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Ações Transmurais Inotrópicas e Antiarrítmicas da Ranolazina em um Modelo Celular da Síndrome do QT Longo Tipo 3

Ações Transmurais Inotrópicas e Antiarrítmicas da Ranolazina em um Modelo Celular da Síndrome do QT Longo Tipo 3

Autores:

Victor Martins Miranda,
Samuel Santos Beserra,
Danilo Roman Campos

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.4 São Paulo abr. 2020 Epub 29-Maio-2020

https://doi.org/10.36660/abc.20190220

Resumo

A Ranolazina (RANO), conhecida na clínica como Ranexa, é um fármaco que previne a arritmia cardíaca através da inibição da corrente de sódio tardia (INaT). Um gradiente de voltagem transmural do canal Nav1.5 encontra-se na parede ventricular esquerda do coração. Assim, investigamos os efeitos da RANO em cardiomiócitos saudáveis e em modelo celular da Síndrome do QT longo tipo 3 (SQTL tipo 3). Usamos células isoladas do endocárdio (ENDO) e do epicárdio (EPI) e um software de medição com detecção de bordas por vídeo e microscopia de fluorescência para monitorar os transientes de cálcio. A RANO (0,1, 1, 10 e 30 uM, a 25OC) em uma série de frequências de estimulação teve impacto pouco significativo sobre ambos os tipos de células, mas a RANO (30uM) a 35OC minimizou o encurtamento dos sarcômeros em ~21% para células do endocárdio. Em seguida, para simular a SQTL tipo 3, as células do ENDO e EPI foram expostas à toxina ATX-II da anêmona do mar, que aumenta a INaT. As arritmias celulares induzidas por ATX-II foram suprimidas com o uso da RANO (30 µM) a 35OC. Com base nesses resultados, podemos concluir que a RANO tem um impacto pouco significativo sobre o encurtamento dos sarcômeros de células saudáveis do ENDO e EPI. Além disso, ela suprime as arritmias induzidas por INaT para níveis semelhantes nas células do ENDO e EPI.

Palavras-Chave: Arritmias; Síndrome do QT Longo do Tipo 3; ATX-II; Ranolazina; Corrente Tardia de Sódio; Contração

Abstract

Ranolazine (RANO) prevents cardiac arrhythmia by blocking the late sodium current (INaL). A transmural gradient of Nav1.5 is found in the left ventricular wall of the heart. Thus, we investigated the effects of RANO in healthy cardiomyocytes and in a cellular model of type 3 long QT syndrome (LQT3). We used isolated endocardium (ENDO) and epicardium (EPI) cells and a video edge detection system and fluorescence microscopy to monitor calcium transients. RANO (0.1, 1, 10 and 30 uM, at 25oC) at a range of pacing frequencies showed a minor impact on both cell types, but RANO at 30uM and 35oC for ENDO cells attenuated sarcomere shortening by~21%. Next, to mimic LQT3, we exposed ENDO and EPI cells to anemone toxin II (ATX-II), which augments INaL. Cellular arrhythmias induced by ATX-II were abrogated by RANO (30 µM) at 35oC. Based on our results we can conclude that RANO has a minor impact on sarcomere shortening of healthy ENDO and EPI cells and it abrogates arrhythmias induced by INaLto a similar level in ENDO and EPI cells.

Key words: Arrhythmias; Type 3 Long QT Syndrome; ATX-II; Late Sodium current; Ranolazine; Contraction

Introdução

A arritmia nas doenças cardiovasculares é uma das principais causas de morte no mundo todo.1 A ação antiarrítmica da ranolazina é atribuída à diminuição do componente de inativação lenta da corrente cardíaca interna através do Nav1.5, conhecida como corrente de sódio tardia (INaT).2 Apesar dos avanços importantes na compreensão dos mecanismos celulares subjacentes à ação da RANO, a sua ação transmural nas células musculares do coração permanece incerta. Consequentemente, neste estudo, nossa hipótese é que a RANO desempenha uma ação transmural nas células saudáveis do endocárdio (ENDO) e epicárdio (EPI) estimuladas por região, bem como nas arritmias e perturbação do cálcio induzidas pela toxina de anêmona (ATX-II),3 que aumenta a INaT e simula vários aspectos da Síndrome do QT longo tipo 3 (SQTL tipo 3), uma doença relacionada ao aumento da INaT nas células do coração.2

Métodos

Animais

Foram usados ratos Wistar machos (160-250 g; com 5 a 7 semanas de vida) nos experimentos. Todos os procedimentos experimentais foram realizados conforme as diretrizes institucionais, e o estudo foi aprovado pelo Comitê de revisão ética local. Os cardiomiócitos foram isolados conforme descrito anteriormente.4

O encurtamento do sarcômero e o transiente de cálcio

Os experimentos foram conduzidos como descrito anteriormente pelo nosso grupo.5 As células foram perfundidas com RANO (Alomone, Israel) a 0,1, 1, 10, ou 30 µM a partir de uma solução stock de 10 mM. Os dados foram normalizados como a função de contração do sarcômero antes da exposição à RANO. Para acessar o efeito antiarrítmico da RANO após exposição ao ATX-II (6 nM) (Alomone, Israel), os tempos para 90% de relaxamento do sarcômero (T90R) e recaptação de cálcio (T90Ca2) foram registrados como índices arrítmicos. Adicionalmente, 10 mM de Tetrodotoxina (TTX) (Alomone, Israel) foi utilizado para confirmar que o fenótipo observado era de fato decorrente da INaT.

Análise estatística

Todos os resultados foram expressos como média ± erro padrão da média. Diferenças significativas foram determinadas usando o teste de T não pareado de duas amostras ou ANOVA de uma via para medidas repetidas, seguidos de análises post-hoc (Teste de Tukey). Valores de p < 0,05 foram considerados significativos. Os cardiomiócitos de pelo menos dois corações diferentes foram usados em cada experimento.

Resultados e Discussão

Estudos anteriores demonstraram que os cardiomiócitos saudáveis apresentam INaT.6 Além disso, um gradiente de corrente de sódio foi registrado na parede ventricular esquerda que, conforme vem sendo relatado, é maior nas células do ENDO no que nas células do EPI.7 Desse modo, levantamos a hipótese de que as células do ENDO apresentam maior INaT quando comparadas com as células do EPI. Uma vez que a INaT modula o [Ca2]i nos cardiomiócitos,8 a RANO seria capaz de minimizar a contração em ambos os grupos celulares, porém com maior potência nas células do ENDO e EPI. Para testar essas hipóteses, as células foram perfundidas a 25oC com RANO; Entretanto, a RANO não foi capaz de minimizar o encurtamento do sarcômero nos cardiomiócitos do ENDO e do EPI ( Figuras 1A e C ). Uma tendência semelhante foi observada quando os cardiomiócitos foram expostos à RANO (30 µM) e estimulados a 0,2 Hz. Quando as células do ENDO e EPI foram expostas à RANO (30 µM) e estimuladas a 0,2 Hz, usando uma solução de perfusão a 35oC, o encurtamento do sarcômero foi reduzido nas células do ENDO em ~21% (p < 0.05), mas não nas células do EPI ( Figuras 1B e D ). Desse modo, corroborando os achados anteriores, nossos resultados sugerem que as células saudáveis do ENDO de fato apresentam maior INaT do que as células do EPI. Entretanto, também é importante observar que a RANO (30 µM) também poderia bloquear a corrente de cálcio tipo L nos cardiomiócitos.9

Figura 1 Efeito Inotrópico da ranolazina (RANO) sobre o encurtamento do sarcômero dos cardiomiócitos do ENDO e EPI. Registros característicos de encurtamennto do sarcômero antes (preto (25ºC) e azul (35ºC)) e após (cinza claro (25ºC) e vermelho (35ºC)) exposição do cardiomiócito do ENDO (esquerda) e EPI (direita) à RANO ((A) 10 and (B) 30 µM). Efeito inotrópico da RANO (0,1, 1, e 10 µM) (C) e 30 µM (D) sobre o encurtamento do sarcômero (barras superiores); tempo normalizado de contração do sarcômero para 50% (T50C) (barras do meio) e; tempo normalizado de relaxamento do sarcômero para 50% (T50R) (barras inferiores). As barras tracejadas representam as células do EPI (n = 3–6 células/concentração). *p < 0,05, na comparação antes e depois de exposição à RANO. 

Para melhor compreensão do mecanismo subjacente ao encurtamento do sarcômero induzido por RANO, experimentos posteriores foram realizados a 35OC. Os cardiomiócitos foram carregados com Fura-2/AM para monitorar a oscilação de cálcio durante a contração celular, e as células foram expostas à ATX-II para aumentar a INaT e induzir um fenótipo de SQTL tipo 33 ( Figura 2 ). As células do ENDO ( Figuras 2A, B e C ) e do EPI ( Figuras 2D, E e F ) expostas ao ATX-II mostraram evidentes perturbações do cálcio e arritmias mecânicas simultâneas. A RANO (30 µM) minimizou expressivamente o fenótipo arrítmico induzido por ATX-II em ambos os grupos celulares para extensões similares. Para confirmar que o fenótipo arrítmico observado nos nossos experimentos foram realmente atribuídos à INaT, as células foram expostas ao ATX-II (6 nM) [ Figura 2A (iv) e Figura 2D (iv) ], após exposição a 10 µM de TTX e ATX-II (6 nM) [ Figura 2A (v) e Figura 2D (v) ]. Os resultados confirmaram que o fenótipo arrítmico observado foi decorrente do incremento da INaT. Apesar de as células do ENDO dos ratos ter apresentado maiores correntes de sódio em relação às células do EPI,7 , 10 o fenótipo arrítmico induzido por ATX-II e a extensão dos efeitos antiarrítmicos da Raneza foram semelhantes em ambos os grupos celulares.

Figura 2 Ação da ranolazina (RANO) nos cardiomiócitos do ENDO e EPI expostos ao ATX-II e estimulados a 0,2 Hz. Traços característicos de transientes de cálcio (traços superiores) e encurtamento dos sarcômeros dos cardiomiócitos (traços inferiores) após contato com solução de Tyrode (i), ATX-II (6 nM) (ii), ATX-II (6 nM) + RANO (30 µM) (iii), ATX-II (6 nM) (iv), e ATX-II (6 nM) + TTX (10 µM) (iv) nas células do ENDO (A) e EPI (D). Tempo para 90% de receptação de Ca2+ nas células do ENDO (n = 8 células) (B) e EPI (n = 6 células) (E). Tempo para 90% de relaxamento do sarcômero nas células do ENDO (C) e EPI (F). * p < 0,05, quando comparado com o grupo ATX-II. 

Curiosamente, o intervalo de concentração terapêutica da RANO é de 1–10 µM.11 A aparente discrepância no potencial da RANO pode ser explicada pelo fato de que o ATX-II nas doses de 1–10 nM induz maior INaT nos cardiomiócitos do que aquele observado nas doenças cardiovasculares.3 , 6

Conclusão

A RANO exerceu pouca influência sobre o encurtamento do sarcômero de cardiomiócitos saudáveis e suprimiu as arritmias induzidas por INaT a extensões semelhantes nas células do ENDO e EPI.

REFERÊNCIAS

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5. Santos MS, Oliveira ED, Santos-Miranda A, Cruz JS, Gondim ANS, Menezes-Filho JER, et al. Dissection of the effects of quercetin on mouse myocardium. Basic Clin Pharmacol Toxicol. 2017;120(6):550-9.
6. Iyer V, Roman-Campos D, Sampson KJ, Kang G, Fishman GI, Kass RS. Purkinje cells as sources of arrhythmias in long QT syndrome type 3. Sci Rep. 2015 Aug 20;5:13287.
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10. Honen BN, Saint DA: Heterogeneity of the properties of INa in epicardial and endocardial cells of rat ventricle. Clin Exp Pharmacol Physiol. 2002;29(3):161-6.
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