versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.4 São Paulo 2018 Epub 08-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2018ao4354
As crianças não são adultos pequenos, mas um grupo diferenciado e heterogêneo de pacientes, com necessidades específicas em relação aos medicamentos.(1-3)A heterogeneidade é consequência das mudanças que ocorrem na infância em relação ao crescimento e ao desenvolvimento de órgãos e sistemas fisiológicos, que influenciam na farmacocinética e na farmacodinâmica,(1,2)bem como das alterações das habilidades motoras e cognitivas que interferem na administração de medicamentos.(3)Assim, as crianças têm necessidades diferentes dos adultos em termos de dose, forma farmacêutica e habilidade para administração de medicamentos.(1,3,4)
Para alcançar a exatidão da dose administrada, reduzir erros de medicação, aumentar a adesão ao tratamento e melhorar os resultados terapêuticos em pediatria, é essencial a disponibilidade de medicamentos em formas farmacêuticas e formulações adequadas às necessidades das crianças.(2)
O desenvolvimento de medicamentos segundo os princípios de uma formulação centrada no paciente(5,6)e na idade apropriada(4)é uma tendência atual, para atender às especificidades em pediatria. Um medicamento apropriado à criança apresenta forma farmacêutica que propicia liberação variável da dose segundo peso/altura, palatabilidade aceitável, segurança associada a excipientes, facilidade de deglutição, dispositivo adequado para medida da dose e habilidade para administração compatível com a faixa etária pediátrica a que se destina.(4,5,7)
Em diferentes países, o número de medicamentos registrados para uso pediátrico é inferior ao de adultos, e a indisponibilidade é maior para medicamentos destinados às crianças mais jovens.(8-11)No Brasil, também há carência de medicamentos adequados ao uso pediátrico.(12)
Em virtude do número reduzido de medicamentos adequados às faixas etárias pediátricas, o uso de medicamentos off label ou não licenciado para crianças é um problema que ainda persiste em diferentes cenários da assistência, inclusive no Brasil, elevando o risco de reações adversas e a inefetividade terapêutica.(12)
Analisar a adequação das formas farmacêuticas às faixas etárias pediátricas dos medicamentos novos registrados no Brasil no período de 2003 a 2013.
Trata-se de um estudo descritivo dos medicamentos com indicação pediátrica incluídos em uma coorte retrospectiva de medicamentos novos registrados no Brasil. A coorte retrospectiva abrange os medicamentos novos registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) entre janeiro de 2003 e dezembro de 2013. A coorte foi constituída consultando o banco de dados Drugs@FDA (https://www.accessdata.fda.gov/scripts/cder/daf/); a seção de publicações da ANVISA disponibilizada no Diário Oficial da União; e o artigo de revisão “ To market, to market ” publicado no Annual Reports in Medicinal Chemistry . A descrição detalhada da elaboração da coorte foi apresentada em um estudo prévio.(13)
Identificaram-se, na lista de preços de medicamentos de janeiro de 2016, publicada pela ANVISA, os medicamentos que estavam ainda em comercialização no Brasil.(14)Consultou-se o bulário eletrônico da ANVISA para verificar se os medicamentos novos incluídos na coorte e em comercialização no país em 2016 tinham registro e indicação pediátrica na ANVISA.(15)Quando não estava disponível no bulário, solicitou-se, por e-mail, a bula ao laboratório fabricante.
A classificação dos medicamentos foi realizada de acordo com o terceiro nível terapêutico farmacológico do Anatomical Therapeutic Chemical Code (ATC), da Organização Mundial da Saúde (OMS).(16)
Para caracterização da indicação pediátrica nesta investigação, adotou-se a seguinte estratificação etária: recém-nascido prematuro (<37 semanas), recém-nascido a termo (≥37 semanas e <28 dias), lactente (≥28 dias e <2 anos), pré-escolar (≥2 e <6 anos), escolar (≥6 e <12 anos) e adolescente (≥12 anos e <19 anos).(17)
A avaliação da adequação do medicamento à faixa etária pediátrica foi realizada considerando as apresentações farmacêuticas comercializadas no Brasil em 2016 e empregaram-se os seguintes critérios: adequação da forma farmacêutica e capacidade de fornecer a dose recomendada. Os medicamentos foram considerados adequados às faixas etárias pediátricas, quando preencheram os dois critérios.
A avaliação da adequação da forma farmacêutica às faixas etárias pediátricas foi realizada empregando-se os critérios definidos pela European Medicines Agency (EMA) no documento Reflection paper: formulations of choice for the paediatric population .(18)Os critérios foram desenvolvidos empregando um matriciamento dos seguintes fatores: faixa etária estratificada segundo Willians et al.,(17)forma farmacêutica e via de administração, considerando a adequação em pediatria. A adequação do medicamento conforme o matriciamento foi definida em uma escala do tipo Likert. Para crianças menores de 11 anos, a escala é estruturada em (1) inadequado, (2) adequado com problemas, (3) adequado mas não preferível, (4) boa adequação e (5) excelente adequação. Para adolescentes, a escala é: (1) inaceitável, (2) aceitável sob reserva, (3) aceitável, (4) preferida e (5) forma farmacêutica de escolha.(18)Nessa investigação, classificou-se a forma farmacêutica como adequada para a faixa etária para a qual o medicamento está registrado quando apresentou pontuação superior a 3, para crianças menores de 12 anos, e superior a 2, para adolescentes.
Avaliou-se também a capacidade de o medicamento, na forma farmacêutica em que é comercializado, fornecer a dose recomendada. Esta avaliação foi realizada segundo Fontan et al.,(19)que classifica como inadequação forma farmacêutica sólida − necessidade de divisão para obter a dose adequada − e forma farmacêutica líquida − necessidade de administração de volume do medicamento menor que 1mL. Todas as demais formas farmacêuticas foram consideradas aptas para fornecer a dose exata necessária à criança. A avaliação de adequação foi realizada considerando a dose prescrita para crianças prevista na bula. Para os medicamentos cuja dose era expressa em mg/kg, empregaram-se os pesos de referência para cada faixa etária, de acordo com as curvas preconizadas pela OMS para peso ideal de crianças, considerando os limites inferiores da faixa etária.(20)
Identificou-se, nas bulas das especialidades farmacêuticas dos 46 medicamentos com indicação pediátrica, a presença dos seguintes excipientes farmacêuticos com potencial de causar dano em crianças: antioxidantes (sulfitos),(21)agentes solubilizantes (polisorbato 80(22,23)e ciclodextrina),(10)conservantes antimicrobianos (parabenos − propilparabeno, etilparabeno e metilparabeno;(22,23)benzoatos − álcool benzílico, ácido benzoico, benzoato de sódio(10,21-23)− e cloreto de benzalcônio),(10,21-23)diluente (lactose),(21,24)edulcorantes (aspartame,(22,23)sorbitol,(10,23)sacarina(10,22)) e solventes (etanol e propilenoglicol,(10,22-24)e óleo de amendoim).(22)
O banco de dados foi digitado no programa Epidata 3.1. A análise estatística compreendeu cálculo de frequências e proporções, tendo sido realizada empregando o software Statisical Package for Social Sciences , versão 21.0.
De janeiro de 2003 a dezembro de 2013, foram registrados, no Brasil, 159 medicamentos novos, e 25 interromperam a comercialização no país após o registro. Por isto, a coorte investigada abrangeu 134 medicamentos novos que estavam em comercialização em janeiro de 2016. Entre os 134 medicamentos novos, identificaram-se 46 (34,3%) que tinham indicação pediátrica no exterior e 37 (27,6%) com registro para uso em crianças no Brasil.
Em relação à classificação ATC ( Tabela 1 ) os fármacos mais frequentes pertenciam aos seguintes grupos: (A) trato alimentar e metabolismo (26,1%), (J) anti-infecciosos de uso sistêmico (21,7%), (L) antineoplásicos e imunomoduladores (13%) e (R) sistema respiratório (10,9%).
Tabela 1 Anatomical Therapeutic Chemical Code ( 16 ) dos 46 medicamentos pediátricos identificados na coorte de medicamentos novos, registrados de 2003 a 2013
Classificação ATC | n (%) | |
---|---|---|
Trato alimentar e metabolismo | 12 (26,1) | |
A02B | Fármacos para úlcera péptica e doença do refluxo gastresofágico: dexlansoprazol | 1 (2,2) |
A04A | Antieméticos e antinauseantes: aprepitanto e palonosetrona | 2 (4,4) |
A10A | Insulinas e análogos: insulina detemir e insulina glulisina | 2 (4,4) |
vA16A | Outros produtos que atuam no metabolismo e trato alimentar: alfa-alglicosidase, alfavelaglicerase, sapropterina, galsulfase, idursulfase, laronidase e miglustate | 7 (15,2) |
Sistema cardiovascular | 1 (1) | |
C10A | Agentes modificadores de lipídeos: rosuvastatina | 1 (2,2) |
Anti-infecciosos para uso sistêmico | 10 (21,7) | |
J02A | Antimicóticos para uso sistêmico: anidulafungina, micafungina e posaconazol | 3 (6,5) |
J05A | Antivirais de ação direta: enfuvirtida, entecavir, darunavir, etravirina, fosamprenavir, raltegravir potássico e atazanavir | 7 (15,2) |
Antineoplásicos e agentes imunomoduladores | 6 (13,0) | |
L01X | Outros agentes antineoplásicos: nimotuzumabe | 1 (2,2) |
L04A | Imunosupressores: abatacepte, adalimumabe, canaquinumabe, everolimo e tocilizumabe | 5 (10,9) |
Sistema respiratório | 5 (10,9) | |
R01A | Descongestionantes e outras preparações nasais de uso tópico: ciclesonida e fluticasona | 2 (4,4) |
R03D | Outros fármacos sistêmicos para doenças obstrutivas das vias aéreas: omalizumabe | 1 (2,1) |
R06A | Anti-histamínicos para uso sistêmico: bilastina e rupatadina | 2 (4,4) |
Classificação ATC | n (%) | |
Sistema nervoso | 4 (8,8) | |
N05A | Antipsicóticos: asenapina e paliperidona | 2 (4,4) |
N06A | Antidepressivos: duloxetina | 1 (2,2) |
N06B | Psicoestimulantes, agentes usados para TDAH: lisdexanfetamina | 1 (2,2) |
Sistema geniturinário e hormônios | 2 (4,4) | |
G03A | Hormônios anticonceptivos para uso sistêmico: dienogeste; valerato de estradiol, drospirenona; etinilestradiol | 2 (4,4) |
Órgãos dos sentidos | 2 (4,4) | |
S01A | Anti-infecciosos: besifloxacino | 1 (2,2) |
S01G | Descongestionantes e antialérgicos: alcaftadina | 1 (2,2) |
Dermatológicos | 1 (2,2) | |
D06A | Antibióticos para uso tópico: retapamulina | 1 (2,2) |
Sistema musculoesquelético | 1 (2,2) | |
M05B | Fármacos que afetam a estrutura óssea e mineralização: denosumabe | 1 (2,2) |
Sangue e órgãos hematopoiéticos | 1 (2,2) | |
B02B | Vitamina K e outros hemostáticos: eltrombopag olamina | 1 (2,2) |
Vários | 1 (2,2) | |
V03A | Todos os outros produtos terapêuticos: sugamadex | 1 (2,2) |
Total | 46 (100,0) |
Na bula de 40 (87%) dos medicamentos novos com indicação para crianças constava especificação da faixa etária pediátrica à qual se destinava. Para 6, dos 46 medicamentos com indicação pediátrica, constava apenas uso pediátrico; estes foram classificados como indicados para todas as faixas etárias, inclusive recém-nascido prematuro e a termo. Não se identificou nenhum medicamento com especificação explícita de indicação para neonatos. As faixas etárias com maior proporção de indicação pediátrica foram pré-escolar, escolar e adolescente ( Tabela 2 ).
Tabela 2 Faixa etária dos 46 medicamentos com registro de indicação pediátrica no exterior e faixa etária dos 37 medicamentos com registro de indicação pediátrica no Brasil
Faixa etária | Exterior n=46 | Brasil n=37 |
---|---|---|
n (%) | n (%) | |
Estratificação | ||
Recém-nascido prematuro | 3 (6,5) | 4 (10,8) |
Recém-nascido a termo | 3 (6,5) | 4 (10,8) |
Lactente | 16 (34,8) | 8 (21,6) |
Pré-escolar | 27 (58,7) | 21 (56,7) |
Escolar | 37 (80,4) | 30 (81,1) |
Adolescente | 46 (100,0) | 37 (100,0) |
Entre os 46 medicamentos com indicação pediátrica, um era comercializado em duas diferentes especialidades farmacêuticas, uma para uso nasal e outra para uso pulmonar. Considerando 47 especialidades farmacêuticas, verificou-se que 22 (46,8%) destinavam-se à via oral, 12 (25,5%) à endovenosa, 7 (14,9%) à subcutânea, 2 (4,3%) à nasal, 2 (4,3%) à oftálmica, 1 (2,1%) à dérmica e 1 ( 2,1%) à pulmonar.
Em relação à forma farmacêutica das 47 especialidades farmacêuticas, as mais prevalentes foram as sólidas de uso oral (42,5%) e parenterais (40,4%), conforme apresentado na tabela 3 . Entre as 20 especialidades farmacêuticas que eram formas sólidas, evidenciou-se predomínio de comprimidos e cápsulas, sendo que constavam apenas um comprimido dispersível e um mastigável. Foram observados duas especialidades em formas líquidas de uso oral.
Tabela 3 Forma farmacêutica dos 46 medicamentos com registro de indicação pediátrica no exterior e comercializados no Brasil de 2003 a 2013
Forma farmacêutica | n (%) |
---|---|
Formas farmacêuticas sólidas | 20 (42,5) |
Comprimido | 12 (25,5) |
Cápsula | 6 (12,8) |
Comprimido mastigável | 1 (2,1) |
Comprimido dispersível | 1 (2,1) |
Formas parenterais | 19 (40,4) |
Parenteral endovenoso | 12 (25,5) |
Parenteral subcutâneo | 7 (14,9) |
Formas em aerossol* | 3 (6,4) |
Dispositivo de pó seco para inalação | 1 (2,1) |
Spray nasal | 2 (4,3) |
Formas líquidas de uso oral | 2 (4,3) |
Solução oftálmica | 2 (4,3) |
Pomada | 1 (2,1) |
Total | 47 (100,0) |
* Um medicamento apresenta duas formas farmacêuticas diferentes.
A adequação devido à capacidade do medicamento fornecer a dose recomendada foi superior a 80% em todas as faixas etárias ( Figura 1 ). Em relação à adequação da forma farmacêutica, identificou-se que quanto maior a faixa etária, maior a proporção de adequação para uso pediátrico. Entre os 20 medicamentos em formas farmacêuticas sólidas, 10 (50,0%) foram classificados como adequados para todas as faixas etárias pediátricas para os quais estavam registrados. Na avaliação da capacidade de fornecer a dose recomendada, identificou-se que 16 (80,0%) eram adequados; as quatro (20%) inadequações foram medicamentos cujo esquema posológico era prescrito em mg/kg/dia. A taxa de adequação dos medicamentos comercializados nas formas farmacêuticas parenterais, líquidas de uso oral, tópicas e inalatórias foi de 100% nos dois critérios analisados. Na análise da adequação dos medicamentos, a faixa etária pediátrica apresentada na figura 1 mostra que a adequação foi menor para pré-escolares (64,3%), recém-nascidos prematuros (66,7%) e recém-nascidos a termo (66,7%).
Os excipientes farmacêuticos com potencial de causar danos em crianças foram identificados em 22 (46,8%) das 47 especialidades farmacêuticas, sendo que, em 3 especialidades, identificou-se mais de um excipiente. Entre as 25 ocorrências de excipientes, 12 (48,0%) corresponderam a polisorbato 80, 7 (28%) a lactose, 3 (12%) a cloreto de benzalcônio, 2 (8,0%) a propilenoglicol e 1 (4,0%) a etanol. Dentre as 22 especialidades que apresentaram excipientes com potencial para causar danos em crianças, 9 (40,9%) eram de uso parenteral, 8 (36,4%) sólidas de uso oral e 5 (22,7%) abrangeram as demais formas farmacêuticas.
No período de 2003 a 2013, o número de medicamentos novos registrados no Brasil para a população pediátrica foi pequeno, uma vez que cerca de um terço dos medicamentos registrados para crianças menores de 6 anos foi classificado como inadequado para a faixa etária pediátrica a que se destinava. Além disso, verificou-se que quanto menor a idade da criança, menor o número de medicamentos novos pediátricos registrados no país. Estas características do mercado brasileiro de medicamentos é semelhante a descrita nos Estados Unidos e Europa.(8,25,26)Verifica-se, assim, a existência de uma lacuna para conseguir a equidade na disponibilização de medicamentos destinados ao uso pediátrico, na mesma proporção em que são oferecidos para o uso adulto, atualmente, no mercado. Isto pode ser atribuído à complexidade de formular medicamentos para crianças que contemplem as especificidades das diferentes fases da infância.(1,26)Percebe-se que as crianças ainda ocupam o status de órfãos terapêuticos, principalmente nas faixas etárias menores, pois há um deficit de medicamentos pediátricos. Apesar de as indústrias farmacêuticas terem promovido grandes avanços sobre o tema, aliados às recentes alterações na legislação, realizadas principalmente pelas agências reguladoras dos Estados Unidos e União Europeia, visando ampliar a disponibilidade de medicamentos adequados para crianças, ainda persiste a situação de órfãos terapêuticos.(7)A falta de lançamento, no período, de medicamentos para neonatologia, além do reduzido número de medicamentos para câncer pediátrico e para o tratamento de infecções bacterianas, torna o fato preocupante e mostra que os critérios das indústrias farmacêuticas para lançamentos de medicamentos não consideram integralmente as necessidades das crianças.(26)
Este deficit de medicamentos com indicação pediátrica é uma realidade mundial, não sendo diferente no Brasil;(12,27)pode, consequentemente, trazer ameaças à segurança do paciente, por propiciar risco aumentado de eventos adversos, devido à utilização de medicamentos off label ou não licenciados.(27)
As formas farmacêuticas líquidas são consideradas pelos profissionais de saúde as mais adequadas para o tratamento das crianças, por apresentarem facilidade de administração e deglutição, e maior flexibilidade para ajustes de doses terapêuticas, além de permitirem melhor adesão das crianças ao tratamento.(5)Apesar disto, as formulações líquidas orais apresentam problemas de palatabilidade, estabilidade química, física e/ou microbiológica e riscos de erros na medição da dose, o que se faz um desafio para o desenvolvimento de medicamentos pediátricos.(1,10)Este desafio pode explicar o reduzido número destas formulações entre os medicamentos estudados.
Diante dos desafios para desenvolvimento de formas farmacêuticas líquidas adequadas às crianças, a OMS propôs, em 2008, que as formas sólidas flexíveis fossem consideradas as formulações preferidas para crianças. Elas correspondem às formas sólidas que não precisam ser ingeridas inteiras, como, por exemplo, os comprimidos dispersíveis, os efervescentes e os orodispersíveis. Para o maior acesso das crianças às formas sólidas flexíveis, tanto nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, como nos países pobres, a OMS fomenta a implantação de plataformas tecnológicas para pesquisa e produção destes medicamentos. Apesar das vantagens técnicas e econômicas, além da facilidade de administração, a aceitação destas formulações pode ser influenciada por fatores culturais. Nesse sentido, a OMS busca conscientizar os pais e os cuidadores de crianças sobre os benefícios das formas flexíveis. Outro aspecto que visa aprimorar a aceitação pelas crianças e que está sendo abordado é a melhoria da palatabilidade das formulações.(28)
Entre os medicamentos novos registrados no período estudado, a proporção de medicamentos em formas sólidas flexíveis foi muito reduzida, mostrando a relevância das ações da OMS para ampliar o acesso a essas formas farmacêuticas. As formas sólidas foram prevalentes na coorte investigada e contribuíram significativamente para a classificação dos medicamentos como inadequados à faixa etária pediátrica, pois apenas uma apresentava capacidade de flexibilizar a dose, por ser um comprimido dispersível. Vale destacar que os esquemas posológicos mais frequentes para os medicamentos sólidos estudados eram em número de unidades da forma sólida a serem administradas. Se medicamentos com doses expressas em mg/kg/dia fossem em número maior, teria sido encontrada uma maior proporção de inadequação.
A fim de disponibilizar medicamentos de uso oral seguros e efetivos para as crianças, estão sendo propostas inovações tecnológicas, como minicomprimidos, películas orodispersíveis e formulações líquidas baseadas em leite.(10)Os estudos com minicomprimidos estão em fase avançada, e os resultados mostraram que os de dimensão de 2mm podem ser administrados a lactentes e neonatos prematuros; os de 4mm são adequados para maiores de um ano.(10,11)A aceitação dos minicomprimidos pelas crianças foi superior quando comparada com a aceitação de pó de uso oral, xarope, suspensão e solução.(10)Outra vantagem dos minicomprimidos é a possibilidade de delineamento de formas farmacêuticas de liberação modificada,(1-10)o que pode reduzir o número de doses administradas e facilitar a adesão. As diretrizes da EMA, que norteiam o desenvolvimento de medicamentos, estabelecem que o minicomprimido pode ser considerado medida para aumentar a aceitabilidade e a flexibilidade de doses para crianças.(10)
Os excipientes farmacêuticos, reconhecidos por serem desprovidos de ação farmacológica, constituem outro fator importante a ser considerado no desenvolvimento de medicamentos para crianças. A influência dos excipientes no perfil de segurança do medicamento pediátrico, devido à imaturidade de órgãos e sistemas corporais da criança, tem sido descrita. Excipientes que são seguros para adultos podem não ser seguros para crianças de idades menores.(1,10)É crescente a preocupação com a presença de excipientes em medicamentos pediátricos, como o polisorbato 80, que apresentou frequência alta dentre os medicamentos estudados.(10,21-23)Apesar disso, somente para neonatos, existe uma definição mais clara dos excipientes com maior potencial de causar dano.(23,29)
A influência de polisorbato 80 sobre a atividade da glicoproteína P e o potencial de induzir trombocitopenia, disfunção renal e acidose metabólica desperta atenção para os riscos na utilização de medicamentos pediátricos, especialmente em neonatos e crianças menores.(24)
Os excipientes selecionados por apresentarem potencial de causar danos em crianças foram encontrados em quase metade dos medicamentos estudados, o que demanda um alerta para a dimensão do problema. Entretanto, a avaliação da adequação do medicamento à faixa etária em relação aos excipientes farmacêuticos não pode ser considerada absoluta, uma vez que selecionou-se um limitado número de excipientes; a avaliação da segurança de um excipiente em uma formulação pediátrica depende do grupo etário alvo e de informações adicionais, como concentração e dose máxima permitida para ingestão diária.(10)Estas informações não estão disponíveis nas bulas brasileiras. Devido a esses fatores, a avaliação da adequação do medicamento às faixas etárias pediátricas neste estudo abrangeu apenas a forma farmacêutica e a capacidade de fornecer a dose adequada.
O Brasil, diferente dos Estados Unidos e dos países da Europa, não possui legislação específica que regulamenta e incentiva o registro de medicamentos pediátricos.(12)Entretanto, o Ministério da Saúde, diante das questões problemáticas que envolvem a utilização de medicamentos por crianças, instituiu um grupo de trabalho para incentivar a criação de políticas públicas direcionadas à melhoria da terapêutica farmacológica pediátrica. Em 2017, foi publicado o documento “Assistência Farmacêutica em Pediatria no Brasil – Recomendações e estratégias para a ampliação da oferta do acesso e do uso racional de medicamentos em crianças”, que apresenta ações abrangentes propostas pelo grupo de trabalho, para alterar o panorama nacional de dificuldades assistenciais às crianças e, consequentemente, melhorar a terapêutica pediátrica.(27)Esta iniciativa do governo brasileiro está em consonância com o projeto Made Medicines for Children Size , da OMS, que incentiva os países a implantarem ações para ampliar a disponibilidade de medicamentos adequados para crianças.(30)
O presente estudo trouxe contribuições importantes para o conhecimento da adequação às faixas etárias pediátricas dos medicamentos novos registrados de 2003 a 2013 no Brasil. Além disso, é inovador, pois as pesquisas com medicamentos novos registrados no Brasil são anteriores a 2003 e não abordaram a perspectiva da criança.(27)Todavia, é importante destacar, como limitações do estudo, que a avaliação do medicamento pediátrico restringiu-se aos aspectos farmacotécnicos. Outros aspectos, que visam contribuir para que os pais, cuidadores e profissionais de enfermagem administrem com segurança os medicamentos como, por exemplo, a natureza do dispositivo para medida das doses, a estabilidade da formulação e as instruções para utilização do medicamento não foram avaliados. A palatabilidade, que é importante para aceitação do medicamento pela criança e relevante para a promoção da adesão ao tratamento, também não foi avaliada. A ausência da avaliação destes fatores não permitiu conhecer a dimensão integral da adequação dos medicamentos ao uso pediátrico. Ademais, a análise foi restrita aos medicamentos cuja comercialização estava mantida em 2016, devido à necessidade de coletar informações relativas aos excipientes da formulação que constam na bula, mas não estão disponíveis na base de dados da ANVISA.
Os medicamentos destinados às crianças menores de 6 anos apresentaram menor frequência de adequação, considerando a forma farmacêutica e a capacidade de fornecer a dose recomendada. A disponibilidade e a proporção de adequação dos medicamentos para uso pediátrico aumentam com a elevação da faixa etária para a qual o medicamento é registrado. A frequência de medicamentos com presença de excipientes na formulação capazes de causar danos às crianças foi elevada.