versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.29 no.5 São Paulo 2017 Epub 14-Ago-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172016199
O comportamento abusivo é envolvido em muitos problemas de saúde, tais como consumo de cigarro(1), consumo de substâncias psicoativas, tais como uso do álcool(2), à obesidade, a não adesão à prática de exercício físico(3), a comportamentos sexuais de risco(4), entre outros. Na área da voz humana, o comportamento também pode ter maior ou menor participação na gênese e/ou manutenção da maioria dos distúrbios da voz. Entende-se que o uso da voz tem um papel mais relevante nas disfonias comportamentais, casos em que os pacientes apresentam dificuldades vocais relacionadas a comportamentos abusivos e/ou ajustes inadequados do trato vocal.
Assim, é importante conhecer cada vez mais as respostas cognitivas e características comportamentais dos pacientes, como a aprendizagem associativa, motivação e regulamento de emoção, que pode estar atrelada à gênese e manutenção de disfonia, sobretudo as comportamentais.
Relacionado a esse fato, destaca-se a autorregulação que é uma função executiva gerenciada pelo córtex pré-frontal do lobo frontal do cérebro, essencial para manter o indivíduo ativo no processo para alcançar os seus objetivos. Acredita-se que é um controle responsável por características que o distinguem de outros animais, como autoconsciência, capacidade de planejamento complexo e de resolução de problemas. É um fenômeno complexo que envolve o comportamento (ativação, monitorização, inibição, preservação e adaptação), emoções e estratégias cognitivas para alcançar objetivos desejados(5).
Uma das formas de avaliar a autorregulação é por meio de tarefas/testes para avaliar as funções executivas(6) ou por meio de instrumentos de autoavaliação, a fim de verificar a percepção do próprio respondente sob a capacidade de se autorregular. Existem algumas propostas de avaliação do efeito da autorregulação em resultados de tratamento, de modo particular com enfoque na autodeterminação(7).
O Self-Regulation Questionnaire (SRQ)(8), em sua formulação original em inglês, foi construído a partir do modelo dos sete passos da autorregulação que envolve (1) receber informações relevantes; (2) avaliar as informações e compará-las com as normas; (3) provocar mudança; (4) procurar opções; (5) formular um plano; (6) executar o plano; e (7) avaliar a eficácia do plano, isto é, envolve de forma geral todos os princípios da autorregulação. Posteriormente, realizaram-se estudos para verificar a estrutura e a consistência interna do SRQ, a partir de uma análise fatorial, o que resultou na sua versão reduzida, o chamado Short Self-Regulation Questionnaire (SSRQ), que contém 31 itens, com correlação forte com o SRQ(9,10).
Este instrumento foi utilizado para verificar a relação entre autorregulação e diversas questões cognitivas e comportamentais, como consumo de drogas e outras substâncias psicoativas(11,12), distúrbio de aprendizagem(13); adesão ao tratamento(14), entre outros.
Particularmente quanto ao comportamento vocal, a aquisição e generalização de novos comportamentos vocais exigem diretamente a autorregulação, o que pode estar relacionado aos ganhos/modificações decorrentes da terapia de voz(6).
É importante verificar o papel da autorregulação na terapia de voz e o quanto ela pode interferir em seus resultados(15). Deve-se verificar o impacto dos fatores cognitivos e o quanto eles estão envolvidos nas mudanças pretendidas. A autorregulação tem implicações no aprendizado e generalização de novas habilidades, com importância também na manutenção dos comportamentos adquiridos ao longo do tempo, reforçando, a partir disso, a necessidade de utilizar estratégias para melhorar a autorregulação na terapia de voz(15).
Conseguir mapear a autorregulação no processo terapêutico pode ser importante para caracterizar melhor o quadro, contribuir no planejamento da terapia e selecionar estratégias para direcionamento prático do paciente, o que irá favorecer ganhos positivos. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi apresentar a versão traduzida e adaptada linguística e culturalmente para o português brasileiro do Short Self-Regulation Questionnaire (SSRQ), bem como verificar a sua aplicabilidade para pacientes com e sem disfonia.
É importante mencionar que o SSRQ foi traduzido, adaptado e até validado para outras línguas, porém se desconhece procedimentos similares a esses na língua portuguesa brasileira. O processo realizado no artigo em questão pode servir tanto para aplicação em indivíduos disfônicos, como para a aplicação do instrumento em territórios que utilize o português brasileiro a fim de verificar a autorregulação vinculada a outro tipo de comportamento, seja ele aditivo ou não.
Esta pesquisa é multicêntrica, desenvolvida pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Seguiu o rigor ético, de acordo com os preceitos da resolução 466/12 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa de ambas as instituições de ensino superior, pareceres nº 811.219/14 UNIFESP e nº 906.676/14 UFPB.
O instrumento Short Self-Regulation Questionnaire (SSRQ)(9) foi traduzido e adaptado culturalmente para o português brasileiro por duas fonoaudiólogas fluentes na língua inglesa que conheciam o objetivo da pesquisa. Posteriormente, foram realizados ajustes, por consenso, para a versão final ficar com uma linguagem mais acessível. Essa versão em português foi retrotraduzida por uma terceira fonoaudióloga, fluente em inglês, com experiência em estudos de validação. Essa versão em português foi retrotraduzida por uma terceira fonoaudióloga com larga experiência que não participou da etapa anterior e não conhecia o instrumento em questão. A tradução e a retrotradução foram comparadas entre si e ao instrumento original. Posteriormente, cinco fonoaudiólogas analisaram e chegaram a um consenso para mudanças necessárias. Dessa forma, chegou-se assim a uma versão final do Questionário Reduzido de Autorregulação (QRAR). A abordagem teórica seguida para essa tradução e equivalência linguística e cultural foi de acordo com a orientação do Scientific Advisory Committee of Medical Outcome Trust.
Na sequência, foi realizada a equivalência cultural com aplicação desta versão do Questionário Reduzido de Autorregulação (QRAR) para 45 indivíduos, sendo 25 disfônicos e 20 sem disfonia, com média de idade de 40,3 (±5,7) anos. Os com disfonia foram escolhidos de forma aleatória no Laboratório Integrado de Estudos da Voz (LIEV) da UFPB e os sem disfonia eram acompanhantes de pacientes que frequentavam a clínica escola de Fonoaudiologia da mesma instituição. Seguiu-se como critério de elegibilidade ser adulto, de ambos os gêneros, sem a presença de distúrbios neurológicos, cognitivos e/ou psiquiátricos, além de analfabetismo para que não dificultasse a aplicação do instrumento. Os participantes com disfonia tinham a voz desviada a partir da avaliação perceptivoauditiva realizada por fonoaudióloga especialista em voz e laudo otorrinolaringológico compatível à disfonia comportamental (lesão na porção membranosa da prega vocal, fendas glóticas sem origem neurológica/orgânica ou ausência de lesão laríngea).
Os voluntários foram informados sobre os objetivos da pesquisa e, caso não concordassem, poderiam interromper sua participação. Ao aceitarem seguir na pesquisa, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e responderam ao Questionário Reduzido de Autorregulação (QRAR). O instrumento foi aplicado oralmente por um pesquisador, sem interferência de escolha das respostas ou interpretação dos itens. Cada item continha a possibilidade de resposta “Não se aplica”, que poderiam ser consideradas inválidas para essa cultura. Não houve nenhuma marcação da opção “não se aplica” para nenhum dos itens do questionário, assim, todas as questões do protocolo foram mantidas.
Essa aplicação ocorreu para a identificação de questões não compreendidas ou não apropriadas para a população. Todos os itens foram respondidos por todos os participantes. Assim, o instrumento foi considerado aplicável, pois todos os respondentes público-alvo não tiveram dificuldade nas respostas e não consideraram os itens do QRAR estranhos ou de difícil compreensão.
O Questionário Reduzido de Autorregulação (QRAR) é uma versão traduzida e adaptada linguística e culturalmente para o português brasileiro do Short Self-Regulation Questionnaire (SSRQ)(9). É um instrumento com 31 itens, com a finalidade de obter um índice total da capacidade de autorregulação individual, ou seja, capacidade de planejar, orientar e monitorar o comportamento de forma flexível diante das circunstâncias de mudança (Anexo A).
Cada item tem uma gradação por meio de uma escala de Likert que varia de 1 a 5, em que 1 equivale a discordo totalmente, 2 a discordo, 3 a Incerto(a), 4 a concordo e 5 a concordo totalmente. A pontuação varia de 29 à pontuação máxima de 145 pontos. O protocolo oferece um escore total e duas dimensões: estabelecimento de objetivos e controle de impulsos. Pode-se calcular a pontuação total e/ou as duas dimensões. Os itens 1, 5, 8, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 25, 26 pertencem à dimensão “estabelecimento de objetivos” e os itens 2, 3, 4, 6, 7, 9, 10, 11, 13, 22, 23, 24, 27, 28, 29 à dimensão “controle de impulsos”. É realizada uma soma simples com todos os itens. Deve-se ater que os itens 2, 3, 4, 6, 7, 9, 10, 11, 16, 19, 22, 23 e 27 devem ser calculados em ordem invertida. Os itens 30 e 31 não são acrescidos ao somatório nem no cálculo das dimensões isoladas e nem no escore total, servem apenas para confiabilidade interna do instrumento.
O Self-Regulation Questionnaire (SRQ) é um instrumento com 63 itens que tem como objetivo específico mensurar a capacidade generalizada para regular o comportamento de modo a alcançar resultados futuros desejados(8). Estudos sobre o fator de estrutura e a consistência interna do SRQ forneceram evidências científicas suficientes para que esse instrumento tivesse sua validade convergente e discriminante confirmadas(9,10). A partir disso, realizou-se uma análise fatorial que originou a versão reduzida Short Self-Regulation Questionnaire (SSRQ), com 31 itens, com correlação forte com o SRQ(9,10).
Existem estudos de validação e análise fatorial desse instrumento em outras línguas, como o português de Portugal e o espanhol da Espanha, inclusive com o objetivo de ver a sensibilidade e especificidade deste questionário para discriminar outros fenômenos, como o comportamento aditivo(11) e distúrbios de aprendizagem(14). Dessa forma, acredita-se que a versão aqui traduzida e adaptada linguística e culturalmente para o português brasileiro possa ser utilizada não só para pacientes disfônicos, mas também para investigar a autorregulação de outros grupos populacionais com características distintas.
Além da associação entre fenômenos cognitivos, comportamentais e autorregulação, verificou-se também que a variação nos níveis de bem-estar psicológico influencia a capacidade de autorregulação, ou seja, há uma relação muito forte entre capacidade de autorregulação e as dimensões de propósito na vida e no domínio ambiental(14). O SSRQ também se mostrou sensível para indicar a efetividade do tratamento após o treinamento da autorregulação.
O comportamento é um tema bastante estudado pela Neurociência. Muito se deve aos dados alarmantes da sociedade moderna, em que, aproximadamente, 40% da mortalidade nos Estados Unidos está relacionada a fatores sociais e comportamentais, como dieta alimentar, estilo de vida e consumo de cigarro. A literatura relata que o cessar desses comportamentos está vinculado aos fatores de autocontrole(1) e de autorregulação(11,12).
O comportamento vocal é fundamental para a gênese e/ou manutenção da maioria dos distúrbios de voz, particularmente nos casos de disfonia comportamental. A disfonia comportamental, que em alguns estudos pode ser sinônimo de disfonia funcional, é o distúrbio de voz na ausência ou presença de uma lesão laríngea, resultante do uso indevido da voz, como comportamentos abusivos e ajustes inadequados. Neste enfoque, a terapia de voz exige interesse, esforço e atenção dos pacientes, a fim de tomar decisões nas variadas situações de comunicação e colocar em prática os novos comportamentos vocais aprendidos de forma consciente. Dito isso, é lógico propor que o fonoaudiólogo insira elementos para favorecer o processo de autorregulação na terapia(15).
Conhecer os fatores de autorregulação do paciente com distúrbio de voz durante a avaliação pode ser importante para beneficiar o planejamento da terapia, direcionamentos práticos no cotidiano do paciente, além de generalização e manutenção de ganhos nas tarefas/técnicas da terapia de voz(15). Assim, é de suma importância lançar mão de instrumentos sensíveis para avaliar a autorregulação durante o processo avaliativo, a fim de poder traçar metas direcionadas e estabelecer os objetivos terapêuticos do paciente. O QRAR mostrou-se uma alternativa bastante interessante para esse propósito. A versão em português brasileiro mostrou-se de fácil aplicação e de interpretação de resultados.
Apresentou-se a versão traduzida e adaptada linguística e culturalmente para o português brasileiro do Short Self-Regulation Questionnaire (SSRQ), denominada Questionário Reduzido de Autorregulação (QRAR). Verificou-se que indivíduos com e sem disfonia conseguiram responder ao questionário com êxito.