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Acessos arteriovenosos de alto débito estão associados a pior hemodiálise?

Acessos arteriovenosos de alto débito estão associados a pior hemodiálise?

Autores:

Ivo Laranjinha,
Patrícia Matias,
Ana Azevedo,
David Navarro,
Carina Ferreira,
Tiago Amaral,
Marco Mendes,
Inês Aires,
Cristina Jorge,
Célia Gil,
Anibal Ferreira

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.40 no.2 São Paulo abr./jun. 2018 Epub 28-Maio-2018

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3875

INTRODUÇÃO

Uma adequada hemodiálise (HD) requer um acesso vascular funcional com débito de sangue de pelo menos 350-400 mL/min, com recirculação mínima para a duração total do tratamento.1,2 A monitorização do débito de acesso (Qa) é muito importante para a detecção precoce de disfunção de acesso,3 como o acesso de alto débito (HFA). Embora um débito sanguíneo mais alto permita punção fácil e excelente débito de sangue para o dialisador (Qb), o mesmo tem sido relacionado a algumas complicações sistêmicas deletérias.4

Não há definição exata do valor de Qa acima do qual um acesso é considerado um AAD e nenhuma orientação consensual sobre o Qa de acesso ideal ou normal. As diretrizes da Sociedade de Acesso Vascular definiram uma fístula arteriovenosa (FAV) como uma fístula de alto débito com Qa entre 1-1,5 L/min e uma medida de recirculação cardiopulmonar (RCP) [Qa/débito cardíaco (DC)] maior que 20%.5 Na ausência de uma descrição exata de um AAD, uma Qa > 2L/min é usada pragmaticamente como um ponto de corte, uma vez que aumenta o risco de insuficiência cardíaca em pacientes em HD com um Qa/DC > 20-30%.6-8

Considerando as adaptações cardíacas estruturais e funcionais associadas à construção de um acesso AV, e principalmente o maior risco de insuficiência cardíaca em pacientes com AAD, alguns pacientes tornam-se dependentes de pré-carga, o que causa hipotensão intradialítica, com menor ultrafiltração.6,7 Além disso, a construção de um acesso AV leva à criação de um shunt esquerdo-direito extracardíaco, que provoca a recirculação cardiopulmonar (RCP), ou seja, o sangue dialisado do acesso AV é direcionado para o ventrículo direito e circulação pulmonar, sendo então bombeado para circulação sistêmica, e uma porção desse sangue dialisado entra novamente no acesso. A reentrada da mistura de sangue dialisado e sistêmico no acesso poderia levar a uma depuração deficiente do soluto.1,7,9 Esta mistura diminui a concentração de soluto entre o sangue e o dialisado, o que reduz a remoção de solutos do sangue. Schneditz et al. foram os primeiros a mostrar a associação entre RCP e eficiência de HD num modelo teórico.9,10

A manutenção de um AAD poderia causar alterações cardíacas funcionais e estruturais (toxicidade cardíaca), que poderiam reduzir o DC. Considerando que o coração tem uma capacidade limitada para aumentar o DC, os acessos com maior débito desviam uma proporção maior do DC, ou seja, têm uma maior RCP. Dessa forma, se o mesmo acesso (com o mesmo Qa - numerador) for mantido e o DC for reduzido (como consequência da toxicidade cardíaca desses acessos - denominador), isso significa que a razão Qa/DC (porcentagem de sangue desviada) do DC para o acesso) é alto, o que significa uma RCP mais alta.9-11.

Considerando essas questões não resolvidas, foi realizado um estudo para avaliar se um maior Qa estaria associado à redução da eficiência da HD e/ou à sobrecarga de volume em pacientes com HD prevalente. Nossa hipótese é que pacientes com AAD têm menor tolerância à ultrafiltração, têm mais sobrecarga de volume e podem apresentar uma elevada RCP, reduzindo a eficiência da HD.

MATERIAIS E MÉTODOS

FORMATO DO ESTUDO

Este foi um estudo observacional, retrospectivo, com duração de 1 ano, em um único centro, de uma coorte de pacientes adultos em HD prevalente. A população estudada foi dividida em dois grupos (com AAD e sem AAD) de acordo com o valor médio das três últimas medições do Qa, separadas por pelo menos um mês. Definimos um AAD como um Qa maior que 2 L/min.

Todos os pacientes foram dialisados com filtros de alto fluxo de hélixona (Fresenius®), dialisado de água ultrapura (avaliado mensalmente por teste cromogênico cinético) e hemodiafiltração pós-diluição on-line. Utilizamos a diálise FX CorDiax600 (Fresenius Medical Care), que possui superfície efetiva de 1,6 m2 e depuração Intrínseca para Ureia (KoA) de 1,148. A todos os pacientes incluídos no estudo foram prescritas sessões de HD de 4 horas. A mediana da duração da HD foi de 48 meses (intervalo IQ 24-96).

CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS

Os dados dos pacientes sobre idade, gênero, comorbidade basal (diabetes, hipertensão, doença arterial coronariana, doença vascular periférica e doença cerebrovascular), tipo de acesso, localização e data das intervenções angiográficas e cirúrgicas foram todos extraídos do banco de dados clínicos Euclid.®

Parâmetros bioquímicos como hemoglobina e albumina (valor de referência > 4,0 g/dL) foram avaliados mensalmente e os valores médios foram determinados. Cada paciente foi submetido a um exame ecocardiográfico durante o período do estudo (modo M e 2-D) e o índice de massa ventricular esquerda (IMVE) foi calculado pela fórmula de Devereux.12

Pacientes com classe funcional NYHA maior que II foram excluídos do estudo.

MEDIÇÃO DO FLUXO SANGUÍNEO DO ACESSO (QA)

O fluxo de acesso foi rotineiramente medido por termodiluição, utilizando o Monitor de Temperatura Sanguínea Fresenius Medical Care (BTM) a um Qb de 300 mL/min usando um dispositivo twister. Esta medição é sempre iniciada na primeira hora do tratamento. Nos enxertos, o Qa foi avaliado mensalmente, e nas fístulas foi avaliado dependendo da medida em si: se a última medida tiver sido inferior a 600 mL/min, o Qa foi medido mensalmente, se estivesse entre 600 e 1000 mL/min, a avaliação foi adiada em 4 meses, e se o último Qa foi superior a 1000 mL/min, a próxima avaliação foi adiada para 1 ano.

AVALIAÇÃO DO VOLUME

O volume do paciente foi avaliado mensalmente por bioimpedância, usando o monitor de composição corporal Fresenius Medical Care (BCM).13 Foram avaliadas tanto a sobrecarga de fluido absoluta quanto a relativa. Segundo os estudos de validação do BCM, o status do volume foi classificado em três categorias:

  • Peso seco (sobrecarga de fluido absoluta abaixo de 1 L)

  • Sobrecarga de volume (sobrecarga de fluido absoluta acima de 1,1 L)

  • Sobrecarga severa de volume (sobrecarga de fluido absoluta acima de 2,5 L)

DOSE DE DIÁLISE ADMINISTRADA

O Kt/V foi medido através do Monitor de Depuração Online do Fresenius Medical Care (OCM) em todas as sessões de HD durante 1 ano (aproximadamente 139 sessões por paciente). Para cada paciente, calculamos a porcentagem de sessões em que a meta de Kt/V (Kt/V > 1,4) foi alcançada.

ANÁLISE ESTATÍSTICA

As variáveis foram relatadas como frequências para variáveis categóricas, valores médios com DP para variáveis contínuas com distribuição normal e valores medianos com intervalos interquartis para variáveis contínuas distribuídas de forma não normal. Aplicamos o teste de Shapiro-Wilk para avaliar a normalidade de nossos dados. A comparação entre os grupos (com AAD e sem AAD) foi realizada utilizando o teste-T para variáveis com distribuição normal, o teste de Wilcoxon para variáveis sem distribuição normal, e o teste do x2 para variáveis categóricas.

Para fins de análise, utilizou-se o AAD como preditor, e sobrecarga de volume, valor médio de Kt/V ao longo do ano e % de Kt/V > 1,4 como variáveis de desfecho.

A relação entre AAD e sobrecarga de volume foi estudada usando modelos de regressão logística univariada e multivariada para ajustar potenciais fatores de confusão. A análise multivariada foi ajustada para idade (estatisticamente diferente na análise univariada), tempo em HD, albumina sérica e IMVE.

A relação entre AAD e Kt/V foi estudada usando a correlação de Spearman em uma análise univariada. A análise multivariada foi realizada usando um modelo de regressão linear. Esses modelos foram ajustados para idade (estatisticamente diferentes na análise univariada) e para peso seco, velocidade da bomba e tempo de HD por sessão (determinantes importantes da eficácia da HD).

A análise estatística foi realizada através do sistema SPSS 21.0. Para todas as comparações, um p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.

RESULTADOS

POPULAÇÃO

Participaram do estudo 304 pacientes, sendo 190 (62,5%) do sexo masculino, com média de idade de 67,5 ± 14,8 anos. Um total de 110 (36,2%) pacientes era diabético, 219 (72,0%) tinham hipertensão, 90 (29,6%) tinham doença arterial coronariana, 70 (23%) doença arterial periférica e 63 (20,7%) tinham doença cerebrovascular (Tabela 1).

Tabela 1 Parâmetros clínicos, acesso vascular e de hemodiálise da população estudada 

Variável Pacientes
(n = 304)
Idade, anos 67,5 ± 14,8
Gênero, masculino 190 (62,5)
Etnia, caucasiano 288 (94,7)
Tempo em HD, meses 48 (24-96)
Duração das sessões de HD, minutos 245 (245-247)
Veloc. Bomba sanguínea (Qb), mL/min 442,7 ± 17,9
Diabetes 110 (36,2)
Hipertensão 219 (72,0)
Tipo de acesso
Fístula 225 (74,0)
Prótese 79 (26,0)
Local do acesso, proximal 193 (63,5)
Acesso com Qa ≥ 2 L/min 48 (15,8)
Kt/V media 1,98 ± 0,39
Peso seco (OH < 1L) 269 (88,5)
Sobrecarga de volume (OH > 1L) 35 (11,5)
Sobrecarga severa de volume (OH > 2.5L) 10 (3,3)

* Valores relatados como média ± DP, mediana (intervalo interquartil) ou frequências [n (%)].

Todos os pacientes tinham acesso AV funcional para HD: aproximadamente três quartos (n = 225; 74,0%) tinham fístula e um quarto (n = 79, 26%) tinha um prótese. Em nossa população, 15,8% dos pacientes apresentavam AAD, ou seja, um acesso com Qa > 2L/min. O valor médio do Kt/V foi de 1,98 e 88,5% dos pacientes atingiram o peso seco.

Os pacientes com um AAD eram mais jovens (62,1 vs. 68,5 anos, p = 0,015), estavam em HD por mais tempo (60 vs. 48 meses, p = 0,034) e tinham uma menor prevalência de diabetes (14,6 vs. 40,2%, p < 0,001). Não houve diferença significativa na distribuição por gênero e prevalência de doença arterial coronariana, doença cerebrovascular e doença arterial periférica entre os grupos (Tabela 2).

Tabela 2 Características clínicas e laboratoriais dos pacientes com AAD e sem AAD 

Qa < 2 L/min (n = 256) Qa ≥ 2 L/min (n = 48) p
Idade, anos 68,5 ± 14,1 62,1 ± 17,5 0.015
Gênero, masculino 155 (60,5) 35 (72,9) ns
Etnia, caucasiano 245 (95,7) 43 (89,6) ns
Tempo em HD, meses 48 (24-84) 60 (27-108) 0.034
Duração das seções de HD, minutos 245 (245-247) 246 (245-247) ns
Velocidade da bomba sanguínea (Qb), mL/min 442,7 ± 18,0 443,3 ± 17,8 ns
Peso seco (kg) 69,9 ± 13,5 70,7 ± 11,3 ns
Diabetes 103 (40,2) 7 (14,6) < 0.001
Hemoglobina (g/dL) 11,1 ± 1,1 11,2 ± 1,1 ns
Albumina sérica (g/dL) 4,0 ± 0,3 4,1 ± 0,3 ns
Tipo de acesso
Fístula 181 (70,7) 44 (91,7) 0.001
Enxerto (prótese) 75 (29,3) 4 (8,3)
Local do acesso, proximal 157 (61,3) 36 (75,0) 0.043
Pressão de pulso, mmHg 78,0 ± 15,9 71,7 ± 17,6 0.037
Pressão arterial média, mmHg 92,0 ± 13,2 90,0 ± 14,5 ns
Frequência cardíaca, bpm 71,7 ± 10,6 72,1 ± 10,0 ns
Índice de Massa Ventricular Esquerda (g/m2) 130,2 ± 30,9 146,2 ± 47,3 0.035
Fração de Ejeção Ventrículo Esquerdo (%) 60,7 ± 13,6 55,1 ± 17,8 ns
Pressão Arterial Pulmonar (mmHg) 39,2 ± 12,9 34,1 ± 13,3 ns
Hipertensão 182 (71,1) 37 (77,1) ns
Doença da Artéria Coronariana 80 (31,3) 10 (20,8) ns
Doença de Artéria Periférica 63 (24,6) 7 (14,6) ns
Doença cerebrovascular 56 (21,9) 7 (14,6) ns

* Valores relatados como média ±DP, mediana (intervalo interquartil) ou frequências [n (%)].

Em relação às características do acesso, verificamos que Qa ≥ 2 L/min foi mais frequente nas fístulas comparativamente aos próteses (91,7 vs. 8,3%, p = 0,001), e nos acessos proximais do que nos distais (75 vs. 25%, p = 0,043).

Pacientes com AAD apresentaram maior índice de massa ventricular esquerda (146,2 vs. 130,2 g/m2, p = 0,035) e menor pressão de pulso (71,7 vs. 78,0 mmHg, p = 0,037). Embora não estatisticamente significantes, pacientes com AAD apresentaram maior proporção de hipertensão (77,1 vs. 71,1%) e menor FEVE (55,1 vs. 60,7%).

Sobrecarga de volume

Oitenta e nove por cento dos pacientes atingiram o peso seco e 11,5% tiveram sobrecarga de volume (OH > 1L).

Na análise univariada, encontramos que os pacientes com AAD apresentavam maior sobrecarga grave de volume (2,3 vs. 8,3%, OR 3,79, IC95% = 1,03-13,97). No entanto, a distribuição dos pacientes para as categorias de peso seco e sobrecarga de volume não foi diferente entre os grupos.

Uma análise de regressão logística foi realizada para verificar o efeito de se ter um AAD na possibilidade de se ter ajuste de sobrecarga de volume para idade (anos), tempo em HD (meses), albumina sérica (g/dL) e IMVE (g/m2). Descobrimos que um acesso com Qa > 2L/min foi significativamente associado ao risco de sobrecarga de volume (OR = 2,67, IC 95% = 1,06-6,71) e sobrecarga severa de volume (OR = 4,06, IC 95% = 1,01-16,39). Na mesma análise, também descobrimos que os pacientes com AAD atingiram o peso seco com menos frequência (OR = 0,37, IC 95% = 0,14-0,94).

Kt/V

A média do Kt/V de nossa população foi de 1,98 e a meta de Kt/V foi atingida em 97% das sessões. Os pacientes com AAD não apresentaram valores médios diferentes de Kt/V ou uma proporção diferente de sessões nas quais o Kt/V foi obtido em comparação com pacientes com acesso AV de Qa ≤ 2 L/min.

Foi realizada uma análise de regressão múltipla para investigar se o valor de Kt/V poderia ser previsto baseado em Qa > 2L/min, em um modelo ajustado para a idade (anos), peso seco (Kg), velocidade do bombeamento sanguíneo (mL/min) e tempo de cada sessão de HD (minutos). Este modelo não foi significativo (Tabela 3).

Tabela 3 Eficácia e características do volume de pacientes com AA F e sem AA F (análises univariada e multivariada) 

Análise univariada Análise multivariada §
Qa < 2 L/min
(n = 256)
Qa ≥ 2 L/min
(n = 48)
OR (95% CI) p OR (95% IC)
Peso seco (OH ≤ 1L) 230 (89,8) 39 (81,3) 0,49
(0,21-1,12)
ns 0,37
(0,14-0,94)
Sobrecarga de volume (OH > 1L) 26 (10,2) 9 (18,8) 2,04
(0,89-4,68)
ns 2,67
(1,06-6,71)
Sobrecarga severa de volume (OH > 2.5 L) 6 (2,3) 4 (8,3) 3,79
(1,03-13,97)
0.056 4,06
(1,01-16,39)
(% VO > 15% 52 (22,0) 9 (21,4) 0,965 (0,43-2,15) ns 0,79 (0,33-1,93)
(% VO > 20% 12 (5,1) 3 (7,1) 1,44
(0,39-5,32)
ns 1,65
(0,39-6,99)
Kt/V 1,99 ± 0,40 1,93 ± 0,35 0,52
(0,07-1,18)
ns 0,03
(0,00-3,09)
% de sessões nas quais Kt/V foi atingido em 1 ano 97,2 95,3 1,69
(0,34-8,40)
ns 1,33
(0,20-8,71)

* Valores expressos em média ± DP, mediana ou frequências [n (%)]. A sobrecarga relativa do volume pré-dialítico (% VO) foi calculada como: % VO = VO [L]/água extracelular [L] * 100 no início do estudo.

§Análise multivariada: regressão logística para desfechos binários e regressão linear para desfechos contínuos. Os modelos foram ajustados para idade (anos), peso seco (kg), velocidade da bomba (mL/min) e duração das sessões de HD (minutos) para estudar a eficiência da HD (Kt/V) e para idade, duração da HD, albumina sérica (g/dL) e IMVE para avaliar o estado do volume.

Também comparamos os pacientes com Qa < 1 L/min com pacientes com Qa > 1 L/min e os resultados não foram diferentes dos descritos acima.

DISCUSSÃO

Acreditamos que este seja o primeiro estudo que investigou a relação entre AAD, sobrecarga de volume e eficiência da HD. Descobrimos que ter um AAD, pelo menos quando o Qa estava maior do que 2 L/min, esteve associado a um maior risco de sobrecarga de volume, mas não à eficiência da diálise, avaliada pelo Kt/V.

Existem muitos estudos sobre as adaptações cardíacas e neuro-hormonais imediatas e tardias após a criação de um acesso AV. Essas modificações levam a um aumento compensatório do DC, da frequência cardíaca, da contratilidade cardíaca e do volume sanguíneo.10,14 Alguns estudos sobre os efeitos hemodinâmicos cardíacos dos acessos AV sugerem que pacientes com AAD apresentam níveis elevados de DC, maior índice cardíaco, menor perfusão subendocárdica e aumento do tamanho da cavidade ventricular esquerda.5,14-16 Esses pacientes também poderiam apresentar maior disfunção diastólica cardíaca e maiores níveis de ANP/BNP.10

Vários casos de insuficiência cardíaca de alto débito em pacientes com AAD foram relatados,17-19 especialmente em pacientes transplantados. Uma relação Qa/DC superior a 0,3 é considerada um fator de risco para insuficiência cardíaca de alto débito, porém esse valor de corte ainda não foi validado em estudos prospectivos.20 Outros estudos mostraram melhora clínica e ecocardiográfica após encerramento do acesso ou redução do fluxo.21-25 Uma relação estabelecida entre Qa e DC foi descrita por Basile et al.6 em um modelo de regressão polinomial de 3ª ordem, no qual o DC não variou significativamente para Qa entre 0,95 e 2,2 L/min. Esses autores também mostram que um Qa > 2 L/min foi um forte preditor de insuficiência cardíaca de alto débito.6

Estudos prospectivos encontraram sinais indiretos (por exemplo, aumento do ANP sérico) de que a criação de um acesso AV desenvolve um estado de sobrecarga de volume, pelo menos imediatamente após tal criação,10,26 o que foi demonstrado em fístulas traumáticas. Além do aumento do volume sanguíneo, também foi demonstrado que nas fístulas traumáticas, quanto maior o fluxo sanguíneo da fístula, maior o aumento do volume sanguíneo.27

Em nosso estudo de coorte, pacientes com AAD apresentaram maior IMVE e, embora não estatisticamente significantes, esses pacientes também apresentaram maior proporção de hipertensão e menor FEVE.

As adaptações cardíacas em pacientes com AAD poderiam estar associadas a menor tolerabilidade à ultrafiltração e interferir na obtenção do peso seco, o que poderia ter consequências prognósticas.7 Neste estudo, nós hipotetizamos que um Qa mais alto estaria associado a um maior risco de sobrecarga de volume, e nossos achados corroboram essa hipótese. O coeficiente de probabilidade (odds ratio) da sobrecarga de volume e sobrecarga de volume grave foram 2,67 e 4,06 vezes maior para pacientes com AAD do que para pacientes com Qa < 2 L/min, respectivamente. Nós também descobrimos que os pacientes com um AAD atingiram o peso seco com menos frequência, com odds ratio 0,37 vezes menor em comparação com os pacientes com Qa < 2 L/min.

A construção de um acesso AV leva a um desvio extracardíaco, da esquerda para a direita, causando RCP, e uma proporção significativa de sangue dialisado entra novamente no acesso, o que poderia, teoricamente, levar a uma depuração deficiente do soluto. Assim, acessos com maior fluxo sanguíneo conduzem a uma maior porcentagem de DC para o acesso, ou seja, têm maior RCP. Alguns autores postularam que um AAD persistente poderia estar associado à sub- dialise.8 Esses autores reforçam o importante potencial para a toxicidade cardíaca, mas também as potenciais consequências sistêmicas de um AAD, como a "síndrome do roubo global", a diálise e a caquexia.7,27

Ao contrário do que foi postulado, a maior RCP relacionada ao AAD não está associada à menor eficiência da HD. Devemos observar que a adequação da HD tem múltiplos componentes, como nutrição, controle da anemia e distúrbios minerais e ósseos. Portanto, essa questão precisa ser esclarecida em estudos prospectivos randomizados, onde são considerados outros componentes da eficiência da HD, além do Kt/V.

Embora um estudo anterior não tenha encontrado um aumento no risco de mortalidade por todas as causas associado a maior Qa,28 mais estudos são necessários para investigar se, quando, e quais pacientes se beneficiariam da redução de Qa na AAD.29

Nossos resultados corroboram o novo paradigma de "patient first", atualmente aceito no campo dos acessos vasculares para hemodiálise, em oposição ao antigo paradigma da "fistula first". Essa mudança foi baseada em dados que sugerem que a presença de uma FAV pode contribuir para a alta morbidade CV em pacientes em HD, denominada por Richard Amerling "toxicidade da fístula arteriovenosa".7 Com este novo paradigma, os especialistas querem alertar que a FAV não é a melhor escolha para todos os pacientes. O melhor acesso vascular para cada paciente deve ser definido individualmente, com base no risco de insuficiência cardíaca e/ou síndrome do roubo isquêmico, comorbidades CV, desejos do paciente, expectativa de vida, etc.7,8

Uma limitação do nosso estudo é a sua natureza retrospectiva e uma população em HD de um único centro, o que poderia interferir na generalização de nossos resultados. Outra limitação importante é que o DC, que é um determinante muito importante da Qa, não foi avaliado em nosso estudo, pois a rotina ecocardiográfica realizada em nosso centro não inclui o estudo de doppler.

Em conclusão, nossos resultados sugerem que um AAD está associado a um maior risco de sobrecarga de volume e menor capacidade de atingir o peso seco. Ao contrário do que foi postulado, pacientes com AAD não possuem menos HD eficiente, medida pelo Kt/V. Ensaios clínicos randomizados e controlados são necessários para examinar se Qa maior acrescenta dificuldade em atingir o peso seco, se é fator de risco cardiovascular, e se está associada a menor eficácia dialítica.

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