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Adaptação transcultural do instrumento Thirst Distress Scale (TDS) para o português brasileiro e propriedades psicométricas em pacientes em hemodiálise

Adaptação transcultural do instrumento Thirst Distress Scale (TDS) para o português brasileiro e propriedades psicométricas em pacientes em hemodiálise

Autores:

Clara Sandra de Araujo Sugizaki,
Clarice Carneiro Braga,
Ana Tereza Vaz de Souza Freitas,
Maria do Rosário Gondim Peixoto

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 13-Mar-2020

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0151

Introdução

A sede é um desejo por líquidos que não pode ser ignorado. É o sintoma limiar que indica um desequilíbrio de fluidos corporais advindo da desidratação ou de um aumento na concentração de solutos no plasma.1 Teoricamente, um aumento na osmolalidade de apenas 1% pode estimular a sensação de sede.2 Em algumas Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT), o sintoma de sede é recorrente, como, por exemplo, diabetes mellitus,3 insuficiência cardíaca,4 alguns tipos de câncer5 e doença renal crônica (DRC) no estágio final.6

A DRC é considerada um problema de saúde pública mundial. No Brasil, existe uma estimativa de que até 6 milhões de pessoas tenham alguma disfunção renal,7 e que mais de 133 mil estejam no estágio final.8 Desses 133 mil pacientes, mais de 90% utilizam a hemodiálise (HD) como terapia renal substitutiva.8 A restrição de líquidos está entre as maiores dificuldades relatadas para a realização do tratamento hemodialítico porque estimula o sintoma de sede, e essa é uma condição que gera angústia.9,10

A angústia é definida como grau de sofrimento ou incômodo por algum sintoma.6 A angústia resultante de sede em pacientes em HD é bastante frequente, visto que, além da restrição de líquidos,11 há ainda o aumento da osmolalidade no plasma, secundária à retenção de sódio no período interdialítico que influencia sem interrupção o estímulo da sede.12 Também deve ser considerado como gatilho um possível estado hipotensivo e hipovolêmico imediatamente após a sessão de HD.13 Dessa forma, esse paciente se vê constantemente com sede, e a impossibilidade de ingerir líquidos gera angústia e sofrimento, além de afetar diretamente a qualidade de vida.9,10

Apesar do seu significado subjetivo, já existem instrumentos que permitem realizar diagnóstico e avaliação da sede nas suas dimensões de intensidade (Escala Visual Analógica - EVA),14 frequência (Dialysis Thirst Inventory - DTI)15 e angústia ou sofrimento (Thirst Distress Scale - TDS)16,17 em pacientes em HD. A TDS é o único entre eles que já foi adaptado e validado em outros países, tais como Turquia,18 Japão,19 Suécia,19 Holanda19 e Itália.20 Trata-se de uma escala com seis itens. Para cada item há uma escala Likert de cinco pontos (em que 0 = discordo totalmente e 5 = concordo totalmente). O resultado é um score geral que varia de 6 a 30. O resultado pode ser interpretado como sede leve (score < 10), moderada (score entre 10 e 18) e grave (score > 18). No estudo original, foi respondida por meio de entrevista com pesquisador. No entanto, também pode ser autoaplicada, já que é uma ferramenta de fácil e rápida aplicação, boa confiabilidade e adequada consistência interna.16

Atualmente, não há um instrumento validado para o português que permita a avaliação da angústia resultante de sede. A necessidade de um questionário validado para o idioma justifica-se pela dificuldade de dimensionar o fenômeno no ambiente clínico21 e pela sua importância para a população em HD, já que se relaciona ao manejo da restrição hídrica e, consequentemente, ao ganho de peso interdialítico.6,15 Este trabalho propõe a adaptação transcultural da escala TDS para o português brasileiro e o estudo de suas propriedades psicométricas em pacientes em HD.

Métodos

Estudo transversal, de equivalência semântica e validação da escala de angústia de sede (Thirst Distress Scale) para o português brasileiro. A amostra foi composta por 126 pacientes. Esse tamanho amostral está dentro do que é utilizado para estudos de validação.23-26 A coleta foi realizada nos turnos matutino, vespertino e noturno, durante as sessões de HD. Foi aplicado um questionário padronizado que continha dados de identificação, etiologia da DRC, tempo de HD, KT/V (marcador da qualidade de diálise), presença de comorbidades, índice de massa corporal (IMC), ganho de peso interdialítico (indicador do status volêmico), exames bioquímicos (hemoglobina transferrina, ferritina, albumina, creatinina, ureia pré-diálise, ureia pós-diálise). Foram considerados medicamentos com potencial de causar xerostomia, os diuréticos de alça (Furosemida), antagonistas de aldosterona (Espironolactona), inibidores de ECA (Captopril, Cilazapril, Enalapril, Fosinopril, Lisinopril, Ramipril, Perindopril), antagonistas do receptor de angiotensina (Losartana Candesartana, Eprosartana, Ibersatana, Telmisartan, Valsartana), antagonistas do receptor de vasopressina (Tolvaptan).4

Foram incluídos no estudo pacientes de duas clínicas particulares de HD da cidade de Goiânia, de ambos os sexos, que realizavam três sessões por semana, com idade entre 18 e 79 anos, com no mínimo três meses de tratamento, clinicamente estáveis. Foram excluídos pacientes com hospitalização recente (< 3 meses), transtornos do trato gastrointestinal, dificuldades cognitiva e de visão.

Foi solicitado o consentimento da autora do estudo original.16. Os procedimentos de adaptação transcultural foram realizados de acordo com as recomendações propostas pelos Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures22. Assim sendo, foram realizadas traduções, retrotraduções, reunião com comitê de especialistas e pré-teste para obtenção da escala final em português brasileiro22. O presente estudo foi composto por duas etapas: uma para propor a versão do português brasileiro da TDS e a segunda para realizar o estudo de suas propriedades psicométricas de confiabilidade de validade.

Etapa I: adaptação transcultural da TDS para a língua portuguesa brasileira

A tradução direta do questionário TDS16 do inglês para o português foi realizada por dois tradutores, nutricionistas, sem contato prévio com a escala, fluentes em inglês e falantes do português como língua nativa. As duas traduções foram comparadas e sintetizadas em uma única versão pelos próprios tradutores (versão 1). A partir da síntese, uma retrotradução foi realizada por dois falantes nativos do inglês, da área da saúde, sem qualquer conhecimento do questionário original. As duas retrotraduções foram unificadas (versão 2). Então um expert em tradução bilíngue fez a equivalência semântica entre a escala original e a retrotraduzida, ambas em inglês (versão 3). Essa revisão técnica permite verificar a equivalência entre o instrumento original em inglês e a retrotradução, a fim de garantir a transferência do significado referencial (denotativo) dos termos do instrumento (Figura 1).

Figura 1 Desenho do estudo 

Um comitê composto por doze especialistas, entre eles médicos, nutricionistas e enfermeiros, com experiência em HD, realizou a revisão e as adaptações semânticas referentes à língua coloquial e adequações culturais específicas dessa população. O aspecto verificado nessa etapa para obtenção da versão 4 foi o significado conotativo geral de cada item. Conforme o modelo original, as seis frases foram relacionadas à escala Likert de cinco pontos (em que 0 = discordo totalmente e 5 = concordo totalmente).16

Por fim, foi realizado um estudo pré-teste, que tem como finalidade verificar a compreensão do público-alvo quanto a cada item e padronizar a forma de abordagem dos pesquisadores. É preconizado que essa amostra seja constituída por, no mínimo, 30 pessoas.22 A amostra do pré-teste foi constituída por 55 pacientes de HD (< 20 anos), escolhidos aleatoriamente, que participaram exclusivamente do pré-teste. Somente então foi obtida a quinta e definitiva versão em português (término da adaptação transcultural) para o início do estudo das propriedades psicométricas.

Etapa II: estudo das propriedades psicométricas da TDS-BR

A angústia de sede foi avaliada durante a sessão de HD, depois de decorridas duas horas a partir dos procedimentos iniciais. Os pacientes foram questionados sobre a angústia e o sofrimento resultantes da sensação de sede referente ao tempo decorrido desde a última sessão de HD. Um dos quatro pesquisadores capacitados leu cada um dos seis itens para o paciente.16,18-20

Tendo em vista a falta de um instrumento padrão ouro que avalie a mesma dimensão para realizar a validação, utiliza-se recorrentemente6,18-20,22 a comparação com a EVA, instrumento validado para mensurar intensidade de dor14 e amplamente utilizado para sede.6,16,18-20,22 Com base teórica no Guia Theory of Management Symptom,25 que considera a validade convergente quando as dimensões relacionadas teoricamente estão associadas na realidade. Como espera-se que uma maior intensidade de sede cause maior sofrimento, esse achado no presente estudo suporta a validade do constructo.

A EVA foi impressa em exatos 10 cm, associada a uma graduação de cores (do verde ao vermelho) para ilustrar o aumento da intensidade.14 O paciente foi orientado a marcar com um X a posição que indicava a intensidade de sua sede desde a última sessão de HD, sendo que zero correspondia a nenhuma sede e 10, ao máximo de sede.14 Posteriormente, a marcação foi determinada pela medida em centímetros do zero até o ponto marcado.16,18-20

Até uma semana depois, foi realizado o reteste, e 70 participantes (55% da amostra inicial) responderam novamente às questões do questionário que concernem à sede (EVA e TDS-BR), seguindo os mesmos critérios adotados anteriormente para avaliação da reprodutibilidade da escala (Figura 1).

O protocolo da pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Goiás (UFG), pelo número 54523116500005083, e todos os pacientes responderam ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Análise estatística

Os dados foram duplamente digitados utilizando o software Excel para Windows, e a análise dos dados foi feita com o software Stata versão 12.0. A normalidade das variáveis contínuas foi analisada pelo teste Shapiro Wilk. Para a caracterização da amostra, foram calculadas as frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas; média e desvio-padrão para as variáveis contínuas com distribuição normal; e mediana e intervalo interquartil (p25-p75) para as variáveis não paramétricas. Para determinar as diferenças de média nas variáveis avaliadas, foi utilizado o teste t de Student ou Anova, ou o teste de Mann-Whitney ou Kurkal-Wallis, de acordo com a distribuição dos dados.

Para testar a validade da TDS-BR, foram realizados testes de consistência interna (alfa de Cronbach), correlação (Pearson ou Spearman), concordância com os dados de intensidade de sede, obtidos por meio da EVA (Kappa e Bland Altman) e reprodutibilidade (coeficiente de correlação intraclasse). Foi determinado nível de significância de 5%.

Resultados

A realização da adaptação transcultural e avaliação de suas propriedades psicométricas possibilitaram a consolidação de uma versão consensual da escala em português brasileiro, denominada Thirst Distress Scale - Brazilian (TDS-BR).

Depois de obter a versão traduzida para o português, o comitê de especialistas julgou por unanimidade os três primeiros itens repetitivos. Para solucionar essa questão, houve substituição de “muito” (item 3), que foi a tradução obtida de very, por “bastante”. Essa troca transmite a percepção de gradação de intensidade do primeiro ao terceiro item. Assim, o item 3 expressa um desconforto maior do que o incômodo referido no item 2. No item 4, foi inserida a oração “ficou seca como” algodão, ao invés de “parece algodão”, obtida da tradução feels like cotton. Essa opção foi adotada por não ser corriqueiro utilizar a comparação com algodão para se referir à boca seca nesse grupo. Também foi inserida a palavra “líquido” no item 6, para dar mais clareza e facilitar a compreensão da pergunta (Tabela 1).

Tabela 1 Comparação entre a versão original em inglês e as versões das etapas da adaptação transcultural da TDS-BR (Thirst Distress Scale – Brazilian)  

Versão original Versão após tradução para o português Versão obtida depois da reunião com o comitê de especialistas Versão final
1) My thirst causes me discomfort. Minha sede me causa desconforto. Minha sede me causa desconforto. Minha sede me causou desconforto.
2) My thirst bothers me a lot. Minha sede me incomoda muito. Minha sede me incomoda muito. Minha sede me incomodou muito.
3) I am very uncomfortable when I am thirsty. Eu fico muito desconfortável quando estou com sede. Eu me sinto bastante desconfortável quando eu estou com sede. Eu me senti bastante desconfortável quando eu estive com sede.
4) My mouth feels like cotton when I am thirsty. Minha boca parece algodão quando estou com sede. Minha boca fica seca como algodão quando eu estou com sede. Minha boca ficou seca como algodão quando eu estive com sede.
5) My saliva is very thick when I am thirsty. Minha saliva fica muito grossa quando estou com sede. Minha saliva fica muito grossa quando eu estou com sede. Minha saliva ficou muito grossa quando eu estive com sede.
6) When I drink less, my thirst gets worse. Quando eu bebo menos, minha sede fica pior. Quando eu bebo menos líquido, minha sede fica pior. Quando eu bebi menos líquido, minha sede ficou pior.

A versão adaptada foi aplicada no pré-teste em uma amostra de pacientes em HD que participaram exclusivamente dessa etapa. Observou-se que cerca de 80% dos pacientes tiveram dificuldade de entender que a sede mencionada no questionário se referia à sede resultante na última sessão de HD. Uma nova reunião com parte dos especialistas convocados na etapa anterior levou à reformulação da tradução, e houve então uma mudança do tempo verbal nos enunciados das questões, que ficaram no tempo passado, e não no presente, como na versão em inglês.

Em relação às variáveis sociodemográficas e clínicas, 61,11% dos pacientes eram do sexo masculino; a média de idade era de 53 anos (±16,59) e a mediana de tempo de HD foi 44,5 meses (20-89). A comorbidade mais prevalente foi hipertensão arterial sistêmica (HAS), com prevalência de 80,95%. Os pacientes estavam em bom estado nutricional, de acordo com o IMC (Tabela 2).

Tabela 2 Caracterização da amostra na etapa II 

Variáveis* Total
Sexo
Masculino 77 (61,11%)
Feminino 49 (38,89%)
Idade (anos) 53,00 (± 16,59)
Tempo de hemodiálise (meses) 44,50 (20,00-89,00)
KT/V ** 1,39 (± 0,23)
Etiologia da Doença Renal Crônica
Nefroesclerose hipertensiva 40 (32,74%)
Glomerulonefrite 9 (7,14%)
Nefropatia diabética 9 (7,14%)
Doença renal policística do adulto 11 (8,75%)
Comorbidades
Diabetes mellitus II 15 (11,90%)
Hipertensão arterial sistêmica 102 (80,95%)
Índice de massa corporal (kg/m²) 24,85 (21,70-28,95)
Ganho de peso interdialítico (kg) 1,80 (± 0,90)
Exames bioquímicos
Hemoglobina (g/dL) 11,50 (10,40-13,00)
Transferrina (%) 33,00 (25,30-42,90)
Ferritina (ng/mL) 239,50 (25,00-354,40)
Albumina (g/dL) 3,70 (± 0,50)
Creatinina (mg/dL) 11,20 (± 3,10)
Ureia pré (mg/dL) 126,00 (± 32,50)
Ureia pós (mg/dL) 29,50 (22,00-42,50)
Uso de medicamentos com potencial de causar xerostomia 102 (80,95%)

*Os valores são apresentados como número (percentual), média ± desvio-padrão ou mediana e intervalo interquartil.

**KT/V: ln ureia pré/ureia pós

A consistência interna foi considerada satisfatória pelo valor de alfa de Cronbach (0,84; p < 0,001). Para avaliar a influência de cada item na consistência interna do instrumento, o alfa de Cronbach foi calculado retirando-se uma questão de cada vez (Tabela 3). Comparando-se apenas os valores das estimativas pontuais do alfa, a retirada de nenhum item aumentou significativamente o valor da estimativa pontual de alfa. Portanto, todos os itens foram mantidos. A retirada do item 6, o mais frágil da escala, causou o maior aumento no alfa de Cronbach (0,86). Além disso, os itens de TDS-BR se mostraram correlacionados dentro do limite esperado (0,3 e 0,85) (Tabela 4).

Tabela 3 Consistência interna por item de TDS-BR (Thirst Distress Scale – Brazilian) 

Versão final da escala χ´ DP Correlação total Alfa de Cronbach para cada item deletado
1) Minha sede me causou desconforto. 2,86 1,59 0,77 0,80
2) Minha sede me incomodou muito. 2,88 1,60 0,84 0,79
3) Eu me senti bastante desconfortável quando eu estive com sede. 3,00 1,65 0,86 0,78
4) Minha boca ficou seca como algodão quando eu estive com sede. 3,50 1,54 0,74 0,82
5) Minha saliva ficou muito seca quando eu estive com sede. 2,76 1,75 0,68 0,83
6) Quando eu bebi menos líquido, minha sede ficou pior. 2,89 1,54 0,56 0,86

χ´ Média dos escores de cada item;

DP: desvio-padrão.

Tabela 4 Matriz de correlação dos itens TDS-BR (Thirst Distress Scale – Brazilian) 

Item 1 Item 2 Item 3 Item 4 Item 5 Item 6
Item 1 1,000
Item 2 0,783 1,000
Item 3 0,627 0,754 1,000
Item 4 0,456 0,482 0,594 1,000
Item 5 0,339 0,408 0,529 0,534 1,000
Item 6 0,317 0,348 0,353 0,268 0,229 1,000
a 100% 100% 100% 80% 80% 60%
b 0,504 0,555 0,571 0,467 0,408 0,303

aProporção ou vezes que as correlações dois a dois estiveram entre 0,30 e 0,85

bMédia de correlação de cada item com os demais da escala

Teste estatístico: correlação de Pearson

Ao avaliar a distribuição dos pacientes nas categorias predeterminadas para a intensidade de sede, avaliada por meio da EVA23 (Tabela 5), constatou-se que a maior parte deles tem sede moderada. A média dos escores de TDS-BR também indicam sede moderada (17,87; ±7,87). Quando essa categorização de EVA foi comparada aos valores dos escores de TDS-BR, foi possível observar que a sede com intensidade grave provocava maior sofrimento (p < 0,001).

Tabela 5 Distribuição da intensidade de sede e comparação com TDS-BR (Thirst Distress Scale – Brazilian) 

Intensidade de sede (EVA) N (%) TDS-BR
Média p
Leve 24,60 12,13(±5,57) < 0,001
Moderada 55,56 17,54(±6,11)
Grave 19,84 23,72(±4,81)

*Diferença estatística entre os três grupos (sede leve, moderada e grave) pelo teste de Kruskal-Wallis, p < 0,05

No que se refere à correlação entre os escores das duas escalas (Figura 2A), identificou-se uma correlação moderada entre os instrumentos (r = 0,70; p < 0,001). Conforme o gráfico de dispersão de Bland-Altman (Figura 2B), houve distribuição homogênea e valor do viés sem diferença significativa de zero. No entanto, os limites de concordância foram considerados muito distantes (± 44,54). Adicionalmente, foi realizado o teste Kappa, para verificar a concordância das duas escalas categorizadas. O resultado de 0,44 (p < 0,001) indica concordância moderada.

Figura 2 (A) Gráfico de dispersão de concordância entre as escalas EVA (%) e TDS-BR (%). (B) Gráfico de Bland e Altman para avaliação da concordância entre as escalas EVA (%) e TDS-BR (%). Viés = média das diferenças. LSC = limite superior de concordância. LIC = limite inferior de concordância 

Não houve diferença significativa entre as médias dos escores do teste e do reteste. A versão em português da TDS apresentou reprodutibilidade quase perfeita, com coeficiente de correlação intraclasse de 0,87 (p < 0,001) (Tabela 6).

Tabela 6 Comparação entre teste e reteste da escala TDS-BR (Thirst Distress Scale – Brazilian) e correlação (N = 70) 

Test Reteste ta p CCI (95% IC)
TDS-BR 18,28 (±7,22) 18,01 (±7,55) 0,84 0,201 0,87 (0,77- 0,97)*

CCI = coeficiente de correlação intraclasse;

IC = Intervalo de confiança;

a teste t pareado

*p < 0,001

Discussão

A realização da adaptação transcultural e validade psicométrica demonstrou consistência interna satisfatória, concordância moderada com EVA e reprodutibilidade quase perfeita. A partir dos resultados, foi possível obter o instrumento viável e prático de ser utilizado para diagnóstico e avaliação da angústia resultante de sede em pacientes em HD.

A substituição e o acréscimo de palavras melhoraram o significado semântico pretendido na escala original.16 Nessa perspectiva, os outros estudos de adaptação transcultural também fizeram alterações. Na escala adaptada para pacientes com insuficiência cardíaca, “algodão” foi substituído por “lixa”,19 um termo mais adequado em português para expressar uma sensação mais de aspereza do que de secura.24 Já em relação à adaptação para o turco, houve supressão do termo “algodão”, e o item ficou assim: “Minha boca fica realmente muito seca quando eu estou com sede”.18 O item 5 permaneceu inalterado no presente estudo e nas demais traduções.18,19 No item 6, foi acrescido o termo “líquido”, no presente estudo, e “água”, na escala do estudo multicêntrico.22 O tempo verbal nos demais estudos permaneceu no presente. A autora do estudo original foi comunicada a respeito da mudança no presente estudo.

A alta consistência interna verificada no presente estudo também pode ser observada nas outras validações do instrumento, que variaram entre 0,7816 e 0,81.18 O item 4 foi o que apresentou a maior média de score, indicando que a boca extremamente seca é um fator de grande sofrimento. Esse achado corrobora com as médias por item descritas na literatura.15,16,18,19 A fragilidade encontrada no item 6 também foi demonstrada nas versões em inglês,16 turco,18 japonês,19 sueco19 e holandês.19

A correlação entre os três primeiros itens foi maior em relação aos demais. No entanto, a correlação dos três últimos itens foi moderada. Dessa forma, não justificaria a retirada de nenhum deles. Os outros estudos de validação da TDS também mantiveram os três itens, sendo que Kara (2013)18 não fez nenhuma alteração e Waldréus et al. (2017)19 mudou o item 2 para “minha sede me incomoda diariamente” e manteve os demais.

No presente estudo, foi encontrada sede moderada pela média dos scores de sede da TDS-BR. Foi semelhante à média encontrada no estudo original (17,1; ±4,2).14 Na Turquia e na Itália, as médias encontradas indicam sede grave (20,32; ±4,2331 e 21,4 ±4,2,57 respectivamente).

Os escores de TDS-BR foram positivamente correlacionados com os escores da EVA. As duas escalas são concordantes, mas não substituíveis. Graficamente, isso pode ser expresso por Bland Altman, em que o viés sem diferença significativa de zero indica boa concordância. Já os limites superior e inferior muito distantes apontam um “erro” que caracteriza a possibilidade de oscilação das respostas de uma escala em relação à outra.26-29 A escala TDS-BR apresentou reprodutibilidade quase perfeita, semelhante aos resultados dos outros estudos.16,18,19

Foram encontrados na literatura diferentes instrumentos que avaliam a sede em outras dimensões.15,30 Todavia, para nenhuma das dimensões havia padrão ouro de comparação. A facilidade, viabilidade de aplicação e adaptação cultural em outros idiomas justificaram a escolha da TDS.

A aplicação da TDS-BR permitiu a adaptação transcultural deste instrumento, utilizando uma amostra com pacientes em HD de Goiânia (GO). Apesar de o sujeito nos enunciados da escala estar na primeira pessoa do singular, o que remete a uma resposta autoaplicada, foi utilizada a estratégia de entrevista, como ocorreu no estudo original16 e nos demais estudos que utilizaram a mesma escala.6,18-20,22 Sugere-se que estudos futuros avaliem a concordância das respostas com diferentes métodos de aplicação para verificar se são equivalentes, haja vista a autoaplicação ser mais coerente com as perguntas da escala.31

Considera-se uma limitação do estudo a falta de um padrão ouro para avaliar a intensidade de sede, o que pode ter contribuído para um nível de concordância moderada, mas quase razoável. Não foi calculado o índice de validade de conteúdo (IVC) na etapa de reunião com o comitê de especialistas. Mesmo sem o IVC, o entendimento da escala final TDS-BR não foi prejudicado. Todas as alterações sugeridas pelo comitê foram acatadas para melhorar a clareza e a relevância de cada item da escala. Sendo assim, essa etapa teve caráter qualitativo.

Com relação ao teste de reprodutibilidade, embora não tenha sido realizado com a amostra total, a amostra parcial foi suficiente para realizar a avaliação, uma vez que a magnitude do intervalo de confiança evidencia um coeficiente de correlação intraclasse elevado. Sendo assim, o tamanho da amostra foi suficiente para demonstrar a reprodutibilidade quase perfeita da escala.

A adaptação transcultural e a validação psicométrica da TDS-BR ao contexto brasileiro permitiram a disponibilização de um instrumento conciso e versátil na avaliação da sede no cenário da HD. Novos estudos poderão utilizar a escala para avaliar a sede em ensaios clínicos, e verificar sua associação com ganho de peso interdialítico e consumo alimentar.

A correlação entre TDS-BR e EVA foi positiva e a concordância moderada, semelhante aos resultados dos estudos de validação da TDS.16,18-20 Dessa forma, considera-se que a validade de conteúdo foi apoiada pela literatura e pela correlação e concordância positivas com a escala EVA.

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