versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.32 no.1 São Paulo 2020 Epub 07-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192018216
A disfagia orofaríngea é um distúrbio da deglutição que pode ocasionar pneumonias, desnutrição e desidratação e se faz prevalente em distintas doenças neurológicas(1-4). A presença dessas complicações advindas do quadro disfágico torna de extrema relevância que o rastreio da disfagia orofaríngea seja uma prática dos profissionais de diversas áreas da saúde para que os indivíduos sejam encaminhados precocemente para o profissional especializado. Além disso, o acesso a distintos métodos para a avaliação das disfagias orofaríngeas tornou-se fator determinante para a compreensão da biomecânica da deglutição e para a definição de estratégias terapêuticas para os indivíduos disfágicos(5).
A DNM é um grupo de doenças que pode modificar o padrão da deglutição e se caracteriza por comprometer o componente motor e alterar o corpo celular do neurônio motor superior, inferior ou ambos(1). As doenças que constituem esse grupo se manifestam clinicamente de diversas formas, podendo causar fraqueza muscular, fasciculações, atrofia, atonia entre outras alterações. Dentre as DNM, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) é uma das doenças mais frequentes e se caracteriza como comprometimento do neurônio motor superior e/ou inferior. Essa doença é classificada como neuromuscular degenerativa progressiva devido à alteração nas células dos neurônios motores não somente do tronco cerebral, mas também da medula e das vias córtico espinhais e bulbares, que são responsáveis pelo controle dos movimentos voluntários(6). A degeneração dos neurônios motores em diferentes graus provoca alterações nos músculos controlados por eles acarretando prejuízos em todas as fases da deglutição(7).
A disfagia orofaríngea, portanto, está presente na ELA em diferentes estágios da doença, levando ao comprometimento da segurança e da eficiência da deglutição, comprometendo a oferta de alimentação por via oral(8).
A presença de comprometimento nas fases da deglutição na ELA tem sido relatada em alguns estudos, com uso de distintos métodos e independentemente da consistência do alimento(9). No início da ELA, mesmo sem queixa por parte do indivíduo, a disfagia orofaríngea é sintoma frequente que se caracteriza por dificuldade na propulsão oral do alimento e que, embora possa comprometer o nível de ingestão por via oral, ainda se mantém segura. A presença de paralisia progressiva de língua é comum na ELA, muito mais rápida na ELA bulbar, que afeta a fase oral preparatória e a fase oral propriamente dita, resultando em grave comprometimento para a propulsão do bolo alimentar e dificultando a escolha da consistência do alimento para que a ingestão oral seja mais eficiente(1). Por outro lado, há estudos que enfatizaram que a fase faríngea é a mais afetada, ocorrendo penetração laríngea ou aspiração laringotraqueal durante essa fase(10).
Assim, embora os estudos atuais retratem com ênfase a presença de alterações na fase oral e faríngea na ELA, é de fundamental importância para a prática baseada em evidências que se conheça a frequência desses achados por consistência de alimento para que condutas generalizadas não sejam empregadas.
Na ELA, há estudos que apontaram a dificuldade no manejo dos resíduos faríngeos, devido à presença de importante dificuldade na ejeção oral e devido à fraqueza na motilidade da faríngea, potencializando o risco de penetração laríngea e/ou aspiração(11). Outro aspecto relevante na comparação entre os achados da deglutição e as consistências de alimento na ELA trata-se do manejo da disfagia nessa população, uma vez que há necessidade constante de modificação das consistências de alimento, visando permitir via oral até quando indicado, sem, contudo, comprometer a eficiência da ingestão oral e a segurança da deglutição.
Portanto, este estudo teve como objetivo comparar os achados videoendoscópicos de deglutição em distintas consistências de alimento na Esclerose Lateral Amiotrófica.
Este estudo integra o projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição sob o número 176/2009. Todos os indivíduos envolvidos ou seus responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Estudo clínico por amostra de conveniência. Foram analisados 20 laudos de videoendoscopia de deglutição, realizados por um médico otorrinolaringologista e um fonoaudiólogo em serviço de referência no diagnóstico e reabilitação da disfagia orofaríngea, de indivíduos com diagnóstico de ELA, independentemente do tipo e tempo de diagnóstico, 13 do gênero masculino e sete do sexo feminino, faixa etária variando de 34 a 78 anos, média de 57 anos. A VED foi realizada por um mesmo médico otorrinolaringologista, seguindo o protocolo do ambulatório de Otorrinolaringologia e de Disfagia Orofaríngea do Centro de Reabilitação da Universidade Estadual Paulista-UNESP-Campus de Marília.
Quanto ao procedimento instrumental de VED, foi utilizado nasofibroscópio da marca Pentax®, acoplado ao sistema de microcâmera da marca Pentax® e fonte de luz da marca Pentax®, modelo LH-150 PC. Todo o exame pôde ser acompanhado pela visualização das imagens no monitor utilizando o software de captura de imagem Zscan 6,0.
Para a realização do exame, o participante foi orientado a permanecer sentado, e, então, o aparelho foi introduzido pela fossa nasal mais pérvia, não sendo utilizado anestésico tópico, para evitar alterações na sensibilidade local. Avaliou-se a cavidade nasal, faríngea e laríngea, com a observação da mobilidade das pregas vocais durante a emissão sonora de /i/. A sensibilidade laríngea foi testada pelo toque da extremidade distal do aparelho de nasofibroscopia nas pregas ariepiglóticas bilaterais e nas aritenoides.
No estudo videoendoscópico da deglutição, foram utilizadas consistências de alimentos padronizadas em pastoso, líquido engrossado e líquido, e a partir de 2015 foram equiparadas a normatização e terminologia pelos níveis 2, 1 e 0, respectivamente, baseando-se no International Dysphagia Diet Stardartization Initiative (IDDSI)(12).
Para a coleta de dados, foram registrados os parâmetros de escape oral posterior, resíduos faríngeos, penetração e/ou aspiração laringotraqueal. Este estudo considerou como escape oral posterior a ocorrência de escape oral antecipado do bolo alimentar para a hipofaringe, ultrapassando a região em que deve ocorrer a resposta faríngea(13). Foi definida como resíduos faríngeos a permanência de material contrastado na região da valéculas e seios piriformes após a segunda deglutição(14). O parâmetro penetração e/ou aspiração foi considerado como todo material localizado acima da prega vocal como penetração laríngea e aspiração laringotraqueal, a ocorrência de passagem de material abaixo do nível da prega vocal(15). Para análise estatística, os indivíduos foram divididos de acordo com as consistências testadas, no volume de 5 ml, sendo pastoso (N=20), líquido espessado (N=19) e líquido (N=18). Neste estudo, foi utilizado o teste estatístico de ANOVA de Friedman.
No presente estudo, não houve alteração da sensibilidade laríngea nessa população.
A Tabela 1 mostra a comparação entre os achados videoendoscópicos da deglutição e consistências de alimento na ELA. Os achados de deglutição estudados estiveram presentes em todas as consistências de alimento, porém somente na presença de resíduos faríngeos houve diferença estatística significativa
Tabela 1 Comparação entre achados videoendoscópicos da deglutição e consistências de alimento na ELA
Achados | Líquido (N=18) |
Líquido Espessado (N=19) |
Pastoso (N=20) |
Valor p |
---|---|---|---|---|
Escape Oral Posterior | N=10 (55%) |
N=10 (52,6%) |
N= 10 (50%) |
p= 0,47 |
Resíduos Faríngeos | N=4 (22,2%) |
N=8 (42,1%)* |
N=8 (40%)* |
p=0,018* |
Penetração Laríngea | N=7 (38,8%) |
N=5 (26,3%) |
N=6 (30%) |
p=0,513 |
Aspiração Laringotraqueal | N=3 (16,6%) |
N=1 (5,2%) |
N=1 (5%) |
p=0,36 |
*= Valor estatístico significativo
Legenda: ELA: Esclerose Lateral Amiotrófica
Embora a disfagia orofaríngea seja um sintoma frequente na ELA, o comprometimento da deglutição se agrava nos estágios mais avançados da doença ou dependendo do tipo(8,10). Estudo recente mostrou que, quanto pior o desempenho motor nas DNM, maior é o risco de penetração e aspiração(16-18). Esse comprometimento da deglutição, presente de forma mais acentuada nos estágios mais avançados ou de acordo com o tipo de DNM, faz com que no estágio inicial a alteração de deglutição seja pouco investigada, promovendo generalização de condutas. Além disso, diante das demais populações com disfagia orofaríngea, a ELA ainda é pouco estudada e as pesquisas encontradas não compararam as alterações no trânsito orofaríngeo entre as distintas consistências do alimento(16).
Neste estudo, não foi encontrada alteração na sensibilidade laríngea na DNM. A ausência dessa alteração já era esperada nessa população, diferentemente do que já se constatou na disfagia orofaríngea Pós-Acidente Vascular Cerebral(19,20), já que nas doenças neuromusculares os mecanismos de sensibilidade geral da mucosa da região da laringe e da hipofaringe estão preservados. A alteração da sensibilidade laríngea no AVC, por exemplo, compromete os mecanismos de proteção da via aérea inferior, tendo correlação com penetração e aspiração traqueal, sendo um dos aspectos que justifica nessa população a presença do achado de aspiração(20). Assim, a presença de penetração e aspiração na ELA não deve ser atribuída a questões sensoriais, inclusive por se tratar de uma doença muscular, e sim aos demais aspectos da biomecânica da deglutição.
Por outro lado, a presença de escape oral posterior na ELA ocorreu de forma frequente e não houve diferença estatística significante entre as consistências de alimento. Estudos anteriores com essa população também encontraram que o escape oral posterior é um achado frequente nessa população devido à paralisia progressiva da língua, que compromete a propulsão oral do bolo alimentar e, consequentemente, o disparo da resposta faríngea, promovendo escape oral posterior para todas as consistências de alimento(1,4,7).
Na análise dos achados de penetração laríngea e aspiração laringotraqueal, verificou-se que também não houve diferença estatística significante entre as consistências do alimento. Embora alguns estudos sobre ELA tenham relatado presença frequente de penetração e aspiração, neste estudo, a frequência foi baixa comparada com os demais achados(21). No entanto, é necessário relembrar que essa foi uma amostra de conveniência e que o tipo e estágio da ELA não foram identificados, o que torna a comparação com outros estudos bastante limitada já que esses dois aspectos da ELA muito interferem na biomecânica da deglutição. Além disso, embora pouco frequente nesta amostra estudada, esses sinais estiveram presentes em todas as consistências de alimento, quando em algumas doenças de base esses achados são mais frequentes com líquido(22,23). Por outro lado, e embora pouco frequente quando comparado aos demais achados, a presença desses sinais é de risco para prejuízos pulmonares e deve sempre ser valorizada no contexto da conduta e intervenção.
O único achado da deglutição na ELA com resultado significante na comparação entre as consistências de alimento foi a presença de resíduos faríngeos, mais significativa no líquido espessado e no pastoso quando comparados com líquido ralo. A alta frequência de resíduos faríngeos nessa população já foi relatada em outros estudos e atribuída ao grave prejuízo do componente muscular presente nessa população, e que diminui a força de contração orofaríngea e o clearence faríngeo(10,24). Assim, por ser a ELA progressiva, sabe-se que a disfagia orofaríngea é decorrente da degeneração muscular que engloba também toda a musculatura orofaríngea, ocasionando fraqueza progressiva em estruturas pertencentes à deglutição e que alteradas ocasionam modificações na dinâmica da propulsão anteroposterior do bolo alimentar, reduzindo a elevação da base de língua e também a elevação laríngea. Tais mudanças acarretam um comprometimento progressivo da fase oral e faríngea da deglutição, ocasionando nessa população resíduos após a deglutição, penetração laríngea e aspiração traqueal(25,26).
Desse modo, embora as consistências pastosa e líquida engrossada possam ser consideradas as mais seguras em algumas outras doenças neurológicas, é fundamental lembrar que nessa amostra de ELA foi a que mais frequentemente produziu resíduos faríngeos e esse achado pode potencializar o risco de aspiração(27).
Um dos aspectos que merece reflexão neste estudo, e ajuste para novos desenhos de estudo, trata-se do fato de ser um estudo com amostra de conveniência. Nesta amostra, há heterogeneidade na população com ELA, tanto bulbar quanto esquelética, impossibilitando maior esclarecimento sobre em qual tipo ou estágio da ELA exatamente a frequência de cada achado da deglutição é mais prevalente. Sugerimos assim cautela na conduta clínica para que casos que possam se alimentar por via oral de forma eficiente para o componente nutricional e com segurança não tenham sua alimentação modificada na consistência dos alimentos porque alguns desses indivíduos, em determinado estágio e em determinada consistência de alimento, apresentaram riscos.
Dentre os achados videoendoscópicos da deglutição na ELA, somente o resíduo faríngeo teve maior frequência na dependência da consistência de alimento.