versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.3 São Paulo jul./set. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170053
A doença renal terminal (DRT), que pode ser tratada com diálise ou transplante, é uma problema global de saúde pública. Sua incidência se elevou nos últimos anos, onerando substancialmente os sistemas de atenção à saúde do mundo.1,2 Deve-se notar que a mortalidade de pacientes em diálise permanece elevada em comparação à da população geral, com cerca de metade dos pacientes indo a óbito por doenças cardiovasculares.3
No Brasil, por exemplo, segundo o Inquérito Brasileiro de Diálise Crônica de 2014, o número total estimado de pacientes em diálise era 100.397. As estimativas nacionais das taxas de prevalência e incidência de diálise chegaram a 499 e 170 pacientes por milhão da população, respectivamente. A taxa anual bruta de mortalidade foi 17,9%. Nos últimos três anos, o número absoluto de pacientes em diálise aumentou a taxas anuais de 3%.4
A presença de acidose metabólica e sua associação com mortalidade em pacientes em diálise foi assunto de várias publicações,5-8 como demonstrado na Tabela 1. A real extensão deste problema no Brasil é desconhecida, uma vez que em 1996 a agência reguladora dos procedimentos de diálise publicou uma portaria suspendendo a medição obrigatória de bicarbonato em pacientes em terapia renal substitutiva (TRS).9 As diretrizes públicas mais recentes recomendam que o bicarbonato seja medido a cada seis meses (estágio 4) ou trimestralmente (estágio 5), apenas em pacientes submetidos a tratamento não-dialítico,10 mantendo a medição deste parâmetro como não obrigatória para pacientes em TRS.
Tabela 1 Estudos selecionados em que foi avaliado o impacto da acidose metabólica sobre a mortalidade de pacientes em diálise
Delineamento do estudo | Efeitos sobre mortalidade (Sim/Não) |
Principais resultados | |
---|---|---|---|
Vashistha et al.5 | Observacional, retrospectivo, multicêntrico, n = 121.351 | Sim | Aumento de 15-35% no risco de mortalidade para pacientes com bicarbonato < 22mEq/L. |
(Banco de dados: DaVita) | |||
Bommer et al.7 | Observacional, prospectivo, multicêntrico, n = 7,140 | Sim | Elevação de até 48% no risco de mortalidade para pacientes com bicarbonato sérico pré-dialítico na sessão do meio de semana < 18mEq/L ou ≥ 27mEq/L. |
(Banco de dados: DOPPS I) | |||
Yamamoto et al.7 | Observacional, retrospectivo, multicêntrico, n = 15,132 | Não | Aumento de 36% no risco de mortalidade para pacientes com pH pré-dialítico > 7,40. Não foi identificada associação entre níveis séricos de bicarbonato antes ou após a diálise com mortalidade. |
(Banco de dados: Registro Japonês de Dados Renais) | |||
Tentori et al.8 | Observacional, prospectivo, multicêntrico, n = 17,031 | Sim | Aumento médio de 30% no risco de mortalidade de pacientes com bicarbonato sérico pré-dialítico ≤ 17mEq/L. |
(Banco de dados: DOPPS II) |
A acidose metabólica pode ser definida como uma enfermidade caracterizada pela elevação absoluta ou relativa da concentração corporal de íons de hidrogênio acompanhada da redução do bicarbonato sérico. O corpo humano adulto produz 1 mEq/kg de peso corporal de ácidos livres endógenos diariamente (na população pediátrica o valor chega a 2-3 mEq/kg de peso corporal).11 O equilíbrio ácido no corpo depende fundamentalmente da qualidade e quantidade de ácidos (principalmente derivados de proteínas) e bases (oriundas de frutas e vegetais) consumidos na dieta e do volume eliminado de ácidos.12 O ácido produzido pelo metabolismo é excretado principalmente por duas vias: os pulmões, responsáveis pela eliminação dos ácidos voláteis; e os rins, pelos ácidos não-voláteis.
Os ácidos endógenos produzidos são neutralizados pelo tamponamento corporal, que inclui substâncias como o bicarbonato, que é reabsorvido pelos glomérulos, assistindo na manutenção do equilíbrio ácido-base. A capacidade dos rins de excretar ácidos e reabsorver bicarbonato é reduzida quando a taxa de filtração glomerular (TFG) fica abaixo de 40-50 ml/min, ponto em que a instauração da acidose metabólica geralmente ocorre.13-15
A acidose metabólica pode ser deflagrada por três mecanismos principais: elevações na geração de ácidos, perda de bicarbonato e redução da excreção renal de ácidos. Em pacientes com DRT, o principal mecanismo envolvido é a redução da excreção renal de íons de hidrogênio.16
Na hemodiálise, os fatores que podem concebivelmente contribuir para a piora da acidose metabólica incluem baixo ganho de bicarbonato na diálise (causado por nível inadequado de bicarbonato no dialisato, programação inadequada da diálise ou absenteísmo), consumo elevado de proteínas ou perda gastrointestinal de bicarbonato.17,18
Os efeitos deletérios da acidose metabólica já se manifestam na fase pré-dialítica da doença renal crônica. Apesar de escapar aos objetivos da presente análise, vale observar que vários estudos colocam a acidose metabólica como um fator nefrotóxico associado à progressão da doença renal crônica.19-22 Acredita-se que o mecanismo envolva a geração intersticial aumentada de amônia (com a ativação da via do complemento), a produção aumentada local de endotelina e a ativação do SRAA. Estes fatores promoveriam a fibrose renal intersticial e a aceleração da perda de néfrons. Talvez mais importantes sejam os relatos da associação entre presença de acidose metabólica e mortalidade elevada, mesmo no estágio pré-dialítico da DRC.23 Os efeitos adversos da acidose metabólica crônica são resumidos na Figura 1.
As alterações minerais e ósseas que ocorrem na presença de acidose metabólica sugerem que a enfermidade atue como um tamponamento de prótons. Em consonância com esta observação, há reduções nos sódio e no potássio ósseo (indicando troca de prótons), no carbonato ósseo (sugerindo consumo do tampão) e elevação do cálcio sérico.24
Aumentos da calciúria também são observados sem elevações paralelas na absorção intestinal de cálcio, sugerindo que o tecido ósseo seja a fonte do cálcio excretado. Estudos in vitro indicam que durante a acidose metabólica aguda o efluxo inicial de cálcio ósseo é causado por dissolução físico-química, enquanto que após 24 a 48 horas ele é predominantemente mediado pelas células. Há elevação na concentração de prostaglandinas, estimulando a atividade dos osteoclastos e inibindo os osteoblastos.25 A acidose pode ainda contribuir para o distúrbio mineral e ósseo da doença renal crônica.26
Em populações pediátricas, a acidose metabólica crônica pode levar a retardo do crescimento. Este fenômeno ainda não é completamente compreendido, mas pode envolver a perturbação do eixo hormônio do crescimento/IGF-1, cujos níveis séricos são reduzidos, resultando na redução do anabolismo proteico.27,28
A acidose metabólica também foi associada a aumentos do catabolismo proteico e à consequente perda de massa muscular, que pode estar associada a elevações da morbimortalidade nos pacientes em hemodiálise.29-31 Neste contexto, o aumento do catabolismo proteico parece desempenhar um papel mais importante do que a redução da síntese de proteínas.32 O principal mecanismo subjacente à degradação muscular na acidose metabólica envolve a via da ubiquitina-proteassoma. Fisiologicamente, este sistema é a principal via degradadora de proteínas da musculatura esquelética. Na presença de acidose, ocorre a expressão aumentada de ubiquitina no RNAm, a elevação do número de subunidades de proteassoma e a regulação para cima do sistema, levando à exacerbação da degradação proteica.33-35
Outro fator que parece contribuir para a sarcopenia é o aumento da produção endógena de glicocorticoides em pacientes com acidose metabólica crônica.36 Os glicocorticoides se ligam à fosfatidilinositol 3-quinase, suprimindo a fosforilação da proteína Akt (essencial para a síntese de proteínas de sinalização intracelular).37 A redução das proteínas Akt fosforiladas leva à redução da síntese proteica e, consequentemente, à perda de massa muscular.
Ainda no mesmo contexto, a insulina exerce ação anabólica ao elevar o consumo de glicose por parte das células musculares e inibir a proteólise. Estudos recentes sugerem que a presença de acidose metabólica pode inibir os efeitos catabólicos da insulina, contribuindo assim para a redução da massa muscular dos pacientes com doença renal crônica. Esta resistência à insulina independe da gordura corporal e pode ser fator de risco para o desenvolvimento de diabetes mellitus tipo 2.38-40
A acidose metabólica afeta diretamente a função cardíaca. O mecanismo exato por meio do qual a acidose perturba o estado inotrópico do coração ainda é desconhecido. Reduções do pH para valores inferiores a 7,2 inibem o transportador da Na+/K+ ATPase e causam redução no potencial de ação dos cardiomiócitos, resultando em redução da força das contrações musculares e em insuficiência cardíaca.41
Outro mecanismo deflagrado pela acidose igualmente relacionado à insuficiência cardíaca está associado ao cálcio: os íons de hidrogênio competem com os de cálcio para se ligarem à troponina das células do miocárdio; na presença de altas concentrações de hidrogênio, um percentual menor de cálcio se liga à troponina, perturbando a interação entre actina e miosina e levando a reduções da contratilidade cardíaca.42
Outro evento hemodinâmico associado diretamente à acidose é a vasodilatação causada pela elevação dos níveis séricos de óxido nítrico.43 A vasodilatação induzida pelo óxido nítrico é exacerbada pela influência direta do baixo pH sobre a resistência vascular periférica e pela resposta vascular às catecolaminas.42
A acidose metabólica crônica está associada ao surgimento de inflamação sistêmica e a suas consequências deletérias para o corpo humano: anorexia, desnutrição, aterogênese acelerada e incidência aumentada de doenças cardiovasculares.3,44,45 Macrófagos em ambientes ácidos começam a produzir quantidades maiores de fator de necrose tumoral-α e interleucinas, que deflagram reações inflamatórias.46 Além disso, a insuficiência renal por si própria está associada à elevação nos níveis de citocinas circulantes, que também contribui para o desenvolvimento do processo inflamatório.47
A acidose metabólica crônica pode ainda ser o mecanismo deflagrador da maioria dos mecanismos subjacentes à síndrome MIA (desnutrição, inflamação e aterosclerose), conhecida por acometer pacientes em hemodiálise.44 Pacientes com acidose metabólica crônica exibem permeabilidade endotelial aumentada e desenvolvimento acelerado de aterosclerose. Necrópsias48 e estudos clínicos49 demonstraram que placas ateroscleróticas em artérias coronarianas ocorrem mais comumente em pacientes em hemodiálise comparados à população geral. Um estudo experimental identificou que coelhos acidóticos apresentavam permeabilidade endotelial aumentada43. Tal elevação na permeabilidade endotelial leva à retenção de colesterol LDL oxidado na íntima das artérias e pode contribuir para a progressão da aterosclerose.50
O sustentáculo do tratamento da acidose metabólica crônica em pacientes com doença renal terminal é a oferta de bicarbonato exógeno. O bicarbonato é normalmente é ofertado no dialisato durante as sessões de diálise e, caso necessário, por via oral. O alvo para o nível sérico de bicarbonato recomendado pelo KDOQI51 é de pelo menos 22 mEq/L imediatamente antes da sessão de hemodiálise, mas a recomendação não especifica se o número se refere à primeira sessão da semana ou à sessão do meio da semana. Uma revisão recente sobre esta questão,52 fundamentada em um amplo estudo observacional,6 comenta que a melhor sobrevida foi conseguida com bicarbonato antes da sessão do meio da semana entre 18 e 21 mEq/L.
A hemodiálise é atualmente a principal via de fornecimento de bicarbonato e controle da acidose. Sessenta e cinco por cento do bicarbonato no dialisato cruza a membrana em uma passagem pelo filtro. Este elevado percentual é responsável pela rápida elevação do bicarbonato sérico observada nas duas primeiras horas de diálise; durante o restante da sessão de hemodiálise, o bicarbonato se eleva apenas discretamente ou permanece estável. Ao final do tratamento a alcalinidade fica cerca de 4-7 mEq/L menor que o dialisato com bicarbonato. A causa provável para tal estabilização ao final da HD é a redução do gradiente de concentração de bicarbonato e, talvez, a elevação da produção de ácidos orgânicos por conta do rápido aumento da alcalinidade.53,54
Teoricamente, a prescrição de dialisato com bicarbonato deve ser individualizada segundo os níveis séricos de bicarbonato de cada paciente. Esta estratégia é adotada em alguns centros, particularmente aqueles localizados em países desenvolvidos,8 mas exige atenção mais personalizada da parte da equipe clínica e apresenta maiores dificuldades de aplicação enquanto procedimento de rotina. Com efeito, a realidade para a maioria dos centros de diálise é a prescrição padronizada daquilo que é considerado aceitável para a média da população de cada clínica. Contudo, considerando as diferenças nutricionais e o estado catabólico de cada paciente, é improvável que um único padrão seja capaz de adequadamente tratar todos os pacientes.
Atualmente, as limitações do tratamento dialítico no controle da acidose metabólica resultam em uma alta frequência deste distúrbio em pacientes com DRT. Possíveis estratégias para aprimorar o desempenho do tratamento dialítico no tocante ao controle da acidose metabólica incluem a elevação da concentração de bicarbonato no dialisato54,55 e sessões de diálise mais frequentes ou mais longas.56 Um processo de modelagem em que a concentração de bicarbonato no dialisato varia ao longo da sessão já foi testado, sem contudo apresentar benefícios claros em relação à hemodiálise tradicional.54,57
Há ampla variação nas concentrações de bicarbonato entre os países, com valores indo de 32,2 ± 2,3 mEq/L na Alemanha a 37,0 ± 2,6 mEq/L nos Estados Unidos.8 A elevação da concentração de bicarbonato no dialisato tem sido alvo de intensos debates como a principal forma de controlar a acidose em pacientes em hemodiálise de maneira fácil e acessível.
Entretanto, a adoção dessa prática ainda exige estudos mais conclusivos, uma vez que a alcalose metabólica resultante pode ser tão danosa quanto a acidose metabólica. Um estudo recente relatou associação entre aumento de 8% na mortalidade geral dos pacientes em diálise para cada elevação de 4 mEq/L na concentração de bicarbonato do dialisato.8 A melhor concentração de bicarbonato ainda não foi estabelecida.
Vários mecanismos podem estar imbricados na discutível elevação da mortalidade relacionada à alcalose metabólica durante ou após a diálise, tais como: redução da fração ionizada de cálcio e consequente redução da contratilidade miocárdica,58 hipocalemia,59 alterações da polarização ventricular,60,61 instabilidade hemodinâmica62,63 e parada cardiorrespiratória (Figura 2).64-66
Figura 2 Possíveis vias dos efeitos adversos presumidos da alcalose metabólica induzida pela diálise.
A suplementação com bicarbonato de sódio por via oral no período interdialítico pode também ser considerada de forma a individualizar a reposição de bicarbonato. No entanto, devemos levar em consideração que muitos desses pacientes usam regularmente uma quantidade substancial de medicamentos orais, o que pode prejudicar a adesão à prescrição. Devemos, ainda, estar alertas ao possível risco de sobrecarga de sódio advinda da suplementação.67,68
O tratamento adequado da acidose metabólica para pacientes em hemodiálise deve incluir, ainda, o controle dos fatores causadores, tais como hemodiálise inadequada e ingestão excessiva de proteínas. As ferramentas auxiliares aplicadas nesse contexto incluem: otimização da prescrição da diálise; acompanhamento para garantir a adesão à prescrição; e estímulos para reduzir o absenteísmo.
Apesar de o consumo excessivo de proteínas poder ser danoso ao agravar a acidose, manter uma nutrição adequada e evitar o catabolismo proteico são medidas de grande importância para os pacientes com DRT. Assim, uma ingestão de proteínas de cerca de 1,2g/kg/dia é necessária e a produção excessiva de ácidos pode ser compensada pelo aumento da oferta de bicarbonato em vez de por meio de restrições nutricionais.67-69
A acidose metabólica crônica está intimamente relacionada à doença renal crônica e à DRT. Sua presença em pacientes submetidos a hemodiálise foi associada a mortalidade.
Muito já foi discutido sobre a melhor estratégia para abordar o distúrbio ácido-base, uma vez que a alcalose metabólica durante e após a diálise, causada pela oferta aumentada de bicarbonato na hemodiálise, pode ser potencialmente prejudicial para o paciente.
Um valor de corte para o bicarbonato sérico pré-diálise que proporcione mortalidade mais baixa ainda não foi claramente estabelecido, mas parece estar entre 18 e 22 mEq/L. Da mesma forma, o valor mais eficaz para a concentração de bicarbonato no dialisato neste contexto ainda não está definido.
Os obstáculos ao estabelecimento de um padrão para o bicarbonato no dialisato provavelmente têm origem nas diferenças de perfil biofísico dos pacientes, que são os principais determinantes de suas necessidades de base. A suplementação oral permitiria uma personalização mais simples das exigências de cada indivíduo. Entretanto, esta prática enfrenta a dificuldade de se agregar a prescrição ao risco da retenção de sais e água.