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Acidente vascular cerebral isquêmico perinatal: estudo retrospectivo de 5 anos em maternidade nível III

Acidente vascular cerebral isquêmico perinatal: estudo retrospectivo de 5 anos em maternidade nível III

Autores:

Virgínia Machado,
Sónia Pimentel,
Filomena Pinto,
José Nona

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015AO3056

INTRODUÇÃO

O acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico perinatal é um evento cerebrovascular que ocorre perto do momento do parto com evidência patológica ou imaginológica de infarto vascular focal.(1) Pode ser definido como um grupo de condições heterogêneas, com interrupção focal de fluxo sanguíneo cerebral, secundário à trombose venosa cerebral ou arterial, ou embolização, que ocorre entre as 20 semanas de vida fetal e os 28 dias de idade pós-natal, sendo confirmado por técnicas de neuroimagem ou estudos anatomopatológicos.(2)

Os dois subtipos de AVC isquêmico mais frequentemente diagnosticados no período perinatal são o arterial isquêmico (AVCi) e a trombose de seios venosos cerebrais (TSVC).(3)

A incidência relatada de AVC isquêmico neonatal agudo é de aproximadamente 1 por 4.000 a 5.000 recém-nascidos a termo.(4) A incidência de TSVC varia de 1 a 12 por 100.000 recém-nascidos,(5,6) mas algumas séries publicaram incidências de até quase 41 por 100 mil recém-nascidos.(7,8)

O AVC isquêmico perinatal é considerado uma condição subdiagnosticada, já que nem todos são sintomáticos durante o período neonatal. Esses casos, em que não existe evidência clínica que conduza a investigação por técnicas de imagem cerebral, podem não ser identificados no período neonatal.(9)

Avançadas técnicas de neuroimagem e a ampliação de sua disponibilidade têm melhorado o diagnóstico do AVC com importante impacto na prevalência.(10) Atualmente, existe um maior grau de suspeição do AVC perinatal, que é incluído no diagnóstico diferencial de recém-nascidos e lactentes com sintomas neurológicos.

Os recém-nascidos são particularmente suscetíveis a AVC em função da ativação perinatal dos mecanismos de coagulação.(1,11) Vários fatores de risco já foram associados ao AVC perinatal, como distúrbios maternos (infertilidade, pré-eclâmpsia, corioamnionite, vasculopatias placentárias e abuso de cocaína), condições fetais (restrição do crescimento, asfixia intrauterina, doenças cardíacas, infecções, anomalias vasculares congênitas, desidratação e parto traumático) e trombofilia.(12,13) Trombofilias hereditárias e adquiridas têm ganhado considerável atenção, enquanto fatores de risco para o AVC perinatal e, desse modo, seu rastreio deve ser considerado em todos os casos de AVC perinatal.(12) Os distúrbios pró-trombóticos incluem elevação das lipoproteínas (a), mutação do fator V de Leiden, hiper-homocisteinemia e deficiência de proteína C.(4) Acredita-se que a presença de múltiplos fatores de risco tenha um efeito cumulativo em termos de morbidade (especialmente as condições pró-trombóticas e a asfixia perinatal). Contudo, deve-se destacar que frequentemente não é possível identificar a etiologia do AVC perinatal.

Verifica-se um predomínio no sexo masculino, sendo tanto o AVCi como o TSVC mais frequentemente diagnosticados em meninos (proporção 1,5 meninos: 1 menina).(14,15)

O AVC perinatal é uma causa comum de alteração do desenvolvimento neurológico, e a principal causa de paralisia cerebral hemiplégica.(16) Entre as sequelas mais comuns, encontramos défices motores (taxas variam de 30 a 60%),(17-20) epilepsia (taxas estimadas variam de zero a 50%),(21) défice cognitivo (menos frequente que as sequelas motoras ou a epilepsia),(17,22) e as alterações do comportamento. Um estudo relatou défice cognitivo em 41% das crianças após AVC neonatal.(23) O AVC perinatal tem baixa mortalidade.(24)

Os autores pretenderam ainda, neste trabalho, compartilhar a sua experiência no âmbito do acidente vascular cerebral perinatal, uma vez que não existem muitos estudos epidemiológicos publicados e, de acordo com esta pesquisa, não encontramos na literatura portuguesa dados sobre essa condição.(25)

OBJETIVO

Avaliar incidência, apresentação clínica, presença de fatores de risco, métodos de diagnóstico imaginológicos e desfecho dos casos de acidente vascular cerebral perinatal em recém-nascidos a termo.

MÉTODOS

Revisão retrospectiva de todos os casos de AVC neonatal diagnosticados em recém-nascidos a termo, admitidos na unidade neonatal de uma maternidade de nível terciário, em Lisboa, de 1º de janeiro de 2007 a 31 de dezembro de 2011. Foram preservados a confidencialidade e o anonimato dos dados, e não houve nenhuma questão ética envolvida.

Como a maioria das investigações sobre AVC neonatal inclui apenas recém-nascidos a termo, para os fins deste estudo apenas esses neonatos foram levados em consideração.(12) Assim, os critérios de inclusão foram: recém-nascidos a termo, em nosso serviço (≥37 semanas de gestação ao nascimento, conforme avaliação por ultrassonografia fetal com 12 a 13 semanas de gestação), com o diagnóstico à alta hospitalar de AVC perinatal, estabelecido pela presença de área de enfarte (AVCi ou TSVC) na ultrassonografia de crânio ou na ressonância magnética cerebral.

Excluímos os recém-nascidos oriundos de outros serviços, neonatos com encefalopatia hipóxica/isquêmica, com critérios para hipotermia terapêutica (escore Apgar <5 aos 10 minutos, e/ou ressuscitação prolongada, e/ou acidose − pH<7,0 e/ou défice de base >16mmol/L, além de encefalopatia clínica moderada ou grave, até 6 horas de idade) e aqueles com diagnóstico posterior de erros inatos do metabolismo.

A coleta de dados incluiu dados demográficos (sexo, peso ao nascer e idade gestacional), aspectos perinatais (distúrbios na gestação, parto, escore de Apgar de 1 e 5 minutos e ressuscitação), história familiar de trombofilia e outros potenciais fatores de risco (cardiopatias e doenças agudas), apresentação clínica (idade e sintomas), procedimentos diagnósticos (laboratoriais, de imagens e estudos eletrofisiológicos), tratamentos e duração da internação hospitalar. Os desfechos foram avaliados por acompanhamento ambulatorial, em consultas multidisciplinares regulares pelos setores de pediatria do desenvolvimento, neuropediatria, fisiatria e oftalmologia. A análise do desenvolvimento foi realizada usando as Escalas de Desenvolvimento Infantil de Bayley.

O estudo para doenças pró-trombóticas incluiu rastreamento para distúrbios de coagulação (tempo de tromboplastina parcial ativada e tempo de protrombina), deficiência de proteínas C e S, anticorpos anticardiolipina, factor V de Leiden e mutações de metilenotetrahidrofolato redutase (MTHFR).

RESULTADOS

Incidência

Foi registrado em Portugal durante o período de 5 anos do estudo (2007 a 2011) um total de 504.814 nascidos vivos. Destes, 27.612 ocorreram em nosso centro (5,6%).

O AVC perinatal foi confirmado em 11 recém-nascidos (5 meninos, 6 meninas). Identificamos nove casos de AVCi e dois casos de TSVC. A incidência calculada foi, respectivamente, 1,6/5.000 e 7,2/100.000 nascimentos vivos.

Apresentação clínica

Oito dos 11 pacientes apresentaram sintomas do dano isquêmico, enquanto os outros 3 (casos 8, 9 e 11) não mostraram nenhuma manifestação clínica do evento agudo, e os diagnósticos foram feitos retrospectivamente. Esses pacientes tinham fatores de risco que levaram à avaliação por ultrassonografia: trombose arterial periférica (caso 8), desidratação hipernatrêmica grave (caso 9), baixo escore de Apgar e necessidade de manobras de ressuscitação (asfixia ao nascimento sem critérios para terapia hipotérmica - caso 11).

Os sintomas registrados com maior frequência foram convulsões em todos os pacientes sintomáticos (clônicas focais − 5/8 e clônicas generalizadas − 3/8), e apneia/baixos níveis de oximetria de pulso (4/8). Sintomas menos frequentes incluíram bradicardia (1/8) e alterações de tônus muscular (1/8).

A maioria dos recém-nascidos era sintomática nas primeiras 48 horas de vida (7/8), sendo três casos antes de 24 horas de vida e quatro casos entre 24 e 48 horas de vida. Dois pacientes apresentaram sintomas antes de 1 semana de vida e dois após esse período.

Fatores de risco

A maioria dos casos (8/11) tinha fatores de risco gestacionais, obstétricos e neonatais. Estes incluíram primiparidade (8/11), idade materna ≥35 anos (3/11), diabetes gestacional (1/11), corioamnionite (2/11), fluido amniótico com mecônio (2/11), parto instrumental (7/11), necessidade de manobras de ressuscitação (2/11), desidratação (1/11) e cateter umbilical (2/11) (Quadro 1).

Quadro 1 Dados demográficos dos pacientes e fatores de risco 

  Sexo IG (semanas) Fator de risco
IM Primiparidade Placenta/fluido amniótico Parto MR Escore de Apgar 1o/5o minuto Outro
1 F 38 38 Cesariana 10/10 Mutação MTHFR homozigótica
2 M 38 33 (+) Corioamnionite Mecônio Fórceps 8/10 Mutação MTHFR homozigótica
3 F 40 38 Eutócica 9/10
4 M 39 31 (+) Vácuo (+) 6/9 Mutação MTHFR heterozigótica
5 F 40 22 (+) Vácuo 8/10 Deficiência de proteína C
6 M 38 32 Cesariana 9/10 Diabete gestacional
7 F 38 30 (+) Cesariana 8/10 Mutação MTHFR heterozigótica
8 F 38 30 (+) Corioamnionite Mecônio Eutócica 8/10 Trombose arterial periférica / CUmb
9 F 39 28 (+) Eutócica 9/10 Desidratação
10 M 41 19 (+) Eutócica 8/8
11 M 37 37 (+) Fórceps (+) 2/4 CUmb

IG: idade gestacional; IM: idade materna; MR: manobras de ressuscitação; F: feminino; MTHFR: metilenotetrahidrofolato redutase; M: masculino; CUmb: cateter umbilical.

A triagem para doença pró-trombótica detectou anormalidades em cinco pacientes: deficiência de proteína C em um e mutação de MTHFR em quatro (dois homozigotos, dois heterozigotos). Em nove crianças, foi detectado mais de um fator de risco para AVC neonatal.

Técnicas de neuroimagem

Todos os pacientes com convulsões foram investigados por ultrassonografia de crânio (8/11). O diagnóstico ultrassonográfico de uma área de infarto foi feito de forma incidental em três pacientes, que foram avaliados por condições de risco neurológico (trombose arterial periférica, desidratação hipernatrêmica grave e asfixia no parto sem critérios para hipotermia terapêutica).

A ultrassonografia de crânio foi positiva na maioria dos pacientes (10/11, sensibilidade 91%). Um recém-nascido (caso 1) que apresentava ultrassonografia normal foi encaminhado para ressonância magnética de crânio por grande suspeita clínica de AVC. O diagnóstico de derrame foi confirmado por ressonância magnética de crânio em todos os pacientes.

O território vascular da artéria cerebral média estava afetado em todos os casos de AVCi, sendo a artéria esquerda em 7/9 e a direita em 2/9 pacientes. Quanto à TSVC, houve comprometimento dos seios lateral esquerdo (2/2) e longitudinal superior (1/2).

Dois pacientes apresentaram recorrência: um de TSVC (caso 11: trombose do seio lateral esquerdo recorreu no seio direito) e um de AVCi (caso 8: recorreu com TSVC com comprometimento dos seios lateral esquerdo e sigmoidal) (Quadro 2).

Quadro 2 Apresentação clínica, exames diagnósticos e seguimento dos pacientes 

  Diagnóstico
US de crânio RM EEG Território vascular Seguimento
Dias Convulsão Sintomas sistêmicos Idade (meses) Sequelas/idade ao início
1 2 Clônica generalizada Baixos níveis de oximetria de pulso Normal AVCi Normal ACM esquerda 6 Hemiparesia
2 2 Clônica focal Baixos níveis de oximetria de pulso Apneia Hiperecogenicidade temporoparietal esquerda AVCi ACM esquerda 48 Monoparesia (membro superior) (3M)
3 1 Clônica focal Baixos níveis de oximetria de pulso Hiperecogenicidade frontoparietal esquerda AVCi ACM esquerda 36
Apneia Bradicardia
4 1 Clônica generalizada Hiperecogenicidade frontoparietal esquerda AVCi ACM esquerda 48
5 9 Clônica generalizada Hiperecogenicidade frontoparietal esquerda AVCi Padrão surto-supressão ACM esquerda 27 Hemiparesia (0M) Epilepsia (6M) Sem linguagem
6 1 Clônica focal Baixos níveis de oximetria de pulso Hiperecogenicidade temporal esquerda AVCi Atividade temporal esquerda paroxística ACM esquerda
7 2 Clônica focal Hiperecogenicidade frontoparietal esquerda AVCi Normal ACM esquerda 12
8 3 Hiperecogenicidade temporoparietal direita AVCi Foco epiléptico no hemisfério direito ACM direita recorreu nos seios lateral esquerdo e sigmoidal 15 Hemiparesia (0M) Epilepsia (5M)
9 5 Hiperecogenicidade temporal direita AVCi ACM direita 18
10 2 Clônica focal Hipotonia Hiperecogenicidade subcortical TSVC Seios superior e esquerdo lateral 24
11 10 Hiperecogenicidade subcortical TSVC Seio lateral esquerdo recorreu no seio lateral direito 18

US: ultrassonografia; RM: ressonância magnética; EEG: eletroencefalograma; AVCi: acidente vascular cerebral isquêmico; ACM: artéria cerebral média; TSVC: trombose de seios venosos cerebrais.

O eletroencefalograma (EEG) foi realizado em cinco pacientes e estava alterado em três deles. Os resultados mostraram anormalidades focais (2/3) e um padrão de surto-supressão (1/3).

Tratamento

A maioria dos pacientes (8/11) foi tratada com anticonvulsantes. A maior parte das convulsões foi tratada com sucesso usando fenobarbital. Não foi preciso associar a outros anticonvulsantes.

O uso de medicação antitrombótica foi pouco frequente (2/11): o paciente com TSVC recorrente (caso 11) foi tratado com heparina de baixo peso molecular e o paciente com AVCi, TSVC e trombose arterial periférica (caso 8), com heparina não fracionada. Não houve complicações relacionadas à terapia antitrombótica. Tratamento antiplaquetário não foi dado a nenhum dos pacientes.

Desfecho

A duração média de estadia no hospital foi de 17 dias (faixa de 11 a 26 dias). Não houve nenhum óbito durante o período do estudo.

Dez pacientes foram acompanhados no ambulatório. O tempo médio de seguimento foi 2 anos, variando de 6 meses a 4 anos. O desenvolvimento neurológico foi anormal em quatro pacientes. Um paciente (caso 5) tinha uma doença de base (hemimegalencefalia) que pode ter sido a causa do AVC. Os outros seis pacientes não apresentaram mais convulsões e, no seguimento, não apresentaram comprometimento do desenvolvimento motor, cognitivo ou comportamental.

DISCUSSÃO

Este estudo descreveu a apresentação clínica e o seguimento de um pequeno grupo de recém-nascidos a termo, com AVC isquêmico perinatal, que nasceram em nosso centro.

Houve uma incidência discretamente maior de AVCi em nossa série em relação à literatura.

A apresentação clínica do AVC perinatal varia de sintomas inespecíficos a neurológicos óbvios, o que pode dificultar o diagnóstico. Em nossa série, convulsões foram a manifestação clínica mais comum em 72,7% dos pacientes, principalmente as clônicas focais, o que é compatível com dados publicados.(26) Como descrito na literatura, convulsões são comuns em associação com isquemia em crianças, especialmente recém-nascidos, e são, em geral, o achado clínico mais comum, que leva a investigações em neonatos.(13) Em alguns pacientes (27,2%), o evento foi clinicamente silencioso.

Até dois terços de nossos pacientes (63,6%) eram sintomáticos nas primeiras 48 horas de vida, que deve ser o período de maior atenção às manifestações de AVC.

Quando havia outros sinais e sintomas, estes eram frequentemente inespecíficos e discretos, incluindo alterações no tônus, letargia, apneia,(15) dificuldade para se alimentar, instabilidade de temperatura ou hemodinâmica(10,27). Por essa razão, para promover o reconhecimento e o diagnóstico precoces, devem-se sempre buscar, com cautela, outros sinais clínicos (em geral, mais discretos que convulsões neonatais), especialmente na presença de fatores de risco.(25)

Os métodos de diagnóstico por imagem para os casos suspeitos de AVC perinatal incluem ultrassonografia craniana, tomografia computadorizada e ressonância magnética cerebrais. O método mais acurado e confiável para detectar o AVC precocemente é a ressonância magnética, que não apresenta risco de radiação.(28) Este é, portanto, o exame de imagem de escolha para o diagnóstico de AVC perinatal.(29,30)

No nosso estudo, a avaliação por métodos de neuroimagem baseou-se na ultrassonografia craniana e na ressonância magnética cerebral. A ultrassonografia de crânio, por sua rápida execução e acessibilidade em nosso centro, foi o primeiro exame de imagem feito em todos os pacientes com suspeita de AVC. Apesar da literatura descrever a ultrassonografia de crânio como tendo baixa sensibilidade para o diagnóstico de AVC perinatal, na nossa série ela mostrou sensibilidade de 91%.(31,32) O diagnóstico foi estabelecido em todos os pacientes pela ressonância magnética cerebral.

O EEG padrão deve ser feito em caso de suspeita clínica de atividade convulsiva, já que é geralmente uma das primeiras ferramentas diagnósticas que está disponível para avaliação da função cerebral e pode ser realizado à beira do leito.(33,34)

No presente estudo, o monitoramento por EEG não foi uma prática comum e, embora isso seja questionável, é justificado pela disponibilidade limitada de equipamento em nossa unidade. O EEG padrão está reservado para convulsões graves, repetidas ou prolongadas. O EEG contínuo é relevante para o diagnóstico diferencial de AVC e encefalopatia hipóxico-isquêmica; todavia, não estava disponível na nossa unidade durante o período do estudo.

As lesões isquêmicas foram observadas mais frequentemente na distribuição da artéria cerebral média (81.8%) e, em especial, do lado esquerdo (63.6%), o que é compatível com os dados de literatura.(35) Considera-se que essa predominância de lesões do lado esquerdo seja devida a diferenças na vulnerabilidade e na maturação, ou à presença de assimetrias vasculares.(36) O hemisfério esquerdo também pode ser mais vulnerável a lesões embólicas em função de diferenças hemodinâmicas por persistência de canal arterial ou, pela via direta, envolvendo a artéria carótida comum esquerda.(23,36)

Acredita-se que o AVC perinatal tenha etiologia subjacente diversa, sendo que vários fatores de risco são frequentemente citados, embora apenas alguns estudos caso-controle os tenham investigado de forma sistemática.(29) Encontramos no nosso estudo pelo menos um fator de risco em todos os pacientes. Houve uma porcentagem significativa de partos instrumentais (63,6%), que sabidamente é um dos principais riscos para AVC neonatal.(37) Um número significativo de pacientes (45,5%) apresentou alterações pró-trombóticas, o que corrobora o fato de que estas possam ter uma influência considerável na etiologia do AVC perinatal.(12,38) É importante salientar que apesar de ter sido feita triagem para doenças pró-trombóticas em todos os pacientes, esta não foi idêntica em todos os casos. Portanto, a natureza retrospectiva deste estudo pode ter reduzido sua capacidade de identificar fatores de risco neonatais e a prevalência exata de trombofilias na nossa população.

Os fatores de riscos mais frequentemente identificados em nossa série incluíram tanto complicações gestacionais como do parto. Estes são, muitas vezes, associados a sofrimento fetal ou hipóxia, e foram citados como uma das possíveis causas de AVC neonatal, embora ainda haja a necessidade de estudos clínicos prospectivos de grande escala para estabelecer a etiologia do AVC neonatal.(39)

Vários pacientes (63,6%) tinham mais de um fator de risco, o que suporta a hipótese de esta ser uma condição multifatorial, com vários fatores de risco potenciais e cumulativos.(40)

O manejo e o tratamento do AVC isquêmico perinatal ainda precisam ser estabelecidos. O American College of Chest Physicians recomenda terapia de anticoagulação em recém-nascidos com um primeiro AVCi se houver evidência de uma fonte cardioembólica contínua documentada; e, nos casos de TSVC, na ausência de hemorragia intracraniana relevante.(41) Para os recém-nascidos com trombose arterial periférica, recomendam-se anticoagulação e remoção imediata do cateter.(41) A anticoagulação não foi frequente em nossa série: um caso de AVCi (porque o paciente também tinha trombose periférica) e um caso de recorrência de TSVC. Nos dois casos a terapia foi segura e nenhuma complicação foi relatada.

O uso frequente de anticonvulsantes era esperado, já que a maioria dos pacientes (72,7%) apresentou convulsões. Há uma falta de diretrizes a respeito da duração ótima do tratamento anticonvulsante. Em nossa série, ele foi mantido até a alta hospitalar.

A maioria dos pacientes (60%) não apresentou nenhuma sequela neurológica. Esse dado pode, contudo, ser enganador, devido ao curto período de seguimento. Se défices motores e epilepsia são geralmente aparentes no início da infância, outras alterações do desenvolvimento, relacionadas com funções cognitivas e comportamentais, podem levar mais tempo até serem evidentes.

CONCLUSÃO

A alta incidência de acidente vascular cerebral isquêmico perinatal e trombose de seios venosos cerebrais encontrada em nossa série reforça o fato de que estes permanecem como um grave problema do recém-nascido.

Embora muitos fatores de risco tenham sido encontrados em nossos pacientes, incluindo complicações da gestação e do parto, cremos que a natureza retrospectiva deste estudo e a pequena amostra de pacientes podem ter reduzido sua capacidade de encontrar significância preditiva para tais fatores.

A ultrassonografia de crânio é uma intervenção não invasiva e facilmente realizada para avaliação o acidente vascular cerebral, que provou ser uma ferramenta diagnóstica confiável no presente estudo.

Apesar do desfecho favorável na maioria dos nossos pacientes, acreditamos que um período de seguimento muito mais longo seja necessário para uma interpretação mais completa de seu desfecho neurológico.

Os resultados deste estudo refletem a realidade da nossa maternidade, que é semelhante a muitos outros serviços com recém-nascidos de baixo a médio risco para acidente vascular cerebral. Embora o nosso estudo tenha uma amostra de tamanho modesto e uma população heterogênea, a carência de estudos torna cada relato de grande valor quando se trata de compreender esta condição, ao identificar potenciais fatores de risco e melhorar seu manejo.

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