versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.3 Rio de Janeiro mar. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018243.29082016
O conceito de Atenção Primária à Saúde (APS), normatizado em 1978 em Alma Ata no Cazaquistão, foi sendo construído em todo o mundo passando por diversas interpretações e nomeações1. No Brasil, o Ministério da Saúde define APS como um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual ou coletivo, situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde2. A partir dos princípios ordenadores, definidos por Starfield em 20023, têm-se o enfoque voltado para promoção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde.
No contexto da APS, a Estratégia de Saúde da Família (ESF), hoje reconhecida como eixo fundamental para reorganização dos serviços, iniciou-se como um Programa em 1994 e se consolidou como estratégia prioritária na reorientação do Sistema Único de Saúde (SUS)4. Nesse sentido, a Política Nacional de Atenção Básica criada em 2006 tem o papel de orientar as ações em saúde, a partir de uma visão territorial e próxima da realidade da população para que ocorra, de fato, a qualificação do modelo de atenção em saúde2.
Dentre os atributos essenciais da Atenção Primária em Saúde, onde está inserida a Estratégia de Saúde da Família, a garantia do acesso e o uso dos serviços de maneira efetiva tem um caráter fundamental. Entretanto, muitas vezes, os conceitos de acesso e acessibilidade são utilizados com pouca clareza e de forma confusa. Para facilitar a compreensão desses termos, define-se acesso como “porta de entrada” no serviço de saúde, sendo exemplificado pelo local de acolhimento do usuário e pelos caminhos percorridos por este dentro do sistema5. De outra forma, acessibilidade é vista como um conceito mais amplo, correspondendo a uma relação intrínseca entre a oferta de serviços e seu impacto na capacidade de utilização da população6.
Neste contexto, entra em cena a Política Nacional de Saúde Bucal, criada em 2004, com vistas a garantir a organização da atenção em saúde bucal no âmbito do SUS, estando em consonância com a garantia do acesso a esse serviço. Paralelamente, essa Política ressalta a importância da promoção e prevenção de saúde bucal na primeira infância, visto que esta é a faixa etária ideal para o estabelecimento de hábitos saudáveis, não se esquecendo da importância do enfoque familiar7.
Sabe-se que muitos aspectos podem determinar e influenciar o processo de saúde-doença. Com relação à saúde bucal infantil, a cárie dentária é o principal problema a ser enfrentado no Brasil, uma vez que no último Levantamento Nacional as crianças de 5 anos de idade apresentaram uma média de 2,43 dentes com experiência de cárie8, índice acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse sentido, são necessárias intervenções e abordagens precoces em nível individual e coletivo para prevenção da cárie. Na literatura é sugerido que o aconselhamento para saúde bucal deve começar dentro dos seis primeiros meses de erupção do primeiro dente decíduo da criança para diminuição do risco de cárie dentária9.
Apropriar-se dos fatores relacionados à procura por consulta odontológica na primeira infância torna-se necessário, visto que existe uma série de variáveis que permeiam o acesso. Além disso, são escassos os estudos nacionais a respeito da utilização dos serviços odontológicos, dos motivos que influenciam a procura por atendimento odontológico nos primeiros anos de vida e os fatores associados. Portanto, o objetivo do estudo foi avaliar o acesso e os fatores associados à consulta odontológica em crianças menores de 5 anos no município de Porto Alegre, RS, Brasil.
Estudo transversal realizado em Unidades Básicas de Saúde vinculadas à Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre durante a Campanha Nacional de Multivacinação de 2008, por meio da aplicação de questionário e exame clínico.
Foi realizada uma randomização por blocos a partir dos 11 distritos sanitários do município de Porto Alegre de modo que o sorteio respeitou a proporcionalidade populacional e o número de unidades de saúde de cada região. Os locais de vacinação foram selecionados aleatoriamente, de forma sistemática, usando como base o número de crianças vacinadas em cada unidade de saúde na campanha do ano anterior. Das 12 unidades de saúde, duas foram excluídas por motivo de não autorização do coordenador local para a realização da pesquisa, totalizando então 10 unidades de Atenção Primária.
Uma amostra consecutiva de 560 crianças com idade inferior a 5 anos e pelo menos um dente visível presente em boca foi avaliada. Os pais foram abordados enquanto aguardavam na fila da vacina e convidados a participar do estudo, em sequência alternada, de forma em que um era convidado e o outro não. Em casos de negativa em participar do estudo, o próximo da fila era convidado e assim sucessivamente. Os responsáveis pelas crianças foram entrevistados por 10 avaliadores de campo previamente treinados, utilizando-se um questionário estruturado e pré-testado em um estudo piloto com crianças e mães do ambulatório de pediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Após, exames bucais foram realizados por 13 examinadores treinados e calibrados previamente para cárie seguindo as recomendações da OMS10. A calibração foi realizada através de um método in vitro utilizando dentes decíduos esfoliados e/ou extraídos descrito por Cleaton-Jones et al.11 em duas etapas, com intervalo semanal. Outros estudos utilizaram essa metodologia em levantamentos epidemiológicos12,13 sendo, inclusive, recentemente validado clinicamente para o ICDAS que é um teste diagnóstico mais sensível que o índice ceo-d OMS14. Para a reprodutibilidade intra e inter-examinador foram aceitos escores Kappa ≥ 0,6. Os exames foram realizados sob luz natural, com o auxílio de espátulas de madeira para o afastamento e remoção de possíveis detritos sobre as superfícies dentárias, com a utilização de gaze quando necessário.
As variáveis sociodemográficas coletadas foram: I) sexo; II) idade da criança e da mãe; III) número de filhos; IV) estrutura familiar (nuclear (casal com filhos), expandida (outros arranjos), mãe/filhos); V) renda familiar em Reais; VI) escolaridade da mãe e do pai; VII) cuidador da criança na maior parte do tempo (mãe, pai, avô/avó, irmãos, creche, vizinho, babá/cuidadora, outros). As variáveis de acesso à consulta odontológica foram: I) “A criança já consultou o dentista?”, com opção de resposta ‘sim’ ou ‘não’ – sendo o desfecho do estudo; II) motivos pela não procura (não ter sentido necessidade, dificuldade de acesso ao posto, falta de interesse, falta de tempo, criança não possuir dentes, não ter sido encaminhado/indicado, médico ou outro profissional já ter realizado orientações, outros); e motivos pela procura (prevenção, revisão, cárie, trauma, encaminhamento por outro profissional, dor, distúrbios de erupção, outros); III) local de realização da consulta (posto de saúde, consultório particular, outros).
As variáveis clínicas coletadas foram: I) placa visível (somente em dentes anterossuperiores); II) sangramento gengival espontâneo (avaliados por meio da presença ou ausência nos dentes anterossuperiores); III) ceo-s - índice correspondente ao CPO-S, mas em relação às superfícies da dentição decídua (não incluindo os dentes perdidos pela dificuldade de diferenciá-los do processo natural de esfoliação dentária). Foi considerado índice 0 para os casos em que não havia nenhuma superfície de dente decíduo com lesão cavitada de cárie e índice maior ou igual a 1 quando uma ou mais superfícies decíduas estavam cariadas.
Para a análise de dados, após dupla digitação do banco com conferência, duas variáveis foram categorizadas buscando-se a melhor forma para o modelo: a renda familiar bruta foi descrita em salários mínimos (R$ 415,00) e a escolaridade em ‘até fundamental completo’, ‘até ensino médio completo’ e ‘superior ou pós-graduação’. A análise se deu a partir do programa Statistical Package for the Social Scienses (SPSS 21.0) sendo realizada estatística descritiva com cálculo da frequência absoluta e relativa, comparação de médias por meio do teste t de Student e teste de Mann-Whitney, além do teste do qui-quadrado para comparação de proporções. As razões de prevalência (RP) foram calculadas por meio da análise de Regressão de Poisson com variância robusta. O valor para rejeição da hipótese nula foi de 0,05.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, RS, Brasil.
No presente estudo 560 crianças foram avaliadas. Destas, a maior parte era do sexo masculino (51,6%), possuía idade média de 32,6 (DP ± 16,2) meses, ficava a maior parte do tempo com a mãe (51,3%) seguido da creche (25,1%). Suas mães (54,5%) e pais (49,4%) não possuíam o segundo grau completo e a renda familiar era em média de 3,21 (DP ± 16,2) salários mínimos. Quanto às questões odontológicas, 382 crianças nunca foram ao dentista (68,2%), 208 apresentavam placa visível no momento da entrevista, 96 tinham experiência de cárie e 24 com sangramento gengival espontâneo.
A proporção da realização ou não de consulta odontológica associada a variáveis sociodemográficas e odontológicas é apresentada na Tabela 1. Não foi encontrada diferença estatisticamente significativa (p > 0,05) para a realização de consulta odontológica quanto a sexo, número de filhos, tipo de família, presença de placa visível e sangramento gengival. A idade média das crianças que realizaram consulta foi de 41,4 meses (DP ± 15,3) superior a das que não realizaram consulta (28,6 - DP ± 14,9), apresentando diferença significativa (p < 0,001). De forma similar a idade das mães que levaram seus filhos à consulta foi de 30,0 anos (± 6,9) superior às que não levaram (28,3 - DP ± 7,4; p = 0,009). A renda familiar também apresentou diferenças significativas, sendo de 4,82 (DP ± 6,8) salários mínimos para as famílias que levaram seus filhos ao dentista, superior a 2,46 (DP ± 3,4) salários mínimos para as que não levaram. Com relação à escolaridade da mãe e do pai, pôde-se perceber que as crianças que foram ao dentista têm mães e pais com maior grau de ensino. Diferença estatisticamente significativa com relação a prevalência de cárie (p = 0,001) foi encontrada, tendo as crianças que nunca foram ao dentista maior experiência de cárie (55,2%) quando comparadas às que já compareceram a uma consulta (44,8%).
Tabela 1 Frequência da realização ou não de consulta odontológica associada a variáveis sócio demográficas e odontológicas. Porto Alegre, 2008.
Variáveis | Não realizou consulta odontológica | Realizou consulta odontológica | p-valor |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Masculino | 199 (69,1%) | 89 (30,9%) | 0,83* |
Feminino | 174 (68,2%) | 81 (31,8%) | |
Idade (meses) | 28,6 (±14,9) | 41,4 (±15,3) | <0,001# |
Idade da mãe (anos) | 28,3 (±7,4) | 30,0 (±6,9) | 0,009# |
Número de filhos | 1,9 (±1,2) | 1,7 (±1,0) | 0,223% |
Tipo de família | |||
Nuclear | 212 (67,1%) | 104 (32,9%) | 0,104* |
Expandida | 126 (75,4%) | 41 (24,6%) | |
Mãe/filhos | 33 (63,5%) | 19 (36,5%) | |
Renda familiar (SM) | 2,46 (±3,4) | 4,82 (±6,8) | <0,001% |
Escolaridade da mãe | |||
Até Fundamental completo | 179 (78,2%) | 50 (21,8%) | <0,001* |
Até médio completo | 159 (66,5%) | 80 (33,5%) | |
Superior ou pós-graduação | 42 (51,2%) | 40 (48,8%) | |
Escolaridade do pai | |||
Até Fundamental completo | 150 (75,4%) | 49 (24,6%) | <0,001* |
Até médio completo | 152 (68,2%) | 71 (31,8%) | |
Superior ou pós-graduação | 35 (47,9%) | 38 (52,1%) | |
Cuidador | |||
Mãe | 214 (74,8%) | 72 (25,2%) | 0,001* |
Creche | 80 (57,1%) | 60 (42,9%) | |
Outros | 88 (68,2%) | 41 (31,8%) | |
Placa visível | |||
Não | 202 (68,7%) | 92 (31,3%) | 0,412* |
Sim | 135 (65,2%) | 72 (34,8%) | |
Sangramento gengival | |||
Não | 288 (68,9%) | 130 (31,1%) | 0,054* |
Sim | 12 (50,0%) | 12 (50,0%) | |
ceo-s | |||
0 | 324 (72,0%) | 126 (28,0%) | 0,001* |
1 ou mais | 58 (55,2%) | 47 (44,8%) |
*Teste do qui-quadrado; #Teste t de student para amostras independentes; %Teste de Mann-Whitney; SM: Salários mínimos.
A Tabela 2 apresenta análises brutas e ajustadas por regressão de Poisson com razões de prevalências e intervalos de confiança de 95%. A análise univariada apontou que a maior idade da criança e da mãe, maior renda familiar e escolaridade materna, maior parte do tempo na creche, além de ceo-s superior a um estiveram associadas à procura por consulta odontológica. Entretanto, no modelo multivariado final, apenas a idade da criança (RP = 1,035; IC95% 1,022-1,048), a renda familiar (RP = 1,045; IC95% 1,008-1,082) e a conclusão da mãe no ensino médio (RP = 1,689; IC95% 1,114-2,561) tiveram associação com a procura por consulta odontológica. O modelo ajustado apresentou uma qualidade aceitável, verificado por meio do teste de Deviance (p = 0,604) e teste de Omnibus (p < 0,001).
Tabela 2 Razões de prevalência (RP) bruta e ajustada em relação à realização de consulta odontológica. Porto Alegre, 2008.
Variáveis | RP bruta (IC95%) | RP ajustada (IC95%) | p-valor (ajustada)* |
---|---|---|---|
Idade (meses) | 1,034 (1,024-1,044) | 1,035 (1,022-1,048) | <0,001 |
Idade da mãe (anos) | 1,022 (1,002-1,042) | 0,995 (0,969-1,022) | 0,705 |
Renda familiar (SM) | 1,045 (1,024-1,066) | 1,045 (1,008-1,082) | 0,015 |
Escolaridade da mãe | |||
Até 8ª completa | 1 | 1 | - |
Até médio completo | 1,533 (1,077-2,183) | 1,689 (1,114-2,561) | 0,014 |
Superior a pós-graduação | 2,234 (1,474-3,386) | 1,766 (0,924-3,37) | 0,085 |
Cuidador | |||
Mãe | 1 | 1 | - |
Creche | 1,702 (1,209-2,398) | 1,036 (0,683-1,571) | 0,868 |
Outros | 1,262 (0,860-1,853) | 1,091 (0,701-1,698) | 0,699 |
Sangramento gengival | |||
não | 1 | 1 | - |
Sim | 1,608 (0,890-2,904) | 1,235 (0,656-2,327) | 0,513 |
ceo-s | |||
0 | 1 | 1 | - |
1 ou mais | 1,599 (1,114-2,335) | 0,996 (0,665-1,515) | 0,985 |
IC95%: Intervalo de Confiança de 95%; RP: Razão de Prevalência; SM: Salários mínimos.
*Ajuste para Idade da Criança, Idade e Escolaridade da Mãe, Renda Familiar, Provedor do Cuidado, Sangramento gengival e CEOS.
O principal motivo apresentado pelos acompanhantes para a não procura por consulta odontológica foi a falta da necessidade percebida em 48,7% dos casos, seguida da dificuldade de acesso ao posto de saúde (15,8%). Por sua vez, o principal motivo que fez com que os acompanhantes levassem as crianças ao dentista foi a prevenção/revisão (55,8%), seguido da cárie dentária (9,8%) e trauma odontológico (9,2%). Dentre os locais procurados para as consultas, o consultório particular apresentou maior frequência (43,9%), seguido pelo posto de saúde (39,5%) e do hospital (7,0%) (Tabela 3).
Tabela 3 Motivos da não procura e da procura por consulta odontológica. Porto Alegre, 2008.
Motivos da não procura | n (%) | Motivos da procura | n (%) |
---|---|---|---|
Não ter sentido necessidade | 129 (48,7%) | Prevenção | 58 (35,6%) |
Dificuldade de acesso ao posto de saúe | 42 (15,8%) | Revisão | 33 (20,2%) |
Falta de interesse | 32 (12,1%) | Cárie | 16 (9,8%) |
Falta de tempo | 15 (5,7%) | Trauma | 15 (9,2%) |
Criança não possuir dentes | 9 (3,4%) | Encaminhamento por outro profissional | 11 (6,7%) |
Não ter sido encaminhado/indicado | 7 (2,6%) | Dor | 6 (3,7%) |
Médico ou outro profissional já ter realizado orientações | 6 (2,3%) | Distúrbios de erupção | 6 (3,7%) |
Outros | 25 (9,4%) | Outros | 18 (11,1%) |
Total | 265 (100%) | Total | 163 (100%) |
Este estudo se propôs a avaliar o acesso à saúde bucal em um município do Sul do Brasil, buscando entender quais os fatores que estão associados à consulta odontológica em crianças menores de 5 anos. A investigação da relação entre as condições clínicas e socioeconômicas e o acesso ao dentista nesta faixa etária determinou um caráter inédito ao estudo para o município de Porto Alegre.
No Brasil, existem poucos estudos epidemiológicos descrevendo a utilização de serviços odontológicos na primeira infância. Um estudo no Município de Canela (RS) realizado no mesmo ano, com a mesma faixa etária do presente estudo em Campanha de Vacinação, observou uma prevalência de 13,3% de crianças que já haviam realizado algum tipo de consulta odontológica15. Em outro estudo nacional, realizado com pré-escolares em Pelotas (RS) a prevalência de uso de serviço odontológico por qualquer motivo foi de 37%16. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada em 2008, também apresentou uma prevalência semelhante: 77,9% das crianças de 0 a 4 anos de idade nunca haviam ido ao dentista17.
No cenário internacional as prevalências de consulta odontológica em pré-escolares variam conforme o país estudado. Crianças de até 5 anos tiveram maior acesso ao dentista no Reino Unido (94%)18 e Canadá (96,9%)19, enquanto que em outros países também desenvolvidos como Austrália20 e Espanha21, essa prevalência foi de aproximadamente 30%. Por sua vez, estudos realizados no México22 e China23, com amostras representativas, obtiveram resultados semelhantes ao deste estudo (31,8%). Apesar de esse levantamento demonstrar maior acesso do que em âmbito nacional, esta prevalência ainda é insuficiente para garantir a universalidade aos cuidados precoces em saúde bucal. Além disto, a superioridade desse valor pode ser explicada por apresentarmos uma amostra não probabilística.
Com relação à procura por consulta odontológica, foi possível perceber que o principal motivo de ida ao dentista foi a busca pela prevenção/revisão em 55,8% das crianças, resultado semelhante ao município de Torres (RS) (52,3%)24. De forma similar, na Espanha, das 1159 crianças (3 a 6 anos), 80,5% tiveram como motivação o “check-up” para a consulta21. Em Melbourne (Austrália) a maioria dos pais, de 625 crianças imigrantes de até 4 anos, relataram “nenhuma razão para consulta odontológica”25. Mesmo que a literatura demonstre uma baixa prevalência de revisão como motivo para consulta23, diversos autores afirmam que o acesso ao dentista na primeira infância se dá para a prevenção de doenças e manutenção da saúde bucal20,21,26-28. Pode-se inferir assim, que a concepção dos pais ou responsáveis destas crianças está mais voltada para o cuidado prévio e de manutenção de saúde do que para uma concepção curativista.
Poucos estudos apresentaram o motivo para a não procura do tratamento odontológico na primeira infância. Neste levantamento, a principal razão foi a falta de necessidade percebida pelos pais (48,7%), da mesma forma que em estudo realizado no Canadá29. Diferentemente, na Austrália, as barreiras encontradas foram os custos com o tratamento (40%) e longas listas de espera para atendimento (28%)25. Essa ausência de percepção dos pais pode ser explicada pelo fato de acreditarem que os acometimentos aos dentes decíduos não são relevantes e que o dentista deve ser procurado somente em casos em que a criança apresenta sintomatologia extrema30.
Com relação à renda familiar, foi possível observar em um estudo realizado com 970 crianças de 5 a 12 anos na cidade de Recife31 (PE) que as crianças que não realizaram consulta odontológica também estavam inseridas em famílias de baixa renda (55,1% com renda mensal familiar de até um salário mínimo). De maneira semelhante, em outros municípios brasileiros esta observação foi encontrada15,16,32. A literatura internacional corrobora com estes resultados, visto que existem diversos estudos em que a menor renda está associada positivamente com a menor procura ao dentista20,21,33-35, mesmo quando o acesso à saúde no país é elevado18. Nesse sentido, pode-se inferir que a baixa renda é um fator intimamente relacionado com o menor acesso aos serviços, podendo estar combinado a poucos recursos financeiros ou até mesmo a pouco acesso à informação de saúde desta população.
Massoni et al.31 observaram, com relação à escolaridade dos pais ou responsáveis, um valor próximo ao deste estudo, em que 42,7% haviam cursado até o ensino médio. Outros autores36-38 demonstraram uma associação significativa entre a realização de consulta odontológica e nível de escolaridade da mãe. Apesar do nível de escolaridade paterna seguir um padrão semelhante à escolaridade materna, este se torna sem significância em análises multivariadas sobre o tema32,33,39. Buscando-se controlar a renda como um possível fator de confusão nas análises, o maior nível de escolaridade da mãe ainda esteve associado à utilização de serviços de saúde, tanto no Brasil16,32, como em âmbito internacional21,33,35,40. Pode-se explicar esta associação devido ao menor acesso a informações de saúde das mães, prejudicando o entendimento da importância da prevenção precoce.
Observou-se que a idade da mãe no presente estudo apresentou associação significativa com a procura por serviço odontológico. Os resultados apontaram que crianças, cujas mães eram mais velhas, realizavam mais consultas odontológicas do que mães mais jovens. É possível perceber, de maneira semelhante, em outro estudo realizado em municípios do Maranhão, cuja amostra foi de 1214 crianças de idades entre 0 a 5 anos, que a utilização dos serviços de saúde bucal foi maior entre as crianças cujas mães apresentavam mais de 35 anos de idade41. Da mesma forma, em Pelotas (RS)16 e Campina Grande (PB)32, crianças com mães mais jovens utilizavam menos os serviços. Entretanto essa observação ainda não é conclusiva na literatura internacional, visto que alguns estudos encontram associação com a idade materna27,38, enquanto outros não33,42. Apesar de os resultados do presente estudo não terem apontado associação entre o número de filhos e a realização de consulta odontológica, discute-se que mulheres mais velhas, provavelmente, tenham mais conhecimento sobre o cuidado das crianças, advindo de gestações anteriores43.
Quanto à relação entre o índice de cárie e a realização de consulta odontológica, encontram-se na literatura dados coincidentes. No estudo de Darmawikarta et al.44 encontrou-se que crianças com lesões de cárie eram menos propensas a terem visitado o dentista do que àquelas que não apresentavam experiência cariosa. Corroborando, outro estudo, realizado em Ponta Grossa (PR) com uma amostra de 123 crianças de 1 a 3 anos de idade que compareceram à Campanha de Vacinação para Poliomielite, demonstrou que crianças que tinham acompanhamento odontológico recente, apresentavam menos prevalência de cárie45. No presente estudo, não foi encontrado associação estatisticamente significativa nesse aspecto.
Este estudo observou, assim como em uma coorte realizada com uma amostra semelhante33, que as crianças que já haviam visitado o dentista tinham maior média de idade. Em outros estudos da literatura isso também é apresentado15,22,32,38,46, demonstrando que à medida que passam os meses de vida, maior é a chance de a consulta odontológica ter sido realizada. Este aumento pode ser explicado por diversos fatores, desde a necessidade percebida pelos pais devido ao fato de problemas bucais se tornarem mais prevalentes com o aumento da idade, até o fato de haver mais tempo para que os pais conheçam a importância da prevenção. Além disso, também é possível que pela severidade das demandas odontológicas com o passar do tempo, poderia haver um aumento na prevalência de cárie e, ao desencadear dor, os pais levariam as crianças ao dentista.
A literatura demonstra que as mulheres adultas, de maneira geral, apresentam maior procura por serviços odontológicos do que os homens. Entretanto, os presentes resultados demonstram, embasados na literatura47,48, que não há diferença relacionada aos sexos na procura ao dentista durante a primeira infância, podendo ser explicado pelo fato de nesta faixa etária a procura por consulta odontológica ser dependente da decisão dos pais ou responsáveis da criança.
Este estudo apresenta a limitação de não ter uma amostra probabilística. Além disso, o fato de ter sido realizado exclusivamente durante um dia de Campanha de Vacinação pode ter gerado uma amostra mais homogênea, visto que aqueles que vão às campanhas talvez também procurem mais o cirurgião-dentista. É provável que outros fatores relacionados ao acesso possam estar envolvidos na baixa prevalência de procura por consulta odontológica na primeira infância. Assim, estudos longitudinais e que avaliem quais os fatores relacionados aos serviços podem estar associados, certamente, serão úteis para o aprofundamento deste assunto. Além disso, acredita-se que a avaliação dos avanços alcançados até o presente momento em Porto Alegre também se faz válida no sentido de contribuir para a contínua qualificação das políticas, servindo de guia para as ações em saúde bucal na APS da cidade.
O acesso à saúde bucal na primeira infância na população estuda apresentou-se baixo, e esteve associado com aspectos socioeconômicos, com a idade da criança e escolaridade da mãe, além da renda familiar. Destaca-se a necessidade da valorização da prevenção e promoção de saúde bucal infantil e a importância do contexto familiar neste processo durante os primeiros anos de vida da criança.