versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.44 no.6 São Paulo nov./dez. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562017000000464
A hiperidrose primária ou essencial é um distúrbio caracterizado por sudorese excessiva e incontrolável, na ausência de causa conhecida.1 Localizada principalmente nas axilas, palmas das mãos, plantas dos pés e face, a principal característica dessa doença é o intenso desconforto do paciente, comprometendo sua vida social, afetiva e profissional.2
O tratamento clínico pode ser tópico, elétrico ou sistêmico; todavia, na maioria dos casos, por não haver tratamentos capazes de resolver satisfatoriamente essa condição, os procedimentos cirúrgicos tornam-se necessários. Atualmente, a disponibilidade crescente da cirurgia torácica videoassistida contribui decisivamente para a atual afirmação da simpatectomia como o padrão ouro no tratamento definitivo dos casos graves de hiperidrose.3,4
É bem descrito na literatura que o controle autonômico cardiovascular é realizado pelos ramos simpático e parassimpático,5-7 e que nos níveis de T2, T3 e T4 estão os gânglios simpáticos responsáveis pelo controle cardíaco.8 Devido a esse fato, diversos estudos já investigaram os efeitos da simpatectomia sobre o sistema nervoso autônomo, encontrando alterações da função autonômica cardíaca após a intervenção cirúrgica.8-11 Todavia, tais evidências científicas apenas utilizaram como método de avaliação da função autonômica cardiovascular a variabilidade da frequência cardíaca (VFC), que, apesar de ser um método amplamente usado na literatura, não possui boa reprodutibilidade.
Partindo desse pressuposto, é importante destacar que a disfunção autonômica cardiovascular está associada a um risco aumentado de mortalidade, primariamente em decorrência de uma redução da atividade vagal.12-14 Dessa forma, investigar de forma isolada o comportamento do ramo parassimpático nesses pacientes parece ser útil do ponto de vista clínico, contribuindo inclusive para estratégias terapêuticas futuras em portadores de cardiopatias. Mediante o exposto, o objetivo do presente estudo foi investigar longitudinalmente o comportamento da atividade vagal cardíaca (AVC) por meio da FC de repouso e do índice vagal cardíaco (IVC) em indivíduos submetidos à simpatectomia.
Trata-se de um estudo de natureza descritiva, longitudinal, no qual foram avaliados 22 pacientes (13 mulheres), com média de idade de 22,5 ± 8,8 anos (variação: 12-45 anos), que não apresentavam doenças cardiovasculares previamente conhecidas e que, por vontade própria, buscaram atendimento médico para realizar a cirurgia de simpatectomia com o objetivo de reduzir a hiperidrose. Os participantes do estudo possuíam hiperidrose primária, com predomínio nas mãos e nos pés, seguido de axilas e face, apresentando diferentes intensidades e combinações. Foram excluídos tabagistas, pacientes com incapacidade de realizar o teste de exercício de 4 segundos (T4s), obesos (índice de massa corpórea > 30 kg/m2) e participantes em uso de medicações passíveis de interferência no sistema nervoso autônomo. Foram definidos como tabagistas aqueles que fumaram um ou mais cigarros nos 30 dias anteriores à pesquisa.
Os voluntários foram avaliados no período entre janeiro de 2010 e dezembro de 2014 em um hospital de ensino da cidade de Juiz de Fora (MG) em três momentos distintos: pré-operatório, 1 mês de pós-operatório e 4 anos após a cirurgia de simpatectomia. O presente estudo foi aprovado pelo comitê de ética local sob o parecer nº 1.324.807. Todos os voluntários leram e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido antes de realizar o protocolo.
A altura foi mensurada em centímetros por meio de um estadiômetro com precisão milimétrica (Sanny; American Medical do Brasil Ltda., São Bernardo do Campo, Brasil) e o peso corporal foi mensurado em kg usando uma balança de peso digital com precisão de 0,1 kg (Welmy, São Paulo, Brasil). Em seguida, foi aferida a pressão arterial em repouso.15 Nas três visitas, os voluntários foram submetidos à avaliação da AVC, que foi realizada por meio da análise da FC de repouso e do T4s, realizado em um cicloergômetro.
Inicialmente, o paciente foi posicionado em decúbito dorsal, com os braços estendidos lateralmente formando um ângulo de 70° com o hemitórax homolateral, confortavelmente apoiados em uma braçadeira customizada. Em seguida, o paciente foi submetido à anestesia venosa e intubação com tubo endotraqueal, considerando-se seu peso para a programação da ventilação mecânica. Durante todo o procedimento o paciente foi mantido em ventilação assistida, sendo utilizado 7 ml/kg de peso a uma frequência de 12 ciclos/min e FiO2 de 100%. O ato cirúrgico em todos os casos foi iniciado pelo lado direito para a padronização do procedimento, e a simpatectomia foi realizada nos níveis T4, T5 e T6. Em adendo, também foi registrado o tempo de apneia, que foi fornecido pelo capnógrafo como tempo de desconexão, sendo esse considerado o tempo do ato operatório, caracterizado desde a introdução até a retirada do trocarte único, guia do conjunto câmera de vídeo e eletrocautério. Caso a oximetria apresentasse valores de SpO2 < 90% em ar ambiente, o procedimento cirúrgico era interrompido, e o anestesiologista ventilava o paciente até que a oximetria apresentasse SpO2 > 98%.
A média da FC de repouso foi obtida por meio de um traçado eletrocardiográfico feito nas derivações CC5 ou CM5 utilizando o sistema PowerLab (PowerLab 4/26T e Lab Chart Pro 7 software; ADInstruments Pty Ltd., Bella Vista, Austrália) com precisão de 1 ms.
O T4s tem a finalidade de avaliar de forma isolada o ramo parassimpático do sistema nervoso autônomo nos primeiros 4 s de exercício realizado ao longo de uma apneia inspiratória máxima de 12 s. O teste consiste em pedalar o mais rápido possível em um cicloergômetro sem carga, do 5º ao 9º segundo, em uma apneia inspiratória máxima com duração de 12 s. O T4s quantifica a AVC por meio do IVC, que representa a aceleração da FC desencadeada reflexamente pela inibição vagal cardíaca. O voluntário segue a quatro comandos consecutivos dados pelo avaliador: no 1º, ele realiza uma inspiração máxima e rápida pela boca; no 2º, pedala o mais rápido possível; no 3º, para de pedalar bruscamente; e no 4º, ele realiza a expiração.16,17
O IVC, índice adimensional obtido pelo T4s, é obtido pelo quociente ou a razão entre a duração do intervalo RR do eletrocardiograma imediatamente antes ou o primeiro do exercício - aquele que for mais longo - e o intervalo RR mais curto durante o exercício, que é geralmente o último.
Cabe ressaltar ainda que, pelo fato de permitir a avaliação isolada da integridade do ramo parassimpático, como já citado anteriormente, o T4s foi utilizado no presente estudo porque não seria possível mensurar de forma precisa e não invasiva a AVC por meio de outros métodos de avaliação da função autonômica cardiovascular. Além disso, o T4s é um método fidedigno16 e validado farmacologicamente.18 Para o registro dos traçados eletrocardiográficos foi utilizado o mesmo sistema utilizado para a mensuração da FC de repouso.
Inicialmente foi testada a normalidade dos dados pelo teste de Shapiro-Wilk. Após verificarmos a normalidade, utilizamos o teste t de Student pareado e one-way ANOVA para as variáveis da função autonômica. Foi adotado um nível de significância de 5%. Foi utilizado o software estatístico GraphPad, versão 5.01 (GraphPad Inc., San Diego, CA, EUA) para o tratamento dos dados.
A simpatectomia foi realizada em 22 pacientes (13 mulheres), com média de idade de 22,5 ± 8,8 anos (variação: 12-45 anos) para o tratamento da hiperidrose primária; contudo, apenas 12 pacientes (7 mulheres), com média de idade de 25,6 ± 8,2 anos, retornaram após 4 anos de cirurgia. As características demográficas da amostra estão apresentadas na Tabela 1.
Tabela 1 Características demográficas da amostra.a
Características | Pré-operatório | Um mês após a cirurgia | Quatro anos após a cirurgia |
---|---|---|---|
(N = 22) | (N = 22) | (n = 12) | |
Idade | 22,5 ± 8,8 | 22,5 ± 8,8 | 25,6 ± 8,2 |
Peso, kg | 62,7 ± 13,2 | 62,6 ± 13,3 | 65,0 ± 11,5 |
Altura, m | 1,7 ± 0,1 | 1,7 ± 0,1 | 1,7 ± 0,1 |
IMC, kg/m² | 22,4 ± 2,9 | 22,4 ± 2,9 | 22,8 ± 2,6 |
PAS, mmHg | 113,5 ± 12,4 | 111,8 ± 10,2 | 117,0 ± 9,2 |
PAD, mmHg | 74,6 ± 9,9 | 75,4 ± 9,2 | 75,5 ± 8,5 |
IMC: índice de massa corpórea; PAS: pressão arterial sistólica; e PAD: pressão arterial diastólica. aValores expressos em média ± dp.
A análise da média de FC de repouso ± erro padrão (ep), realizada através de eletrocardiograma 20 min antes da realização do T4s, apresentou uma redução significativa entre a avaliação pré-operatória e aquela 1 mês após a cirurgia (73,1 ± 1,6 bpm vs. 69,7 ± 1,2 bpm; p = 0,01). Após 4 anos de cirurgia, a média da FC de repouso ± ep foi de 72,1 ± 1,7 bpm (p = 0,31). Os valores de FC após 4 anos de cirurgia tenderam a retornar aos valores do pré-operatório. Esses resultados podem ser observados na Figura 1.
Figura 1 FC de repouso no pré-operatório, um mês após a cirurgia e quatro anos após a cirurgia. *p = 0,01.
As médias ± ep do IVC, que reflete isoladamente a magnitude da modulação parassimpática, avaliado pelo T4s, apresentaram uma diferença significativa entre os momentos pré-operatório e 1 mês após a cirurgia (1,44 ± 0,04 vs.1,53 ± 0,03; p = 0,02), tendendo a retornar próximo aos valores do pré-operatório após 4 anos da cirurgia (p = 0,10; Figura 2).
A hiperidrose é um grave problema social que afeta a qualidade de vida, a autoconfiança e o caráter dos indivíduos acometidos. O tratamento cirúrgico da hiperidrose primária tem por objetivo reduzir tais sintomas por meio de ablações realizadas nos gânglios do tronco simpático.19 No entanto, complicações do ato cirúrgico, como sudorese compensatória, são frequentes e nem sempre evitáveis. Por esse motivo, a ablação foi realizada nos níveis T4, T5 e T6, já que esses níveis apresentam menores índices de sudorese compensatória.4
É importante destacar que as fibras simpáticas que inervam o coração, pulmões e outras vísceras torácicas também podem ser afetadas uma vez que estão presentes ao longo desse mesmo trajeto, sendo, desta forma, inevitável do ponto de vista teórico que possíveis alterações autonômicas, principalmente no nível do sistema nervoso autônomo simpático, ocorram resultantes desse tipo de intervenção cirúrgica.20
É esperado que alterações do ramo simpático cardíaco aconteçam após a simpatectomia21; entretanto, pouco se sabe sobre o comportamento da AVC após tal procedimento. Em comparação com a condição pré-operatória, encontramos em nossos achados diferenças significativas na FC de repouso e no IVC, evidenciando um aumento da AVC 1 mês após a cirurgia. Tal fato corrobora os achados de Cruz et al.,22 que, após realizarem a análise de VFC através de Holter de 24 h após ganglionectomia no nível de T2-T3, verificaram um aumento do componente de alta frequência (AF) em unidades normalizadas, uma redução do componente de baixa frequência (BF) em unidades normalizadas e uma diminuição da razão BF/AF duas semanas após o procedimento cirúrgico.
Schmidt et al.23 acompanharam de forma longitudinal indivíduos que realizaram simpatectomia, analisando VFC e sensibilidade do barorreflexo em três momentos (pré-operatório, 6 meses e 12 meses após a cirurgia), pareados com um grupo controle. Após 12 meses de intervenção, os indivíduos com hiperidrose apresentaram diferenças detectáveis na VFC quando comparados com os controles correspondentes, os quais subsequentemente foram restaurados para valores relativamente normais, sugerindo que a simpatectomia resultou em redução da atividade simpática e em aumento do componente parassimpático cardíaco, contudo sem alterações significativas na sensibilidade barorreflexa.
Em contraste aos nossos achados, que sugerem um aumento significativo de predomínio de atividade parassimpática 1 mês após a cirurgia, Wiklund et al.8 observaram logo após a simpatectomia, através de VFC, uma redução do componente BF, mas sem aumento significativo do componente AF, verificando, após 6 meses de seguimento, que o poder de BF permaneceu a um nível inferior, enquanto o poder de AF foi reduzido, retornando aos valores basais antes da intervenção cirúrgica. Os autores chegaram à conclusão de que a simpatectomia resultou em uma mudança simpatovagal inicial com predomínio parassimpático, sendo esse restaurado em uma base de longo prazo.
Senard et al.24 também não detectaram diferenças significativas na BF ou AF, ambas em unidades normalizadas, entre uma amostra de 19 portadores de hiperidrose pareados por idade com 20 indivíduos controle saudáveis durante a avaliação da VFC, assim como tampouco verificaram diferenças nos mesmos índices de domínio da frequência obtidos pelo método de VFC entre pacientes portadores de hiperidrose comparados a seus pares saudáveis.10,24 Esses dados divergem do que encontramos, muito provavelmente devido à natureza fisiológica dos testes utilizados, uma vez que, em nosso estudo, utilizamos o T4s para avaliar o ramo parassimpático.
Em adendo, acreditamos que o fato de utilizarmos em nosso estudo um teste validado18 e fidedigno16 para a mensuração da AVC, expressa pelo IVC, que é uma variável adimensional que reflete a retirada vagal induzida pelo exercício súbito, seja responsável por demonstrar o predomínio de atividade parassimpática cardíaca após a cirurgia. Além disso, grande parte dos estudos pertinentes à temática utiliza o método de VFC, que, apesar de ser um método para a avaliação da modulação autonômica cardíaca, amplamente utilizado na literatura científica, possui baixa reprodutibilidade.17,25-27 Todavia, o método de VFC28 não foi utilizado em nosso estudo pelo fato de nossa investigação estar pautada única e exclusivamente na avaliação do ramo parassimpático cardíaco.
Em síntese, pode-se concluir que na fase inicial, em especial 1 mês após a simpatectomia, ocorreu um predomínio da atuação do ramo parassimpático nos indivíduos avaliados. Contudo, em longo prazo, os valores médios de FC de repouso mantiveram-se próximos aos valores de FC no pré-operatório, sugerindo que houve uma adaptação fisiológica 4 anos após a cirurgia.