versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.4 Rio de Janeiro abr. 2020 Epub 06-Abr-2020
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020254.28942019
O acesso é um desafio ubíquo e deficiências na porta de entrada prejudicam a consecução dos demais atributos essenciais da Atenção Primária à Saúde (APS)1,2. A partir da década de 80, o Brasil passou por uma ampliação exponencial da APS3, que não foi espelhada na atenção ambulatorial, um vazio demográfico profissional onde apenas 4,8% dos médicos do país atuam4. Da mesma forma, a incorporação tecnológica atingida pela atenção hospitalar não foi estendida aos demais níveis. Com isso, temos um cenário de uma APS heterogênea, com dificuldades para impedir que condições de saúde sensíveis a sua atuação contribuam para a lotação tanto das listas de espera por atenção ambulatorial, como das unidades de pronto atendimento5-7. É inefetivo aumentar o acesso pela ampliação isolada da oferta (Lei de Roemer)8 sem passar pela qualificação da oferta e pela organização da demanda, ambas situações sensíveis a ações de Telessaúde9. Assim como no Sistema Único de Saúde (SUS) não existe universalidade e integralidade sem equidade (e não há equidade sem regulação do acesso à assistência), na APS o acesso e a integralidade são fortemente influenciados pela coordenação do cuidado1,10.
O Núcleo de Telessaúde do Rio Grande do Sul (TelessaúdeRS), que está oficialmente registrado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) do Brasil, faz parte do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e recebe apoio e recursos do Ministério da Saúde (MS) e da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS). Com um grupo, inicialmente sem grande domínio ou fluência tecnológica, mas com grande naturalidade para transitar pela Epidemiologia e pela APS, o TelessaúdeRS iniciou suas atividades em novembro de 2007. Partimos de uma visão de futuro de atendimento em saúde com mínimas barreiras e com os pés firmes em um pensamento científico e na aplicação do melhor conhecimento disponível. Como tínhamos à mão poucas ferramentas tecnológicas, iniciamos em 2007 as primeiras teleconsultorias utilizando apenas editores de texto e servidores de e-mail, em formato assíncrono9.
Uma década depois, apesar da telepresença tornar-se uma realidade no dia a dia do TelessaúdeRS (mais de 20 mil pessoas avaliadas por teleoftalmologia a partir de 2017), a tecnologia continua tendo um papel coadjuvante, pois um dos grandes diferenciais do núcleo é prover teleassistência baseada em evidências atuais e robustas para toda a APS brasileira. Em 2013, para tomar impulso para esse salto a frente, foi necessário dar um passo atrás e, contrapondo a corrente de incorporação de tecnologias cada vez mais complexas, adotar uma tecnologia do milênio passado: a telefonia convencional9. Por meio de uma linha telefônica gratuita 0800 644 6543 conseguimos atingir todos os estados brasileiros chegando a mais de 145 mil teleconsultorias telefônicas respondidas em aproximadamente seis anos, de forma síncrona e sem custo para os solicitantes. O TelessaúdeRS também provê cobertura em espirometria, dermatologia e estomatologia para todo o Estado (mais de 40 mil laudos) e ações de tele-educação para todo o país (mais de 40 mil profissionais certificados em cursos EAD, com cerca de três milhões de visualizações do conteúdo online e mais de 700 mil downloads dos 22 aplicativos produzidos)11.
A regulação de encaminhamentos da APS para a atenção especializada é um problema ao mesmo tempo local e mundial. Envelhecimento da população, avanços no conhecimento biomédico, aumento da prevalência das condições de saúde e critérios diagnósticos progressivamente mais estritos levaram a aumento das taxas de multimorbidade12. Dessa forma, é esperado que encaminhamentos para atenção especializada aumentem13,14. Nos Estados Unidos da América a taxa de que uma consulta ambulatorial leve a encaminhamento aumentou de 4,8% para 9,3% no período de 1999 a 200915. Encaminhamentos adequados aumentam a qualidade do cuidado, apesar disso, a alta variabilidade dos encaminhamentos e ausência de parâmetros claros e taxas aceitáveis de encaminhamentos sugerem que tanto uso excessivo e deficiente da atenção especializada ocorrem16-18. Além disso, a alta demanda por encaminhamentos aumenta a taxa de espera para consulta especializada19.
O desenvolvimento de mecanismos para coordenação do cuidado pela APS está associado com melhora dos desfechos na transição do cuidado para a atenção especializada20. Por meio do papel de coordenação e ordenação da rede consegue-se expansão dos cuidados clínicos e aumento da resolubilidade da APS, portanto diminuindo o risco de investigações e tratamentos excessivos21. Mais importante, isso pode aumentar o acesso dos pacientes ao médico generalista e estimular esse vínculo. Além disso, é possível otimizar o uso de recursos, evitar viagens desnecessárias e aumentar a eficiência e equidade na gestão das listas de espera, obtendo-se definições objetivas para encaminhamento de cada condição de saúde22,23.
Entretanto, para esse papel de coordenação e para um uso otimizado da APS, são necessárias informações mínimas sobre os pacientes para definição da indicação e da prioridade para o atendimento especializado16,24-27. Neste contexto, protocolos de encaminhamentos podem guiar os atendimentos da APS e auxiliam o papel de coordenação e ordenamento do cuidado.
Apesar disso, o simples desenvolvimento de protocolos de encaminhamentos não garante a qualidade da informação, uma vez que a adesão dos profissionais a esses protocolos costuma ser baixa28. Ações regulatórias devem ser implementadas para garantir que todo o potencial da APS seja utilizado antes do encaminhamento. Sistemas de saúde e redes de atendimento são bastante diversos em termos de tamanho, estrutura e financiamento. O Brasil tem dimensões continentais e o atendimento especializado é ofertado em uma ou poucas cidades maiores em cada estado. Isso leva a viagens frequentes e longas para consultas presenciais e comunicação difícil entre médicos realizando os atendimentos na atenção primária à saúde (sejam Médicos de Família e Comunidade ou não) e especialistas. Essa configuração cria uma oportunidade para integrar ações de telessaúde e regulação ao mesmo tempo que otimiza a resolubilidade da APS.
Já nos primórdios das teleconsultorias do TelessaúdeRS observamos que elas têm a capacidade de evitar aproximadamente 60% de encaminhamentos para atenção especializada. Com esse efeito a integração das ações de telessaúde com o processo de regulação de pedidos de encaminhamentos para atenção especializada parecia um passo natural9. Além da teleconsultoria, a telerregulação usa de forma aditiva outras ações de Telessaúde (telediagnóstico, tele-educação) e o TelessaúdeRS, por sua vez, usa a telessaúde não como um serviço de saúde, mas como um metasserviço, capaz de fortalecer linhas reguladas de união entre os pontos assistenciais29.
Considerando esse contexto, de impacto na coordenação do cuidado por meio da articulação de ações de telessaúde para a telerregulação da assistência, desenvolvemos uma metodologia de trabalho capaz de atingir dois objetivos simultâneos: (1) auxiliar os processos de regulação de consultas especializadas do interior para a capital do estado; (2) ampliar a eficácia e o acesso na APS através do uso de telerregulação. Apresentamos neste trabalho a metodologia desenvolvida no projeto RegulaSUS e os resultados alcançados pelo TelessaúdeRS - UFRGS.
O Estado do Rio Grande do Sul, localizado no extremo sul do Brasil, tem população estimada de 11,4 milhões de habitantes distribuída em 497 municípios e 281,7 mil km2. Tem por limites Santa Catarina, outro estado brasileiro, Argentina e Uruguai além do Oceano Atlântico. O último Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado é 0,746. Contava com 2.701 estabelecimentos de saúde da rede pública e 3.004 da rede privada no ano de 2009. A agropecuária e a indústria representam as principais economias.
O Projeto RegulaSUS e as ações de telerregulação tiveram origem em 2012 por meio de uma aproximação entre a academia e a gestão pública, ainda como um projeto piloto, culminando em 2014 com um convênio entre Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul e TelessaúdeRS.
Como passo inicial para atingir os objetivos foi necessário o desenvolvimento de protocolos de encaminhamento. O conjunto de informações clínicas necessárias para o encaminhamento deve ser sucinto, objetivo e limitado ao necessário para a tomada de decisão. Na busca de um método para desenvolvimento de protocolos de encaminhamento da APS para a atenção especializada, nós desenvolvemos um passo a passo para criação (ou adaptação) local de protocolos. Esse processo segue sete passos a seguir especificados:
Identificação de uma especialidade ou procedimento que tenha demanda reprimida (medida por tempos de espera prolongados) e que os motivos de encaminhamento possam ser manejados na APS. Como piloto para desenvolver essa estratégia optamos por abordar a fila de endocrinologia, que apresentava uma fila de espera de mais de oito mil pessoas e tempos de espera maiores de um ano;
Avaliar a demanda dentro da fila de espera escolhida. Nós selecionamos uma amostra de 5% da fila, estratificada por mês, para superar eventuais fenômenos sazonais. Depois avaliamos as informações subjetivas de cada referenciamento. Apesar da disponibilidade do Código Internacional de Doenças, ele não foi utilizado por não ser confiável;
Selecionar as condições de encaminhamento mais frequentes para aquela especialidade/procedimento. Essas condições devem cobrir 80-85% de todos os encaminhamentos;
Revisar os protocolos clínicos e evidências científicas disponíveis sobre o manejo clínico das condições selecionadas. As referências incluem livros texto de APS, diretrizes e ferramentas de suporte à decisão médica. Tomamos especial atenção para esgotar as referências de APS e atentamos para as contribuições da atenção especializada no manejo das condições/doenças selecionadas;
Definir para cada protocolo as situações que devem e não devem ser encaminhadas para avaliação especializada, criando assim os gatilhos para encaminhamento da APS para a atenção especializada. No nosso método, cada protocolo foi construído por um Médico de Família e Comunidade e revisado por outros dois generalistas (Médicos de Família e Comunidade ou Internistas). Por fim, os protocolos foram discutidos com especialistas vinculados a um hospital universitário;
Determinar quais situações apresentam maior risco e, portanto, devem ter acesso facilitado, considerando o melhor interesse do paciente. Em situações de tempos de espera prolongados, essas condições devem ter baixa prevalência (não devem representar mais que 10% da demanda para especialidade). Na nossa amostra inicial, Diabetes Mellitus tipo 1, hipertireoidismo e alta suspeita para neoplasia de tireoide foram consideradas prioritárias para avaliação presencial com endocrinologista;
Estabelecer as informações mínimas a serem fornecidas pelos médicos da APS. Essas informações devem ser dados da história clínica e exame físico, e exames complementares disponíveis na APS. Portanto, essas informações devem ser suficientes para estabelecer o diagnóstico ou suspeita clínica e guiar os próximos passos do médico regulador (conforme definido pelo protocolo). Esses dados devem ser objetivos, limitados a cinco a oito parâmetros por condição de saúde (Quadro 1).
Quadro 1 Passo a passo para criação/adaptação local de protocolos utilizados pelo Projeto RegulaSUS, TelessaúdeRS-UFRGS, 2019.
1. Identificar especialidades com demanda reprimida e motivos de encaminhamento sensíveis à atenção primária à saúde; |
2. Amostrar a demanda reprimida; |
3. Estabelecer os motivos mais frequentes de encaminhamento; |
4. Revisar a literatura correspondente aos motivos frequentes; |
5.Definir, para cada motivo de encaminhamento, quais situações clínicas justificam atenção especializada; |
6. Determinar as situações clínicas prioritárias para atendimento especializado; |
7. Estabelecer o conjunto mínimo de informações necessárias para o encaminhamento. |
Seguindo esse processo, nós desenvolvemos protocolos para cada uma das condições de saúde. Por exemplo, para hipertireoidismo cinco parâmetros são questionados: sinais e sintomas, nível de TSH, nível de T4, uso de antitireoidianos e uso de outras medicações. Dados sobre idade e sexo já são fornecidos automaticamente pelo sistema de regulação. Essas informações permitem o médico regulador inferir se o paciente tem de fato hipertireoidismo, se está sintomático e se o paciente já está em tratamento. Uma tarefa importante na criação do protocolo é remover qualquer questionamento não essencial para o processo de regulação. Protocolos ágeis são mais amigáveis e convenientes, características essenciais para a prática da APS.
Após o desenvolvimento, os protocolos foram aprovados pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul. Todos os pedidos de consulta com atenção especializada são analisados por médicos reguladores (Figura 1). Apesar do desenvolvimento dos protocolos, os encaminhamentos são realizados de forma não estruturada (texto livre) pelos médicos da APS. Utilizando os protocolos, os reguladores podiam autorizar o encaminhamento (quando informações fossem suficientes), solicitar novas informações para o médico da APS ou município ou indicar uma teleconsultoria telefônica com um médico do TelessaúdeRS - UFRGS, bem como lançar mão de outras ações de telessaúde. Os teleconsultores são Médicos de Família e Comunidade ou especialistas focais que trabalham no Canal 0800 do TelessaúdeRS, atuando de forma individual ou em interconsultoria. As teleconsultorias não eram compulsórias, mas as informações deveriam ser informadas por telefone ou pelo sistema de encaminhamento eletrônico. Os teleconsultores recebem suporte de um grupo de monitores, que prepara as discussões e uma amostra das discussões passa por auditoria. O fluxo da Figura 1, especialmente modelado em BPMN (Business Process Model and Notation)30 para esse trabalho, bem como os fluxos de teleconsultoria, telediagnóstico e Canal 0800 foram registrados no Instituto Nacional de Produção Industrial.
Avaliamos a eficácia do método em identificar os principais motivos de encaminhamento (passo 2). Para isso, na endocrinologia, avaliamos o percentual de cada motivo selecionado na amostragem inicial com os motivos de encaminhamento identificados no período de novembro de 2013 a maio de 2016.
Para analisar os efeitos do processo de trabalho desenvolvido e implementado utilizamos o banco de dados do sistema informatizado de encaminhamentos AGHOS. Na presente análise incluímos os encaminhamentos das filas acompanhadas pelo RegulaSUS por pelo menos um ano até a inativação do sistema. O AGHOS foi inativado e substituído por um novo sistema em junho de 2016. Com esse banco, fizemos uma análise retrospectiva das seguintes variáveis: 1) tamanho da fila e; 2) tempo de espera (mediana) dos encaminhamentos não agendados em cada momento do tempo (utilizamos o início da aplicação dos protocolos como tempo zero e observamos a situação da fila 90, 60 e 30 dias antes até 30, 60, 90, 180 e 360 dias após); 3) número de marcações ocorridas nos 30 dias anteriores a cada momento do tempo e; 4) tempo de espera (mediana) até essa marcação. Os resultados foram analisados agregados (totais e categorizados em especialidades clínicas e cirúrgicas) e divididos por especialidades.
Além disso, buscamos dados de uso do canal de teleconsultorias e avaliamos os efeitos das consultorias do RegulaSUS no uso espontâneo do Canal 0800.
Os protocolos de encaminhamento foram implementados ao longo do ano de 2015 para a regulação de toda a fila de especialidades selecionadas. As filas a seguir foram incluídas no RegulaSUS, portanto nessa análise, de acordo com a seguinte cronologia: endocrinologia (01/01/2015); nefrologia (01/01/15); pneumologia (19/02/15); urologia (19/02/15); neurocirurgia (15/05/15); neurologia (15/05/15); cirurgia torácica (15/06/15); reumatologia (15/06/15).
Na amostra realizada dos encaminhamentos de endocrinologia foram selecionadas seis condições de saúde. Após o desenvolvimento dos protocolos, mais de nove mil encaminhamentos dessa especialidade foram regulados. A amostragem se mostrou capaz de prever as condições mais frequentes de encaminhamento na amostra completa (Tabela 1).
Tabela 1 Proporção de condições de saúde selecionadas amostradas e encontradas na população. TelessaúdeRS-UFRGS, Porto Alegre, 2019.
Condição de saúde | Amostra | População |
---|---|---|
Diabetes Mellitus | 30% | 20,3% |
Nódulos de tireóide | 26% | 34,6%* |
Hipotireoidismo | 20% | 15,0% |
Hipertireoidismo | 6% | 7,0% |
Bócio | 6% | 34,6%* |
Obesidade | 5% | 6,8% |
Outras (condições não protocolizadas) | 7% | 16,3% |
Total | 100% | 100,0% |
*as condições de bócio e nódulos foram agregadas na análise final dos dados
A implementação dos protocolos integrada com o processo de telerregulação está associada, do ponto de vista cronológico, com uma redução geral do volume da fila de espera por consulta especializada de aproximadamente 30% (37.435 para 26.172), ocorrendo de maneira mais expressiva a partir de 180 - 360 dias do início da intervenção e nas especialidades clínicas (Tabela 2).
Tabela 2 Número de pessoas em fila de espera de encaminhamentos não agendados, tempo mediano de espera para marcação e número de marcações nos 30 dias anteriores, especialidades clínicas e cirúrgicas. TelessaúdeRS-UFRGS, Porto Alegre, 2019.
Momento do tempo (0 = início da intervenção) | |||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
-90 | -60 | -30 | 0 | 30 | 60 | 90 | 180 | 360 | ∆ 360-0 | ||
Clínicas | Pessoas em fila de espera | 24.734 | 25.078 | 25.020 | 24.691 | 24.214 | 23.327 | 22.763 | 19.705 | 14.988 | -9.703 |
Tempo para marcação* | 341 | 320 | 209 | 234 | 272 | 319 | 346 | 183 | 168 | -66 | |
Consultas marcadas | 975 | 863 | 933 | 864 | 877 | 873 | 852 | 827 | 627 | -237 | |
Cirúrgicas | Pessoas em fila de espera | 12.618 | 12.864 | 12.770 | 12.744 | 12.738 | 12.848 | 12.690 | 11.962 | 11.184 | -1.560 |
Tempo para marcação* | 139 | 127 | 166 | 219 | 239 | 254 | 403 | 328 | 376 | 157 | |
Consultas marcadas | 556 | 389 | 442 | 514 | 461 | 399 | 507 | 401 | 380 | -134 | |
Total | Pessoas em fila de espera | 37.352 | 37.942 | 37.790 | 37.435 | 36.952 | 36.175 | 35.453 | 31.667 | 26.172 | -11.263 |
Tempo para marcação* | 267 | 260 | 196 | 229 | 261 | 298 | 367 | 231 | 246 | 17 | |
Consultas marcadas | 1.531 | 1.252 | 1.375 | 1.378 | 1.338 | 1.272 | 1.359 | 1.228 | 1.007 | -371 |
*Mediana em dias
Quanto aos tempos de espera para marcação, observamos que, mesmo ocorrendo uma redução de 27% na oferta de marcações de consultas (clínicas e cirúrgicas), houve redução de 66 dias na mediana de tempo de espera para marcação de especialidades clínicas sob intervenção (de 234 para 168). Em contrapartida, nas especialidades cirúrgicas a tendência foi inversa, com aumento da mediana de tempo de espera (de 219 para 376).
Outra medida de interesse são as medianas de tempo de espera dos casos que estão na fila de espera a cada momento do tempo (Gráfico 1). Nesse caso, observa-se dilatação do tempo mediano para as especialidades clínicas (de 328 para 361) e redução para as especialidades cirúrgicas (de 302 para 261), ao contrário das tendências dos tempos para marcação.
Fonte: TelessaúdeRS-UFRGS e sistema AGHOS, Porto Alegre, 2019.
Gráfico 1 Tempo em fila de espera para consulta especializada.Nota: Mediana de dias em fila de espera das solicitações do interior do estado do RS para consulta presencial na capital nas especialidades sob intervenção do RegulaSUS. Tempo zero representa o início da intervenção.
Com o crescimento das discussões de casos em fila de espera, estimulada pela exposição ao RegulaSUS, observa-se um aumento de 860% associado ao número de teleconsultorias espontâneas (não relacionadas com regulação) realizadas pelo TelesssaúdeRS (Gráfico 2) de jan/14 a jun/16. Observa-se uma inflexão no número de teleconsultorias em fev/16. Esse achado não tem explicação clara nos nossos dados, mas é potencialmente atribuível a um mês com menor número de dias úteis.
As ações de telessaúde, coordenadas pelo RegulaSUS, foram responsáveis pela redução nas filas de espera das especialidades médicas estudadas, principalmente nas clínicas, sendo que o período em que o impacto demonstrou maior força foi a partir dos 180 dias de início da atuação nas listas. Além destes resultados, o estímulo ao uso espontâneo do Canal 0800 pelos médicos qualifica o cuidado, amplia a capacidade resolutiva da APS e o acesso à atenção especializada na própria APS, além de permitir o uso mais racional da oferta já reduzida de consultas disponíveis no Estado. A hipótese de aumento das consultorias espontâneas do 0800 induzido pelo RegulaSUS é corroborada por estudo prévio que encontrou uma média de teleconsultorias para profissionais que utilizam somente o Canal 0800 de 6,52, enquanto que essa média foi de 10,03 entre aqueles expostos ao RegulaSUS31.
O impacto na redução das filas e no tempo mediano de espera para marcação atingido nas especialidades clínicas reflete o potencial que ações de suporte assistencial não presencial, tais como teleconsultoria e telediagnóstico, têm sobre condições sensíveis à telessaúde, mesmo em situações adversas (redução de mais de 1/4 da oferta de consultas especializadas ao longo do período) como demonstradas em nosso estudo. O papel desenvolvido pela telerregulação neste projeto foi de explorar alternativas às consultas especializadas presenciais para os casos com demandas de baixa densidade tecnológica. Esse mesmo aspecto do trabalho explica as limitações da intervenção nas especialidades cirúrgicas, observada a partir de tempos de espera crescentes para marcação de consulta presencial (Tabela 2). A dilatação dos tempos nas especialidades cirúrgicas denota insuficiência de oferta que piora ao longo dos meses. Nessas especialidades, apesar de menor impacto da intervenção do que nas especialidades clínicas, o papel da telerregulação por meio da aplicação dos protocolos e discussão dos casos em teleconsultoria, pode ter atenuado tendências ainda maiores de restrição do acesso e assegurado que muitos casos legados que se avolumavam na fila fossem qualificados para marcação. Como consequência observamos diminuição do tempo de espera dos casos que restam em fila nas especialidades cirúrgicas (Gráfico 1).
Um aspecto importante de inovação presente neste estudo está no desenvolvimento de protocolos de encaminhamento simplificados capazes de abarcar os motivos de encaminhamento mais frequentes. De maneira geral (e com alguma evidência) sugere-se como padrão-ouro protocolos e diretrizes amplos e muitas vezes complexos no seu manuseio32,33. Entretanto, a utilização, usabilidade e satisfação dos profissionais com tais protocolos estão associados com facilidade de uso e incorporação nos sistemas eletrônicos de consulta25,34-36. O papel de liderança dos médicos de APS na confecção de tais materiais foi essencial, contribuindo com seu maior conhecimento sobre as limitações do escopo da prática clínica neste nível de atenção, além do entendimento sobre a função ordenadora da APS no sistema de saúde. A revisão pelos médicos especialistas focais, assim como pelos médicos reguladores, foi igualmente importante para adicionar aspectos relevantes aos protocolos e validar com a prática no mundo real.
É inequívoco que os sistemas de saúde precisam ampliar sua capacidade resolutiva com soluções alternativas ao cuidado tradicional especialmente em tempos de crises financeiras e austeridade. A pressão econômica, tanto pelo aumento da demanda quanto pela incorporação de novas tecnologias, exige soluções criativas orientadas para otimizar acesso, qualidade e custo, pois ações de telessaúde são capazes de atenuar o problema do triângulo de ferro da saúde37,38. Nesse sentido, protocolos de encaminhamento simplificados, objetivos e oficiais, mais que meros documentos de gaveta, tem o potencial de estabelecer papéis claros e transparentes dos diferentes níveis de atenção dentro do sistema de saúde e que se contrapõem a prática clínica totalmente autônoma, muito danosa no contexto de recursos limitados. Algo que, apesar de simples, tem pouquíssimos e pontuais precedentes no Brasil. Consultas eletrônicas como estratégia de aumento do acesso à atenção especializada na APS têm sido adotadas em diferentes partes do mundo e para diferentes especialidades médicas39. Em que pese a maioria dessas iniciativas explorarem formatos assíncronos, o modelo desenvolvido no RegulaSUS explora a interação síncrona telefônica, muitas vezes realizada na presença do próprio paciente, o que pode otimizar o número de encontros com o paciente e o cuidado imediato.
Entre as principais limitações encontradas no presente estudo podemos citar o desenho de quase-experimento, com caráter descritivo das ações e dos resultados, sem controle para potenciais fatores confundidores e vieses. Os dados utilizados provêm de uma base secundária e estão sujeitos a problemas de preenchimento e resgate de informações. As medidas de acesso avaliadas – saída da fila por exposição ao RegulaSUS e tempos de espera para marcação – são agregadas e indiretas, não considerando os desfechos em nível individual. Da mesma maneira, não cabe inferência causal do crescimento das consultorias espontâneas associado a evolução da telerregulação uma vez que não foram explorados dados individuais.
Por fim, entendemos que a autonomia médica em processos tais como de encaminhamentos deve ser substituída por estratégias de regulação baseadas em coordenação do cuidado pela APS (gatekeeping), preferencialmente através de ações de telessaúde, garantindo o encaminhamento ao especialista certo, no tempo certo e no lugar certo40. Estas ações têm um potencial papel na integração dos sistemas de saúde, principalmente entre os países de baixa e média renda, atuando como metasserviço29 e construindo redes eficientes, qualificadas e equânimes.