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Acesso aos cuidados de saúde em Portugal no rescaldo da crise. Nem tudo é dinheiro?

Acesso aos cuidados de saúde em Portugal no rescaldo da crise. Nem tudo é dinheiro?

Autores:

Micaela Antunes,
Luís Moura Ramos,
Óscar Lourenço,
Carlota Quintal

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.36 no.2 Rio de Janeiro 2020 Epub 31-Jan-2020

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00248418

ABSTRACT

Unmet healthcare needs have been used to assess access to healthcare. In scenarios of recession and financial constraints on public policies, it is important to identify which factors besides income can be used to mitigate barriers to access. This was the focus of our study on Portugal’s case in the wake of the crisis. We used 17,698 observations from the 5th National Health Survey (2014). We analyzed self-reported unmet needs for medical appointments and treatments, dental healthcare, and prescribed medications. We used a bivariate selection model, considering the fact that unmet needs could only be observed in the subsample of individuals that felt the need for healthcare. The risk of unmet needs for healthcare decreased in individuals with higher income and schooling levels and in the elderly and men. Exclusive coverage by the National Health Service increased the risk of unmet dental healthcare needs. The absence of a circle of close friends to whom one can ask for help and lack of trust in others increased the likelihood of unmet healthcare needs. Better health decreased the risk of unmet needs. While income is an important predictor of unmet needs, we found the impact of other factors such as gender, age, and education. Participation in informal groups reduced the likelihood of unmet needs. Individuals with more healthcare needs end up suffering additional risk.

Keywords: Health Services Accessibility; Equity in Access to Health Services; Socioeconomic Factors

RESUMEN

Las necesidades de cuidados de salud sin satisfacer se han usado para evaluar el acceso a los cuidados de salud. En escenarios de recesión y restricciones financieras, impuestas a las políticas públicas, es importante identificar qué factores, más allá del rendimiento, pueden ser usados para mitigar las barreras en el acceso. Este es nuestro objetivo para el caso portugués tras la crisis. Se realizaron 17.698 observaciones de la 5ª Encuesta Nacional de Salud (2014). Analizamos las necesidades no satisfechas (auto-informadas) en consultas y tratamientos médicos, cuidados dentales de salud y medicamentos prescritos. Recurrimos al modelo de selección bivariado, ajustando el hecho de que las necesidades no satisfechas solamente podrían ser observadas en la submuestra de individuos que sintieron la necesidad de cuidados de salud. El riesgo de necesidades de cuidados de salud no satisfechas disminuye en el caso de las rentas y niveles de educación más altos, así como en el grupo de los ancianos y hombres. Beneficiar solamente el Servicio Nacional de Salud aumenta el riesgo de necesidades no satisfechas en la salud oral. La ausencia de un círculo de personas cercanas a quién pedir ayuda y la falta de confianza en los otros hacen más probables las necesidades de cuidados de salud no satisfechos. Más salud disminuye el riesgo de necesidades de cuidados no satisfechos. Siendo el rendimiento un importante predictor de las necesidades no satisfechas, encontramos impacto de otros factores como sexo, edad y educación. Participar en grupos informales reduce la probabilidad de necesidades no satisfechas. Aquellos con más necesidades de cuidados de salud acaban por sufrir un riesgo más grande por esta vía.

Palabras-clave: Accesibilidad a los Servicios de Salud; Equidad en el Acceso a los Servicios de Salud; Factores Socioeconómicos

Introdução

O acesso aos cuidados de saúde foi reconhecido, em 2017, pelo Parlamento Europeu, Conselho Europeu e Comissão Europeia como um dos pilares dos direitos sociais na Europa 1. Em Portugal, Equidade e Acesso Adequado aos Cuidados de Saúde é um dos quatro eixos estratégicos definidos no Plano Nacional de Saúde em vigor até 2020 2. Apesar deste contexto, muitos cidadãos, sobretudo de segmentos socialmente mais vulneráveis da população, continuam a apresentar dificuldades no acesso aos cuidados de saúde de que necessitam 3. Durante a turbulência econômica que se viveu na Europa após a crise de 2008, as barreiras ao acesso aos cuidados de saúde tornaram-se ainda mais restritivas 4. Portugal foi também fortemente afetado pela crise econômico-financeira, com a agravante da crise da dívida soberana e a consequente assistência financeira internacional por parte da troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia). Entre 2012 e 2013, Portugal registou o maior aumento da taxa da população em risco de pobreza ou exclusão social, dentre os 28 países da União Europeia 5. Foram implementados cortes da despesa pública em várias áreas, desde as prestações sociais ao setor da saúde 6. Uma análise do impacto da crise global sobre a despesa em saúde revela que ela decresceu em muitos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em Portugal, só em 2011, a despesa pública em saúde caiu 8% 7.

Uma das abordagens que têm sido utilizadas para avaliar o acesso aos cuidados de saúde consiste na identificação de necessidades de cuidados não satisfeitas autorreportadas pelos indivíduos. As necessidades não satisfeitas se definem como as diferenças entre os serviços de saúde julgados necessários para lidar de modo apropriado com problemas de saúde específicos e os serviços efetivamente recebidos 8,9. A preocupação com as necessidades não satisfeitas decorre primariamente do efeito que tal pode ter no estado de saúde dos indivíduos (conduzindo a pior estado) 10,11, com o agravante da sua potencial concentração nos grupos mais desfavorecidos provocar um aumento das desigualdades em saúde 12. Sem surpresa, o fator mais importante por trás das necessidades não satisfeitas na União Europeia corresponde à falta de acessibilidade econômica 13,14 e, por esse motivo, as necessidades não satisfeitas se mostram muito sensíveis a cenários de recessão econômica. De 2005 até 2008, as necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas na Europa decresceram à volta de 2%. Contudo, tal tendência se inverteu a partir de 2009, afetando sobretudo indivíduos com baixos rendimentos 15. Em 2013, 2,4% da população da União Europeia experienciaram necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas devido ao custo financeiro 13. No rescaldo da crise, em 2014, o estresse financeiro constituía um forte fator preditor de necessidades não satisfeitas na Europa 16. Em Portugal, entre 2008 e 2014, triplicou a proporção dos indivíduos mais pobres (primeiro quintil de rendimento) que reportaram necessidades de atenção médica não satisfeitas por razões financeiras 12 e o risco de declarar necessidades não satisfeitas mais do que duplicou em 2012, comparado com 2010 17. A evidência aponta também para um aumento das barreiras no acesso a cuidados de saúde pelos idosos, na sequência dos condicionalismos associados à intervenção da troika em Portugal 18. Mas o acesso é um conceito multidimensional, sendo influenciado por diversas variáveis quer do lado da oferta, quer do lado da procura. O modelo teórico de Andersen 19 sobre a utilização de cuidados de saúde ajuda a compreender a complexidade do conceito. De acordo com esse modelo, a utilização depende da necessidade, porém é também condicionada por fatores predisponentes e fatores de capacitação. A necessidade surge geralmente associada ao estado de saúde, enquanto os fatores predisponentes incluem variáveis que influenciam a propensão dos indivíduos para procurarem cuidados, sejam sociodemográficas ou as crenças e atitudes em relação à saúde/doença. Os fatores de capacitação, por seu turno, incluem recursos pessoais, familiares ou comunitários, os quais podem facilitar ou dificultar a utilização de cuidados de saúde.

De acordo com uma visão mais ampla, a utilização de cuidados pode ser conceituada como acesso realizado 20. O acesso, por seu turno, está associado a cinco dimensões da oferta e procura - proximidade; aceitabilidade; disponibilidade; acessibilidade econômica; e adequação - as quais interagem com cinco capacidades das pessoas - capacidade de entender; capacidade de procurar; capacidade de alcançar; capacidade de pagar; e capacidade de se envolver. Assim, diversas são as razões que podem estar na origem de necessidades não satisfeitas como sejam problemas de indisponibilidade, de tempo de espera elevado ou de custos incomportáveis. Contudo, independentemente desses fatores, os indivíduos podem não reconhecer que as suas necessidades são passíveis de resolução pelos serviços de saúde ou, reconhecendo-o, podem sentir relutância em procurar assistência 10.

A identificação dos determinantes das necessidades de cuidados não satisfeitas, para além do rendimento, é necessária especialmente em contextos de crise econômica e contração da despesa pública. Nessas situações, torna-se particularmente pertinente identificar mecanismos que não pesem demasiado sobre os orçamentos do Estado ou das famílias e que possam ser usados para mitigar as barreiras no acesso aos cuidados de saúde. O Inquérito Nacional de Saúde português (INS), de 2014, contém informação sobre necessidades não satisfeitas por razões financeiras. Recorrendo aos dados, o principal objetivo do presente estudo é analisar os determinantes das necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas, com enfoque nas variáveis para além do rendimento. Tendo a população portuguesa vivido uma situação econômica e financeira muito difícil, os nossos resultados podem ser úteis também para outros países se e quando estiverem em condições similares.

Breve perspectiva do sistema de saúde português

O sistema de saúde português assenta num modelo em que, quer o financiamento, quer a prestação de cuidados têm componentes públicas e componentes privadas. No entanto, nesses dois domínios, o componente público é mais relevante que o privado. A base fundamental do sistema de saúde português é o Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado em 1979. Ele é financiado majoritariamente por impostos e abrange todos os residentes, tendo cobertura universal e tendencialmente gratuita. Paralelamente, existem os denominados subsistemas de saúde, que são esquemas de seguros de saúde de base ocupacional (como, por exemplo, a ADSE para os funcionários públicos) e os seguros privados. Estima-se que cerca de 25% da população esteja coberta por um ou mais esquemas de seguros de saúde, para além da cobertura do SNS 21.

Em teoria, nenhum serviço/tipo de cuidado de saúde está excluído do SNS; porém, existem áreas com maior limitação na oferta. O SNS providencia essencialmente cuidados de saúde primários e cuidados hospitalares e especializados. Os cuidados dentários, exames de diagnóstico e tratamentos de fisioterapia são comumente prestados no setor privado, ainda que com um financiamento público considerável 21.

O setor privado continua assim com uma forte presença no sistema de saúde português, em parte, devido às insuficiências do SNS (gerando nomeadamente listas de espera para consultas de especialidade e cirurgias), mas também por conta da tradição anterior ao SNS do acesso direto aos consultórios privados 22. Apesar do financiamento público de muitos serviços prestados no setor privado, o peso dos pagamentos diretos em Portugal atinge um valor elevado. No ano a que reportam os dados usados neste estudo, 2014, o peso dos pagamentos diretos no total da despesa em saúde ascendia a 28%, muito acima da média da União Europeia (15%) 12. Um componente relevante da despesa privada corresponde aos medicamentos. Em 2014, o peso da despesa pública em medicamentos no total da despesa em medicamentos correspondia a 55% em Portugal, em comparação com 64% na União Europeia 12.

Na sequência da assistência financeira internacional a Portugal, foram implementadas diversas medidas no setor da saúde com vista à contenção de custos e ao aumento da eficiência 21,23,24. Simultaneamente, foram adotadas algumas medidas compensatórias como, por exemplo, a par do aumento das taxas moderadoras - copagamentos de reduzido valor - no setor público, houve um aumento do número de usuários isentos; a par de regras mais restritivas na coparticipação da despesa com medicamentos, houve uma redução de preços decorrente do maior uso de genéricos, do estabelecimento de normas clínicas e da redefinição dos preços de referência. Não obstante, a evidência sugere a deterioração no acesso aos cuidados de saúde.

Métodos

Fonte dos dados

Os dados usados foram recolhidos no âmbito do 5º INS, aplicado em Portugal pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2014. Esse inquérito tem como objetivo recolher informação que permita caracterizar a população portuguesa relativamente a: (i) estado de saúde e doença; (ii) cuidados de saúde; e (iii) determinantes de saúde, relacionadas com estilos de vida.

Trata-se de um inquérito de base amostral que usa fontes diretas de dados. A população-alvo é constituída pelos indivíduos com idade igual ou superior a 15 anos que, no período de referência, residiam em Portugal. A base de amostragem são alojamentos em território nacional, e as unidades estatísticas de observação são os agregados domésticos privados e indivíduos, existindo 18.204 observações. A coleta dos dados ocorreu no período entre 10 de setembro e 15 de dezembro de 2014. Todos os procedimentos para a construção do inquérito, seleção da amostra, metodologia de entrevista, armazenamento de dados e verificação de coerência foram realizados pelo INE, segundo os padrões metodológicos mais avançados, pelo que a validade e representatividade dos dados estão asseguradas 25.

Para construir os indicadores de necessidades não satisfeitas (NNS) são utilizadas três questões, cada uma relativa a uma diferente classe de cuidados de saúde. O horizonte temporal da questão são os últimos 12 meses:

(i) Consultas e tratamentos: Alguma vez precisou de uma consulta médica ou de fazer exames ou tratamentos médicos, mas não satisfez essa necessidade por dificuldades financeiras?

(ii) Cuidados de saúde dentários: Alguma vez precisou de uma consulta dentária ou de fazer exames ou tratamentos dentários, mas não satisfez essa necessidade por dificuldades financeiras?

(iii) Medicamentos: Alguma vez precisou de comprar medicamentos prescritos, mas não satisfez essa necessidade por dificuldades financeiras?

No inquérito, as três perguntas têm subjacente o fato de que as NNS reportadas são consequência de aspetos financeiros. As opções de resposta são: (a) precisou e não satisfez essa necessidade; (b) precisou e satisfez essa necessidade; e (c) não houve necessidade. Tendo em conta que os indivíduos que não manifestaram necessidade de cuidados de saúde não tiveram de efetuar qualquer tentativa de acessar aos serviços de saúde, então a variável NNS é, para eles, não observada. Assim, o indicador de necessidades não satisfeitas, NNS n , considera os indivíduos que escolheram a opção (a) face ao total dos indivíduos com necessidade, (a) + (b). Esse é um progresso em termos de medição do conceito NNS, apenas possível com a mais recente versão do INS, uma vez que ele permite avaliar a prevalência de necessidades não satisfeitas, mas apenas referente à população que revelou ter tido de fato algum tipo de necessidade de cuidado médico.

De forma objetiva, o indicador de NNS n e de NCS (necessidade de cuidados de saúde) é obtido da seguinte forma:

NNSn=#relatos NNS#relatos necessidade

NCS=#relatos necessidade#total indivíduos

Estratégia econométrica

A variável NCS é observada para todos os indivíduos na amostra. Entretanto, a variável que se pretende explicar, NNS n , é apenas observada dentro do subgrupo de indivíduos que apresentaram algum tipo de necessidade de cuidados de saúde. Assim sendo, a variável NNS n é observada em uma subamostra da amostra completa, podendo potencialmente ser afetada pelo viés de autosseleção, e logo não representativa da população-alvo. O fato é que podem existir fatores não observados que levam a que alguns indivíduos tenham uma maior probabilidade de declarar necessidades de cuidados médicos e a existência de NNS n , para além do que seria esperado por regressores observados. Processos de geração de dados como o acima descrito, com características de seleção amostral, devem ser analisados por meio de técnicas que tenham em conta esse fato, uma vez que nesse caso os estimadores obtidos por técnicas de estimação convencionais são inconsistentes 26.

Assim, adotou-se um modelo de seleção bivariado 26, ou modelo Tobit Tipo 2, na terminologia de Amemiya 27. Ele é constituído por duas equações relacionadas: (1) equação de outcome, que diz respeito à variável dependente que mede o fenômeno em estudo - NNS n ; (2) equação de seleção, que define se o indivíduo teve necessidade de cuidados de saúde durante o período analisado. Em notação matemática formal, ele pode ser descrito como:

NNSni*=xiβ+εli (1)

NCSni*=wiδ+ε2i (2)

As equações (1) e (2) representam, respetivamente, as equações de outcome e de seleção; x i e w i são os vetores de variáveis explicativas, δ e β representam os vetores de parâmetros estimados e ε 1i e ε 2i são os termos de erro. Os termos de erro seguem uma distribuição normal bivariada com média nula, variância unitária e coeficiente de correlação ρ.

O interesse do estudo reside na estimação de β, que resultará em estimadores inconsistentes quando as técnicas de estimação habituais são utilizadas e os termos de erro das duas equações estão correlacionados. De fato, a seleção amostral implica a ausência de correlação nula entre os termos de erro, ε 1i e ε 2i : ρ≠0.

A equação de seleção deve conter pelo menos uma variável que não esteja presente na equação de outcome, para evitar problemas de identificação do modelo 26. Portanto, incluiu-se um conjunto de variáveis de estado de saúde individual que influenciam a existência de necessidade de cuidados de saúde, mas não de NNS.

Após a estimação dos coeficientes do modelo, e para tornar a interpretação dos resultados mais intuitiva, calcularam-se os efeitos marginais das variáveis explicativas sobre a probabilidade de observar NNS na população com necessidade de cuidados de saúde, P (NNS=1|NCS=1). As estimações do modelo são feitas pelo método da máxima verosimilhança. Todo o trabalho estatístico foi efetuado usando o software Stata, versão 15.0 (https://www.stata.com).

Variáveis usadas

A Tabela 1 apresenta a lista de variáveis utilizadas em todos os modelos.

A prevalência das necessidades não satisfeitas, no conjunto de indivíduos com necessidade, é mais elevada no caso de cuidados dentários, 36,5%, seguida das consultas e tratamentos com 14,7% e, por fim, 11,1% no caso dos medicamentos. Esse padrão é verificado em todos os quintis de rendimento. Na saúde oral, as NNS n variam entre 11,4% (mais ricos) e 58,8% (mais pobres); nas consultas e tratamentos variam entre 5,5% e 24,3%; e nos medicamentos, entre 3% e 20,5%.

Tabela 1 Definição das variáveis e estatísticas descritivas. 

Variáveis Descrição Média DP
Dependentes
NNSA = 1 caso o indivíduo reporte necessidades em saúde não satisfeitas (Consultas) 0,15 * 0,35
NNSB = 1 caso o indivíduo reporte necessidades em saúde não satisfeitas (Cuidados dentários) 0,37 * 0,48
NNSC = 1 caso o indivíduo reporte necessidades em saúde não satisfeitas (Medicamentos) 0,11 * 0,31
Explicativas
Predisponentes
Idoso = 1 se o indivíduo tem 65 ou mais anos 0,31 0,46
Mulher = 1 se o indivíduo é do gênero feminino 0,56 0,50
Bas12 = 1 se o indivíduo tem como nível de habilitações completado o 1º e 2º ciclo do Ensino Básico 0,40 0,49
Bas3 = 1 se o indivíduo tem como nível de habilitações completado o 3º ciclo do Ensino Básico 0,17 0,38
Sec = 1 se o indivíduo tem como nível de habilitações completado o Ensino Secundário e Pós-secundário 0,16 0,37
Sup = 1 se o indivíduo tem como nível de habilitações completado o Ensino Superior 0,15 0,35
Noeduc = 1 se o indivíduo não frequentou o ensino (categoria omitida) 0,13 0,34
Casado = 1 se o indivíduo é casado ou vive em união de fato 0,58 0,49
Divorciado = 1 se o indivíduo é divorciado e não vive em união de fato 0,08 0,27
Viúvo = 1 se o indivíduo é viúvo e não vive em união de fato 0,14 0,35
Solteiro = 1 se o indivíduo é solteiro e não vive em união de fato (categoria omitida) 0,20 0,40
Nat_PT_Res_PT = 1 se o indivíduo tem nacionalidade portuguesa e residiu sempre em Portugal (ou reside em Portugal há pelo menos 10 anos) (categoria omitida) 0,91 0,29
Nat_PT_Res_PT_inf10 = 1 se o indivíduo tem nacionalidade portuguesa e reside em Portugal há menos de 10 anos 0,02 0,14
Nat_Estr_Res_PT = 1 se o indivíduo não tem nacionalidade portuguesa e reside em Portugal há pelo menos 10 anos 0,06 0,24
Nat_Estr_Res_PT_inf10 = 1 se o indivíduo não tem nacionalidade portuguesa e reside em Portugal há menos de 10 anos 0,01 0,10
Capacitação
Trabalhador = 1 se o indivíduo trabalha 0,43 0,50
Desempregado = 1 se o indivíduo está desempregado 0,11 0,32
Inativo = 1 se o indivíduo está numa situação de inatividade (categoria omitida) 0,46 0,50
Q1 = 1 se o indivíduo está no 1º quintil do rendimento (categoria omitida) 0,22 0,42
Q2 = 1 se o indivíduo está no 2º quintil do rendimento 0,206 0,405
Q3 = 1 se o indivíduo está no 3º quintil do rendimento 0,20 0,40
Q4 = 1 se o indivíduo está no 4º quintil do rendimento 0,19 0,39
Q5 = 1 se o indivíduo está no 5º quintil do rendimento 0,19 0,39
Urbana = 1 se a área de residência é densamente povoada (categoria omitida) 0,30 0,46
Área mista = 1 se a área de residência é medianamente povoada 0,33 0,47
Rural = 1 se a área de residência é pouco povoada 0,37 0,48
Norte = 1 se o indivíduo reside na região Norte (categoria omitida) 0,15 0,36
Algarve = 1 se o indivíduo reside na região do Algarve 0,14 0,35
Centro = 1 se o indivíduo reside na região do Centro 0,20 0,40
AML = 1 se o indivíduo reside na região da Área Metropolitana de Lisboa 0,11 0,31
Alentejo = 1 se o indivíduo reside na região do Alentejo 0,15 0,36
Açores = 1 se o indivíduo reside na região dos Açores 0,11 0,32
Madeira = 1 se o indivíduo reside na região da Madeira 0,13 0,34
Sem_círculo_amigos = 1 se o indivíduo não tem pessoas próximas a quem recorrer em caso de problema pessoal grave 0,03 0,17
Não_confia_outros Média das respostas às questões sobre (i) grau de perceção da preocupação dos outros em relação ao indivíduo (de 1 - muita preocupação e interesse - a 5 - nenhuma preocupação e interesse); (ii) grau de perceção da obtenção de ajuda de vizinhos em caso de necessidade (de 1 - muito fácil - a 5 - muito difícil) 2,12 0,73
Cuidador = 1 se o indivíduo presta cuidados ou assistência informal pelo menos uma vez por semana 0,12 0,33
sns_apenas ** = 1 se o indivíduo não tem subsistema de saúde nem seguro de saúde 0,69 0,46
Necessidade
Num_cond_cron *** Número de problemas de saúde sofridos pelo indivíduo nos últimos 12 meses, de entre os seguintes: asma, bronquite crônica, infarto do miocárdio, doença coronária, hipertensão arterial, acidente vascular cerebral, artrose, dores nas costas, dores cervicais, diabetes, alergia, cirrose hepática, incontinência urinária, problemas renais, depressão 2,03 2,23
Depressão *** = 1 se o indivíduo sofreu de depressão nos últimos 12 meses 0,13 0,34
ESA_bom_mbom *** = 1 se o indivíduo autoaprecia o seu estado de saúde como bom ou muito bom 0,44 0,50
ESA_razoável *** = 1 se o indivíduo autoaprecia o seu estado de saúde como razoável 0,39 0,49
ESA_mau_mmau = 1 se o indivíduo autoaprecia o seu estado de saúde como mau ou muito mau (categoria omitida) 0,17 0,37
Problema_prolongado *** = 1 se o indivíduo indica ter um problema de saúde prolongado 0,61 0,49

DP: desvio padrão.

* Valores amostrais estimados na subpopulação dos indivíduos que referiram ter tido necessidade de cuidados de saúde (NCS = 1);

** Variável incluída apenas na equação de outcome;

*** Variáveis incluídas apenas na equação de seleção.

Conforme evidência prévia (já mencionada na Introdução), as variáveis descritas na Tabela 1 estão associadas à ocorrência de necessidades não satisfeitas, encontrando-se agrupadas segundo a classificação do modelo de Andersen 19. Contudo, as fronteiras entre essas categorias são algo permeáveis, existindo variáveis que se ligam com mais de um aspeto. Por exemplo, a educação e o estatuto de imigrante tanto podem afetar as atitudes face à doença/saúde quanto a capacidade de navegar os serviços de saúde existentes. Por outro lado, a idade é usada frequentemente como proxy de necessidade de cuidados de saúde.

Resultados

As Tabelas 2, 3 e 4 apresentam os resultados do modelo de seleção bivariado, para cada grupo de variáveis anteriormente apresentado.

Tabela 2 Efeitos marginais médios das variáveis predisponentes sobre a probabilidade de observar necessidades não satisfeitas (NNS) na população com necessidade de cuidados [P (NNS=1|NCS=1, X)], para os cuidados de saúde A, B e C. 

Variáveis predisponentes [P (NNS=1|NCS=1, X)] A [P (NNS=1|NCS=1, X)] B [P (NNS=1|NCS=1, X)] C
Idoso -0,0469 * -0,0452 * -0,0452 *
Mulher 0,0297 * 0,0401 * 0,0258 *
Bas12 # -0,0199 -0,0416 ** -0,0350 *
Bas3 # -0,0376 *** -0,1281 * -0,0610 *
Sec # -0,0099 -0,1560 * -0,0641 *
Sup # -0,0163 -0,1836 * -0,0883 *
Casado ## 0,010 0,0470 * -0,0023
Divorciado ## 0,041 * 0,1281 * 0,0335 ***
Viúvo ## 0,0177 0,0388 -0,0152
Nat_PT_Res_PT_inf10 ### -0,009 -0,0180 0,0202
Nat_Estr_Res_PT ### 0,0394 *** 0,0039 0,0126
Nat_Estr_Res_PT_inf10 ### 0,0279 0,0118 0,0657

Valores de p: * p < 0,01; ** p < 0,1; *** p < 0,05.

Categorias omitidas: # Noeduc; ## Solteiro; ### Nat_PT_Res_PT.

Nota: Os efeitos marginais médios são calculados após a estimação dos modelos para 17.698 observações. Os efeitos marginais médios das variáveis explicativas sobre a probabilidade de existir necessidade de cuidados de saúde, P(NCS=1|X), podem ser obtidos mediante solicitação ao autor correspondente.

Tabela 3 Efeitos marginais médios das variáveis de capacitação sobre a probabilidade de observar necessidades não satisfeitas (NNS) na população com necessidade de cuidados [P (NNS=1|NCS=1, X)], para os cuidados de saúde A, B e C. 

Variáveis de capacitação [P (NNS=1|NCS=1, X)] A [P (NNS=1|NCS=1, X)] B [P (NNS=1|NCS=1, X)] C
Trabalhador # 0,0307 * 0,0556 * 0,0124
Desempregado # 0,0612 * 0,1547 * 0,0444 *
Q2 ## -0,0389 * -0,0583 * -0,0428 *
Q3 ## -0,0637 * -0,1034 * -0,0607 *
Q4 ## -0,0934 * -0,1730 * -0,0841 *
Q5 ## -0,1341 * -0,2652 * -0,1037 *
Área mista ### -0,0062 -0,0178 -0,0178 **
Rural ### -0,0324 * -0,0251 -0,0447 *
Algarve #### 0,0434 * 0,1119 * 0,0168 **
Centro #### 0,0303 * 0,0173 0,0280 *
Área Metropolitana de Lisboa #### 0,0206 ** 0,0442 * 0,0082
Alentejo #### 0,0501 * 0,0843 * 0,0313 *
Açores #### 0,0979 * 0,0125 0,0290 ***
Madeira #### 0,0553 * 0,0709 * 0,0289 *
Sem_círculo_amigos 0,0637 * 0,1150 * 0,0632 *
Não_confia_outros 0,0290 * 0,0605 * 0,0129 *
Cuidador 0,0193 ** 0,0235 -0,0101
sns_apenas 0,0134 0,1018 * 0,0002

Valores de p: * p < 0,01; ** p < 0,1; *** p < 0,05.

Categorias omitidas: # Inativo; ## Q1; ### Urbano; #### Norte.

Nota: Os efeitos marginais médios são calculados após a estimação dos modelos para 17.698 observações. Os efeitos marginais médios das variáveis explicativas sobre a probabilidade de existir necessidade de cuidados de saúde, P(NCS=1|X), podem ser obtidos mediante solicitação ao autor correspondente.

Tabela 4 Efeitos marginais médios das variáveis de necessidade sobre a probabilidade de observar necessidades não satisfeitas (NNS) na população com necessidade de cuidados [P (NNS=1|NCS=1, X)], para os cuidados de saúde A, B e C. 

Variáveis de necessidade [P (NNS=1|NCS=1, X)] A [P (NNS=1|NCS=1, X)] B [P (NNS=1|NCS=1, X)] C
Num_cond_cron 0,0065 * 0,0089 * 0,0061 *
Depressão 0,0223 * 0,0283 ** 0,0132 *
ESA_bom_mbom # -0,0544 * -0,0524 * -0,0340 *
ESA_razoável # -0,0278 * -0,0181 *** -0,0146 *
Problema_prolongado 0,0338 * 0,0131 0,0276 *

Valores de p: * p < 0,01; ** p < 0,05; *** p < 0,1.

Categorias omitidas: # ESA_mau_mmau.

Nota: Os efeitos marginais médios são calculados após a estimação dos modelos para 17.698 observações. Os efeitos marginais médios das variáveis explicativas sobre a probabilidade de existir necessidade de cuidados de saúde, P(NCS=1|X), podem ser obtidos mediante solicitação ao autor correspondente.

Sendo as necessidades não satisfeitas resultantes de dificuldades financeiras, começa-se por salientar os resultados relativos aos quintis de rendimento. Quanto mais elevado é o quintil de rendimento, menores são as necessidades de saúde não satisfeitas, sendo as diferenças relativas ao quintil de menor rendimento particularmente visíveis na saúde oral.

As diferenças regionais encontradas, tomando como região de comparação a região Norte, evidenciam maiores níveis de necessidades não satisfeitas em todos os aspetos considerados para os residentes nas regiões do Alentejo, Algarve e Madeira, em especial nos cuidados de saúde oral. No entanto, também os residentes nos Açores, no Centro e na Área Metropolitana de Lisboa apresentam necessidades não satisfeitas de cuidados médicos mais elevadas do que os residentes na região Norte. Já na saúde oral, apenas nas regiões Centro e Açores não são estatisticamente significativas as diferenças em relação à região Norte, o mesmo acontecendo com os residentes na Área Metropolitana de Lisboa com a compra de medicamentos prescritos. No entanto, independentemente da região onde reside, quem vive nas áreas menos povoadas apresenta menores níveis de necessidades não satisfeitas relativamente à compra de medicamentos prescritos, sendo a diferença relativa a quem vive nas áreas densamente povoadas mais expressiva para quem vive nas áreas rurais. Nas áreas rurais, são também menores as necessidades não satisfeitas de cuidados médicos.

Relativamente à situação face ao emprego, os desempregados apresentam mais necessidades de saúde não satisfeitas do que os inativos, sobretudo nos cuidados de saúde oral. Os indivíduos empregados apresentam maiores necessidades não satisfeitas de cuidados médicos e de saúde oral.

Os efeitos marginais associados à inexistência de relações sociais apresentam ambos um sinal positivo. Não ter pessoas próximas a quem recorrer em caso de problema pessoal grave aumenta as necessidades de saúde não satisfeitas. Também a perceção quanto à falta de preocupação dos outros ou à falta de ajuda de vizinhos em caso de necessidade mostra que as pessoas com menos confiança nos outros reportam mais necessidades de saúde não satisfeitas.

As pessoas que apenas são beneficiárias do SNS apresentam maiores necessidades não satisfeitas de saúde oral. As pessoas na condição de cuidador informal apresentam também maiores necessidades não satisfeitas de cuidados médicos.

Quanto aos fatores predisponentes, os idosos apresentam menos necessidades não satisfeitas nos três aspectos considerados. As mulheres apresentam mais necessidades de saúde não satisfeitas, sendo a diferença relativamente aos homens mais expressiva nos cuidados de saúde oral. As pessoas com níveis mais elevados de habilitações escolares apresentam menos necessidades de saúde não satisfeitas, e as diferenças em relação a quem não tem qualquer habilitação escolar são estatisticamente significativas nos cuidados de saúde oral e na compra de medicamentos, com a diferença a aumentar para maiores níveis de escolaridade. Quanto ao estado civil, as pessoas divorciadas apresentam mais necessidades não satisfeitas relativamente às pessoas solteiras, sendo tal diferença mais expressiva nos cuidados de saúde oral. Também as pessoas casadas apresentam mais necessidades não satisfeitas de cuidados de saúde oral.

A distinção, tendo por base a nacionalidade e/ou a residência em Portugal, não evidencia diferenças estatisticamente significativas, à exceção do grupo de pessoas com nacionalidade estrangeira que residem em Portugal há pelo menos 10 anos, que apresenta mais necessidades de cuidados médicos relativamente às pessoas com nacionalidade portuguesa que sempre residiram em Portugal.

Quanto ao conjunto de variáveis associadas à necessidade de cuidados, que identificam o estado de saúde e os problemas de saúde dos inquiridos, a autoavaliação positiva do estado de saúde está associada a menores níveis de necessidades não satisfeitas, sendo a diferença relativamente aos que identificam o seu estado de saúde como mau ou muito mau tanto maior quanto melhor é essa avaliação. Pelo contrário, a existência de um problema de saúde prolongado, aumenta o nível de necessidades de saúde não satisfeitas (com exceção da saúde oral). O número de doenças crônicas e a depressão estão associados a mais necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas.

Discussão

Com este estudo, pretendeu-se aferir os determinantes das necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas em Portugal no rescaldo da crise econômico-financeira que afetou o país a partir de 2008. Em tese, as crises econômicas podem afetar a utilização de cuidados de modos distintos. Por um lado, restrições financeiras mais severas podem dificultar a utilização enquanto a maior disponibilidade de tempo e deterioração da saúde pode levar a mais utilização. Espera-se, porém, que, no último caso, tal afete particularmente hospitalizações e cuidados agudos, não sendo, contudo, aspectos abordados neste estudo. Os cuidados de rotina serão mais afetados pelas razões financeiras e de tempo 28.

Constata-se que a maior prevalência de NNS n surge nos cuidados dentários, provavelmente porque nas doenças orais os episódios de urgência são raros, podendo os indivíduos decidir sobre o momento do tratamento 29. No quintil de rendimento mais baixo, a prevalência de NNS n atinge quase 60% dos indivíduos. Por outro lado, é em termos da compra de medicamentos prescritos que os indivíduos parecem abdicar menos dos cuidados necessários. Mas entre os mais pobres, a menor porcentagem ainda assim significa que 20,5% dos indivíduos não aviaram as suas receitas, e nessa situação trata-se de necessidades clinicamente validadas (prescrições médicas) 9, indo além da sua avaliação subjetiva. Esse comportamento, de menor NNS n , foi encontrado em outro estudo para Portugal 30, em que a porcentagem de doentes que reportaram necessidades não satisfeitas no caso de prescrições de medicamentos foi consideravelmente mais baixa comparada com cuidados médicos em geral.

Em relação aos determinantes das NNSn, verifica-se que as variáveis predisponentes associadas ao sexo e idade são significativas e o seu impacto está de acordo com a evidência prévia (as mulheres apresentam maior risco de necessidades não satisfeitas, enquanto indivíduos mais velhos apresentam menor risco) 16,31,32,33,34. No caso da educação, o seu impacto no geral não é significativo nas consultas e tratamentos médicos (em estudo anteriores 16,31,32,33,34, a educação apresentou efeitos mistos, sendo aí mencionado que essa variável pode estar capturando o impacto das expectativas dos indivíduos, preferências e custos de oportunidade), entretanto é significativo nos outros dois tipos de necessidades e particularmente marcante nos cuidados dentários. É provável que, sendo tais cuidados mais de carácter preventivo, quem tem maior nível de educação atribui maior valor à sua utilização. Mas, mesmo no caso de medicamentos prescritos, ter o ensino superior reduz o risco de NNS n em quase 9% se comparado com quem não completou qualquer nível de ensino. Existindo evidência em Portugal de uma associação positiva entre educação e literacia em saúde 35, este resultado é preocupante porque indivíduos com baixa escolaridade poderão nem sempre tomar a melhor decisão na priorização das receitas a aviar nomeadamente pois as doenças sintomáticas, sendo as mais visíveis para o doente, não são necessariamente as mais graves.

No que concerne às variáveis de capacitação, o efeito do rendimento é significativo e no sentido esperado. A magnitude dos efeitos, sendo mais acentuada de novo nos cuidados dentários, é relativamente elevada também nos outros cuidados, quando comparamos o efeito do rendimento com o de outros determinantes. No caso dos medicamentos, ainda que os indivíduos aviem as receitas, poderá existir uma não satisfação de necessidades camuflada. Num estudo realizado em Portugal, em 2012, incluindo 1.171 pessoas com 65 ou mais anos a tomar pelo menos um medicamento de forma continuada, 15,8% dos inquiridos referiram ter começado a espaçar o uso de medicamentos para poupar, o que evidencia situações de não adesão à terapêutica motivadas por fatores econômicos 36. Em termos de cobertura por um ou mais seguros de saúde além do SNS, o efeito se revela estatisticamente significativo apenas nos cuidados dentários. Tal resultado é compreensível dada a insuficiência (mencionada na Introdução) da prestação de cuidados dentários pelos serviços públicos de saúde. Todavia, é um resultado positivo o fato de nos outros tipos de cuidados não se verificar um impacto estatisticamente significativo, incluindo nos tratamentos, que em muitos casos exigem o recurso ao setor privado. O financiamento público parece cumprir o seu papel de garantia de acesso a esses cuidados, embora aqui também se ignore o ônus financeiro dos copagamentos suportados pelos usuários.

Os resultados deste estudo estão no geral em concordância com os de um estudo anterior para Portugal, com uma amostra de 521 usuários dos cuidados primários, com comorbidades 30, obtendo probabilidades de reportar necessidades não satisfeitas mais elevadas em indivíduos do sexo feminino, mais novos, com baixos rendimentos e educação.

Estudos para dois países, Grécia e Irlanda, também atingidos pela crise econômica e simultaneamente sujeitos aos condicionalismos decorrentes da ajuda financeira internacional, tal como Portugal, obtiveram resultados similares para o rendimento e seguros de saúde 37,38. Num estudo sobre a Itália, o rendimento revelou-se como o fator com mais impacto sobre necessidades não satisfeitas por falta de acessibilidade (os 20% mais ricos apresentaram risco cinco vezes menor do que os 20% mais pobres) 39.

Um resultado interessante diz respeito à participação em grupos informais e próximos. O impacto desta variável, em magnitude, chega a ser igual ou superior ao efeito de pertencer ao terceiro quintil de rendimento. Esse resultado vai ao encontro da evidência anterior, ou seja, indivíduos com mais confiança nos seus médicos apresentam menor risco de necessidades não satisfeitas 40, existindo ainda evidência de uma associação negativa entre maior confiança nas outras pessoas e necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas 34. A participação em grupos sociais, formais ou informais, pode também afetar o acesso a cuidados de saúde 41,42.

Num contexto de restrições financeiras mais rigorosas, estes mecanismos poderão servir de amortecedores dos efeitos da crise econômica sobre o acesso aos cuidados de saúde. Não é clara qual a intervenção possível das autoridades para fomentar essas relações, mas os serviços de saúde mais próximos dos cidadãos, por intermédio dos enfermeiros e médicos de família, devem estar atentos a situações de isolamento social em que o risco de NNS n vem acrescido. A falta de confiança nos outros também afeta o acesso aos cuidados de saúde. Consequentemente, parece que nem tudo se resume aos recursos financeiros. Mas se torna necessário cultivar e fomentar, numa perspectiva de médio e longo prazo, uma cultura de confiança e participação social, já que elas podem contribuir para a diminuição dos estigmas associados às questões de saúde e gerar uma maior compreensão de como utilizar as ligações da comunidade para responder a vários problemas de uma forma mais abrangente e integrada 43.

Em linha com a evidência prévia, residir em zona rural diminui o risco de NNS n relativamente a zonas urbanas (efeito estatisticamente não significativo nos cuidados dentários). Esse é um resultado que corrobora outros estudos, no entanto, em face da localização geográfica dos serviços de saúde em Portugal, com concentração no litoral centro e norte, é um pouco contraintuitivo. Provavelmente, a grande concentração da população nessas zonas explica o efeito obtido. Existe ainda a possibilidade das expectativas dos residentes em áreas rurais se adaptarem àquilo que é a oferta de serviços existente nas suas áreas.

As variáveis de necessidade são praticamente todas significativas e no sentido esperado (mais saúde e mais doença implicam menor e maior risco de NNS n , respetivamente). Contudo, é de notar que essas variáveis entram nesta análise mediante equação de seleção e não de outcome (conforme explicado na seção Métodos). Isso quer dizer que o que torna os indivíduos mais vulneráveis a necessidades não satisfeitas é a persistência das suas necessidades. Indivíduos com doença crônica, por exemplo, em princípio são seguidos mais regularmente pelos seus médicos e contatam mais frequentemente com os serviços de saúde, conhecendo melhor o seu funcionamento. Por essas razões, deveriam ter menos necessidades não satisfeitas. A questão é que, sentindo necessidade mais vezes, também aumenta a probabilidade de que em alguma dessas vezes a necessidade acabe por não ser satisfeita. Nesse sentido, e tendo em conta que o perfil do usuário dos serviços de saúde é cada vez mais portador de múltiplas doenças crônicas, os modelos de prestação de serviços centrados no hospital e nas doenças agudas devem evoluir para modelos centrados no cidadão, proporcionando uma maior integração de serviços e continuidade de cuidados 13.

Algumas limitações podem ser apontadas. Desde logo, os dados usados neste estudo dizem respeito à população geral, contudo existem estudos direcionados às necessidades não satisfeitas de grupos de doentes específicos 44,45. Portanto, os resultados deste estudo podem vir a ser complementados com abordagens mais seletivas que porventura produzirão recomendações de políticas mais concretas (embora com âmbito de aplicação também mais restrito).

Importa ainda realçar que menos NNS n pode acarretar um maior ônus financeiro sobre os indivíduos, em especial os de menores rendimentos 46.

Por outro lado, as NNS n , sendo autorreportadas, são influenciadas por fatores culturais e expectativas individuais 10. Essa é outra das limitações deste tipo de análise. Por mais que esses fatores devam ter um papel menor quando se trata de explicar diferenças entre grupos dentro de um único país 12, não se pode excluir totalmente essa hipótese.

Não obstante essas limitações, na sua maioria próprias deste tipo de abordagem, a análise das necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas tem sido, e deverá continuar a ser, utilizada como uma importante ferramenta de monitoramento do acesso aos cuidados de saúde. Nesse sentido, os resultados deste confirmam que o rendimento é um fator determinante para a existência de necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas. Todavia, o conhecimento de outros fatores associados à falta de acesso permite identificar os grupos socialmente mais vulneráveis e suscitar a organização de respostas sociais ajustadas. Tendo em conta os resultados que identificam o isolamento social como um fator de risco, soluções que promovam o reforço da interação social pelas redes de apoio formais ou informais poderão por si facilitar o acesso a cuidados de saúde, confirmando que nem tudo é dinheiro.

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