52,53,54,55,56.
Em um estudo realizado por Borrajo et al. 36, no que diz respeito às dinâmicas de disseminação, verifica-se que mais de 50% dos casos relatados de abusos digitais ocorridos nos relacionamentos afetivo-sexuais foram praticados via serviço de mensagem ou aplicativos de mensagens, como WhatsApp, 40% via rede de relacionamento social, como Facebook, e cerca de 7% via e-mail. Tal distribuição revela também a predileção dos jovens por determinadas mídias sociais 5.
Sobre o abuso digital e a associação com outros tipos tradicionais de violência perpetrada por parceiro íntimo (“off-line violence”), os achados científicos sugerem que aqueles que são vítimas de violência no namoro em um contexto face a face têm maior propensão de serem também vitimados pelos parceiros no ambiente digital 37,40,42,43,44,47,48,49,52,54,55,56,57,58,59,60,61,62. Contudo, não há consenso entre quais formas de violência no namoro presencial são mais determinantes para a ocorrência do abuso digital no relacionamento afetivo-sexual. Observou-se que os autores entendem por “formas tradicionais de violência no namoro” aqueles relacionamentos face a face que envolvem uma variedade de comportamentos violentos e coercitivos, que incluem o abuso verbal, físico, psicológico, sexual, assédio e, até mesmo, perseguição no contexto do namoro passado ou presente 37,40,42,43,44,47,48,49,52,54,55,56,57,58,59,60,61,62.
Tendo em conta a facilidade e a imediaticidade oferecidas pelas novas tecnologias on-line para a disseminação dos conteúdos abusivos, jovens chegam a experimentar até 23 incidentes diferentes de abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais em um intervalo de apenas seis meses 36 e se prevê o aumento potencial do risco de ocorrência do mesmo, dado a sua natureza indireta, a ausência de espaços geográficos-temporais e a frequente reciprocidade destes atos 19,35,36,37,39,41,45,54,55,56,61.
Apesar da alta prevalência reconhecida pelos estudos, a literatura vem destacando que a prática do abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais entre os adolescentes é muitas vezes naturalizada e confundida como “prova de amor” e cuidado, em que comportamentos abusivos de controle e intimidação são justificados por meio de uma visão romantizada do amor 35,36,37 ou podem ser justificados como “apenas uma brincadeira” 36. Em geral, os adolescentes não entendem as diversas formas de abuso emocional no meio virtual e o cyber controle como violência, mas sim como comportamentos “irritantes” praticados pelos parceiros 19.
Os estudos mostram ainda haver alta prevalência de sofrer ou praticar o abuso digital nos relacionamentos tanto para homens quanto para mulheres, mas com características diferenciadas de gênero 37, já que as mulheres praticam, especialmente, a categoria “controle/monitoramento” 19,36,55,61 e os homens costumam praticar mais a categoria “agressão direta”, compartilhando imagens e mensagens de sexting das parceiras 19,22,45,52,53,55,56,58,62,63,64 após o término do namoro, tornando o revenge porn algo “viral” 19,35.
Outro aspecto que parece atingir de forma diferenciada moças e rapazes é a intensidade 35 com que as meninas experienciam as consequências emocionais do abuso digital sofrido dentro do relacionamento afetivo-sexual, contudo, não há diferenças significativas da prática do abuso digital no relacionamento entre sexos em relação ao contexto de justificação (por ciúme, “brincadeira”, revide ou por raiva e desejo de causar danos) 36.
No estudo desenvolvido com adolescentes por Lucero et al. 19, para as meninas entrevistadas o “monitoramento” é um componente necessário ao relacionamento amoroso, e é bastante comum criarem perfis falsos em redes sociais para monitorar fotos, e-mail, mensagens e tudo o que conseguirem sobre o que seus namorados têm feito no espaço virtual. Assim como acreditam que o compartilhamento de senhas é um sinal de confiança, de amor e de ter um relacionamento comprometido, e que neste contexto, a prática de apagar mensagens de outras meninas do celular do parceiro é algo comum 19. Já os meninos afirmam ter consciência de que suas parceiras os monitoram constantemente nas redes sociais, e dizem não gostar de fornecer senhas pessoais, algo que só se faz quando já se tem construída a confiança entre os pares 19.
Diante disso, controle e ciúmes por parte das meninas não é percebido como um comportamento abusivo, mas sim como forma de proteção da relação amorosa, como algo positivo e normal na relação, uma demonstração de amor 19.
Agora, levando em conta as interações das formas de abusos digitais nos relacionamentos afetivo-sexuais com o sexting, é importante destacar que este termo surgiu nos Estados Unidos pela combinação de duas palavras, sexo (sex) e mensagem (texting). A prática do sexting consiste no envio de mensagens de texto, fotografias e vídeos de conotação sexual, com nudez, para um determinado sujeito ou para uma multidão 32,65. O sexting como prática consensual não é designado como uma violência, todavia, sua postagem não consentida constitui, como forma de revenge porn, um tipo de abuso digital nas relações afetivo-sexuais.
O revenge porn ocorre mais frequentemente na fase de término dos relacionamentos afetivo-sexuais - como bem demonstra a literatura identificada neste acervo - quando um dos ex-parceiros ou ambos compartilham na Internet fotos e vídeos íntimos criados durante a vigência do relacionamento afetivo-sexual, sem o consentimento de um dos envolvidos, com o intuito de difamar, humilhar, chantagear e/ou se vingar 66.
Já no que concerne às associações entre o abuso digital ocorrido nos relacionamentos afetivo-sexuais e saúde mental dos adolescentes que são vitimados, indica-se a presença de altos níveis de estresse pós-traumático 36,54, uso de substâncias psicoativas 20,38,43,44,56,60,64, ansiedade 20,36,38,43,54,62,64, agressividade/hostilidade 20,38,43,54, distúrbios do sono 54, sintomas depressivos 20,36,38,43,46,54,56,61,62,64, violência autoinfligida 46, ideações e tentativas de suicídios 54,56.
Fatores associados à saúde sexual e reprodutiva 18,20,40,41,43,44,46,50,60,64 são indicados por Jackson et al. 46, e Miller & McCauley 50 que salientam que o abuso digital ocorrido nos relacionamentos afetivo-sexuais e a coerção reprodutiva são as mais recentes formas de abuso no relacionamento íntimo. Dick et al. 18 verificaram que as moças participantes de seu estudo com exposição recente ao abuso digital em seus relacionamentos amorosos tinham de 2 a 4 vezes mais chances de não usarem nenhuma forma de contracepção, e de 3 a 6 vezes mais chances de experimentar alguma forma de coerção reprodutiva e/ou “comportamentos sexuais de risco” se comparadas com aquelas que não haviam sofrido nenhuma exposição ao abuso digital no relacionamento afetivo-sexual, mais uma vez indicando a sinergia entre as dinâmicas de violência nas relações digitais e nas relações presenciais.
Outros possíveis desfechos deletérios aos adolescentes que sofrem abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais são o baixo rendimento escolar 20,38,56 e comportamentos delinquentes 20,38.
Sobre as tecnologias sociais de intervenção, todos os estudos analisados reconhecem a necessidade de abordagens que priorizem o enfrentamento dessa nova modalidade de violência perpetrada por parceiros íntimos.
Borrajo et al. 35 recomendam a criação de programas de prevenção voltados aos meninos(as) antes deles entrarem na adolescência e que problematizem as justificativas alegadas para a ocorrência do abuso nas relações afetivo-sexuais adolescentes, como “ciúmes”, “uso da agressão como brincadeira”, ou ainda “o revide”, nos casos em que o(a) parceiro(a) pratica a violência porque o outro também cometeu.
Dois artigos destacaram que determinados grupos, devido à sua peculiar condição de vulnerabilidade, deveriam ser priorizados. Dank et al. 38 sugerem estudos preventivos e de intervenção profissional destinados a jovens lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, tomando como base seu estudo que revela uma prevalência maior de abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais destas pessoas em relação aos heterossexuais. Foshee et al. 57, baseando-se na avaliação da eficácia do projeto Moms and Teens for Safe Dates, indicam programas de prevenção especificamente voltados aos adolescentes expostos à violência doméstica, uma vez que estes são potencialmente vulneráveis à violência no namoro. Acrescenta-se também a essas propostas a sugestão de Sánchez et al. 58 e Walrave et al. 45, que reforçam a necessidade de ações visando a ampliar o conhecimento dos jovens quanto às condutas sexuais de risco e consequências legais envolvidas na prática do sexting no namoro.
A sugestão de incluir profissionais capacitados à identificação, orientação, prevenção e intervenção nos casos de abuso na abordagem às famílias e nas escolas, foi destacada por Dank et al. 38 e Murray et al. 51, que reforçaram o papel relevante dos conselheiros familiares e escolares para orientar as famílias e estudantes quanto ao risco do namoro violento na adolescência, visando à desnaturalização desta forma de abuso, muitas vezes minimizados pelos pais dos jovens como eventos de pouca importância. A capacitação de médicos e demais profissionais de saúde para a identificação das formas de violência no namoro, incluindo o abuso digital, é também sugerida por Miller & McCauley 50. Bem como a implantação de programas de prevenção à violência no namoro nas escolas 43.
Outro destaque enfatizado por Johnson et al. 67 diz respeito à necessidade de se reestruturar os currículos acadêmicos de psicólogos que atuam nas escolas, enfatizando não só um conhecimento generalista sobre a violência ocorrida no namoro adolescente, mas também como avaliar e intervir diante dos casos de abuso digital.
Por fim, a literatura apontou também a necessidade de desenvolvimento de trabalhos focados no abuso digital ocorrido nos relacionamentos afetivo-sexuais. Para tal, sugerem a realização de estudos qualitativos de profundidade que busquem compreender as experiências de abuso digital perpetrado pelo parceiro íntimo no mundo tecnológico e moderno atual, visando a esforços de prevenção e intervenção 19,22,47,49,52,53,60,63 que tenham a preocupação de distinguir jovens com orientação heterossexual daqueles com orientação homossexual 38,46, que relacionem a prática do sexting, uso de álcool, comportamentos sexuais de risco, depressão e ansiedade, e a violência digital ocorrida no contexto do namoro 44,62,64.
A revisão feita reitera subsídios para afirmar as diferenças entre o abuso digital nas relações afetivo-sexuais e o cyberbullying, considerando os três tipos principais de abuso digital ocorridos nos relacionamentos afetivo-sexuais (controle/monitoramento; pornografia de vingança, incluindo o sexting não consentido; e agressão direta), tratados neste artigo.
A primeira diferença envolve a questão da audiência (postagens destinadas à humilhação pública entre o coletivo de pares) central para o cyberbullying, e não necessariamente presente no abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais. Nesse, o rastreamento e o monitoramento realizados estão voltados para o(a) parceiro(a) afetivo-sexual, e são realizados de forma discreta, sem o conhecimento público ou do(a) parceiro(a). O anonimato e sigilo nas práticas de abuso cometido nas relações de intimidade são nevrálgicos à sua reprodução. Há, por exemplo, dezenas de aplicativos disponíveis para os aparelhos de telefonia móvel (Android e iPhone), que permitem o controle remotamente do mesmo, de maneira simples, gratuita e sem o conhecimento do parceiro(a) de todas as ações feitas usando-se o celular, desde suas postagens, conversas, até seus deslocamentos por meio do uso de tecnologia GPS, ligações, fotografias e vídeos feitos, dentre outros.
A forma de perseguição (harassment) ou controle/monitoramento no abuso digital ocorrido nas relações afetivo-sexuais é aquela conhecida pela literatura de violência de gênero/violência entre parceiros íntimos, isto é, voltada para o controle dos comportamentos e contatos sociais, para o monitoramento de amizades e possíveis traições amorosas 35. Assim, a relação de poder (e de desigualdade de poder) está associada à ideia de controle do(a) parceiro(a) amoroso(a), portanto, vinculada a uma perspectiva de gênero.
Já a pornografia de vingança que inclui a ampla e disseminada prática do sexting não consentido e a agressão direta também se apresentam nas formas de cyberbullying. O sexting não consentido, inclusive, não se delimita aos parceiros afetivo-sexuais. Já os comportamentos de agressão direta referem-se a atos destinados a causar danos ao(à) parceiro(a), como ameaçar, insultar, espalhar informações falsas e/ou depreciativas 35. Mas mesmo esses pontos de convergência implicam enquadramentos de representações sociais diferentes: o abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais muitas vezes é lido por suas vítimas como uma demonstração de amor e ciúme, o que não acontece no cyberbullying e é característico da violência perpetrada entre parceiros íntimos.
A prática do abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais não está circunscrita ao âmbito das relações afetivo-sexuais de adolescentes, pois está também presente entre adultos, todavia, os mais jovens são potencialmente mais vulneráveis aos seus efeitos 68. Os danos à identidade, autoestima, integridade e privacidade de quem sofre o abuso digital nos relacionamentos íntimos deixam marcas psíquicas cujas extensões ainda são pouco conhecidas, podendo levar ao isolamento, à depressão, ansiedade, uso de drogas, baixo rendimento escolar e até mesmo à tentativa e/ou efetivação do ato suicida 69,70.
Tais consequências nos alertam quanto à importância do olhar atento dos profissionais de saúde para a problematização e abordagem desses temas junto aos adolescentes, bem como sua contribuição para a identificação das situações. Ainda que seja recente, por sua expressão digital e tecnológica, o tema da violência entre parceiros íntimos já encontra acúmulo de experiências na saúde e educação, e indica que discutir com meninos e meninas as relações amorosas adolescentes/juvenis continua sendo demanda pouco atendida e estratégica, face à vulnerabilidade que este segmento etário apresenta para sofrer e praticar diversas formas de violências.
Numa época de relações de hiperexposição on-line, o abuso digital constitui um dano à imagem pública, que representa capital essencial no campo das relações sociais virtuais 5,71. Constitui também uma nova modalidade de violência entre parceiros íntimos, desafiando os estudos a conhecerem melhor se haveria basicamente uma continuidade de ações entre parceiros já violentos nas relações presenciais, ou se o ambiente digital estimularia aqueles que não praticariam atos semelhantes sem tais meios. A alta reciprocidade da prática do abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais entre homens e mulheres indica ainda que estudos futuros devem buscar compreender como as dinâmicas de gênero são reproduzidas ou subvertidas nessa forma de violência digital.
Defendemos que as intervenções devem focar menos na ideia de controle do uso das tecnologias (porque estas constituem um eixo central na sociabilidade juvenil contemporânea) e mais na discussão crítica das violências banalizadas no cotidiano das relações afetivo-sexuais, desde as suas primeiras vivências juvenis.