versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.80 no.2 São Paulo mar./abr. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/1808-8694.20140027
A síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) é considerada hoje como um problema público de saúde, acometendo até 32,8% da população adulta na cidade de São Paulo.1 Ela afeta especialmente pacientes do sexo masculino, obesos e com mais de 40 anos, sendo a idade e o índice de massa corporal (IMC) fatores de risco consideráveis.2
Se não diagnosticada e tratada corretamente, a SAOS pode levar à alta morbidade, como redução da função cognitiva3 e aumento do risco de acidentes, além de estar relacionada a doenças como a hipertensão arterial sistêmica,4 a síndrome metabólica, o infarto agudo do miocárdio e o acidente vascular cerebral.
Muitos fatores estão associados de forma complexa à fisiopatologia da SAOS. É comprovadamente relatada a diminuição do volume da via aérea, seja por alterações craniofaciais ou por obstrução nas vias aéreas (representada pela hipertrofia adenotonsilar, depósito de gordura em vias aéreas, etc.), associada a alterações neuromusculares nessa região.
A principal queixa relacionada à SAOS é a hipersonolência diurna, seguida por roncos, ganho de peso e atividade motora noturna excessiva. O estudo padrão-ouro para confirmar o diagnóstico é a polissonografia. O aparelho de pressão contínua em via aérea (Continuous positive airway pressure - CPAP) é um dos tratamentos mais frequentemente empregados5 pelas seguintes razões: é não invasivo, de baixo risco, relativamente simples de usar e altamente eficaz. Já existem estudos que demonstram que, uma vez que o paciente tenha aderido ao tratamento, o CPAP promove melhora significativa na qualidade de vida, reduzindo a sonolência diurna e outros sintomas6 e diminuindo consideravelmente os fatores de risco.4
Apesar de extremamente positivo, o efeito do tratamento com CPAP torna-se irrelevante quando o paciente não adere ao seu uso regular. Má adesão representa uma barreira ao tratamento efetivo da SAOS, uma vez que o uso regular do CPAP requer atitude proativa do paciente.6
Adesão ao CPAP é determinada pelos fatores: características da doença e do paciente, titulação prévia com o aparelho, características e tecnologia dos aparelhos, fatores psicossociais e econômicos.7 Como a interface nasal é a preferida, a resistência nasal e o uso de umidificadores também são fatores importantes para uma boa adesão ao aparelho.8 Além disso, o tratamento com CPAP deveria idealmente envolver uma equipe multidisciplinar, com médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, entre outros.9
Não adesão ao principal tratamento da SAOS representa um importante problema a ser encarado. O objetivo do presente estudo foi o de avaliar a adesão ao CPAP por pacientes seguidos no ambulatório de Distúrbios Respiratórios do Sono em um serviço público e estudar variáveis que poderiam estar correlacionadas à má adesão.
Como rotina do Ambulatório de Distúrbios Respiratórios do Sono do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, os pacientes recebem diagnóstico de SAOS e indicação de uso de CPAP após polissonografia noturna em laboratório do sono e avaliação clínica multidisciplinar feita por um otorrinolaringologista, um neurologista e um pneumologista. Nesse momento, a SAOS é esclarecida ao paciente, assim como suas causas e consequências, caso não seja tratada. As modalidades terapêuticas possíveis e viáveis são definidas e, caso indicado, o CPAP é introduzido ao paciente. Os objetivos do tratamento são orientados em termos de melhora da qualidade de vida e redução de riscos associados. O paciente é então encaminhado à polissonografia de titulação e instruído a retornar ao ambulatório assim que o aparelho estiver disponível.
Nesse segundo tempo, as condições do equipamento e da máscara são checados e regulados ao paciente. O paciente é orientado quanto ao uso, manutenção e limpeza do equipamento, além de possíveis efeitos adversos. Visitas periódicas são programadas e o paciente é instruído a trazer o CPAP para checagem de condições de manutenção e do horímetro, para avaliar adesão. O treinamento prático periódico é oferecido a pacientes que tenham queixas na tentativa de otimizar o uso do aparelho. Os pacientes são considerados aderentes caso usem o aparelho por um período médio igual ou maior do que 4 horas por noite.
Foram examinados 156 prontuários médicos pertencentes a pacientes com SAOS que haviam sido submetidos ao exame de polissonografia de titulação entre 2008 e 2011. Dados sobre adesão (número de horas de uso/dia), dados antropométricos, dados polissonográficos pré-tratamento e ocorrência de doenças associadas (especialmente cardiovasculares, pulmonares e endocrinológicas) foram obtidos dos prontuários médicos.
Apenas os prontuários com dados completos foram considerados para análise. Os pacientes com boa adesão (Grupo 1 - uso médio de 4 horas ou mais/noite) foram comparados aos pacientes com má adesão (Grupo 2 - uso médio de menos de 4 horas) em relação a sexo, idade, obesidade (avaliada clinicamente baseando-se no IMC observado na primeira consulta) e presença de comorbidades referidas pelo paciente (diabetes, hipertensão arterial sistêmica e dislipidemia), através do teste de contingência exato de Fisher. Idade, índice de apneia e hipopneias (IAH),diagnóstico e pressão de CPAP considerada como ideal no dia da polissonografia de titulação foram comparados entre si através do teste t de Student. O nível de significância estabelecido foi de p < 0,05 para todas as análises.
O presente estudo foi aprovado no CEP da instituição, sob o número CAAE 06340012.0.0000.5440.
Dos 156 prontuários médicos de pacientes submetidos à polissonografia de titulação, 31 foram excluídos pela presença de dados incompletos. Dos 125 pacientes avaliados, 68 referiam hipertensão arterial sistêmica. Obesidade estava presente em 45 pacientes, diabetes em 28, dislipidemia em 17, tabagismo em oito, e depressão em tratamento em outros oito (fig. 1). Dos pacientes analisados, 74 tiveram o CPAP indicado por SAOS grave, 37 por moderada, 13 por SAOS leve (por opção do paciente ou por não ter indicação a outro tratamento) e um por hipoventilação pulmonar secundária à doença neuromuscular. A idade média (± DP) era de 56,89 ± 16,01 anos; 57 eram do sexo masculino e 68 do feminino.
Todos os pacientes foram, em um primeiro momento, avaliados em relação à função nasal e tratados, quando necessário, seja clínica (uso de corticoides tópicos e soluções salinas) ou cirurgicamente (septoplastia, associada ou não à turbinectomia). Nenhum fazia uso de umidificador.
Dos 125 pacientes, 82 apresentaram boa adesão ao CPAP e 43 tinham uma baixa adesão. As causas citadas de má adesão foram vazamento (sete pacientes), problemas com a máscara (n = 7), melhoras dos sintomas sem o uso (n = 4), sensação de sufocamento (n = 3), sensação de boca seca (n = 2), insônia (n = 2), problema no aparelho (n = 1) e incômodo do parceiro (n = 1). Quinze pacientes não apresentaram qualquer justificativa para não fazer o uso regular do CPAP.
O Grupo 1 ficou composto por 82 pacientes (65%), com idade média de 56,2 ± 15,8, enquanto o Grupo 2 consistia de 43 pacientes (35%), com idade média de 57,9 ± 16,4. Não houve diferença significativa entre os grupos (p = 0,57).
A análise de contingência não evidenciou relação entre adesão ao CPAP e sexo (p > 0,05). No grupo dos pacientes adaptados, 41 eram do sexo masculino e 41 do feminino. Já o grupo 2 era composto de 17 homens e 27 mulheres.
A presença de hipertensão arterial sistêmica (45 no Grupo 1 vs. 23 no Grupo 2, p > 0,05), diabetes (16 no Grupo 1 vs. 12 no Grupo 2, p > 0,05), dislipidemia (13 no Grupo 1 e quatro no Grupo 2, p > 0,05) e obesidade (31 for Grupo 1 e 14 no Grupo 2, p > 0,05) foi maior no grupo bem adaptado, sem diferença estatística entre os grupos.
O IAH médio ao diagnóstico foi de 47,7 ± 40,7 para o Grupo 1, valor significativamente maior (p = 0,04) do que o obtido para o Grupo 2 (35,7 ± 25,4), com diferença média de 12,0 (95% CI 23,81; 0,29) (fig. 2).
Figura 2 - Comparação de IAH entre pacientes com e sem boa adesão ao CPAP. Análise realizada pelo teste t de Student, tendo sido considerado estatístico quando p < 0,05.
A pressão média de CPAP estipulada pela titulação foi de 10,3 ± 3,04 cm de água para o Grupo 1 e 11,1 ± 7,11 cm de água para o Grupo 2, sem diferença estatística significativa entre os grupos (p = 0,56) (fig. 3).
A SAOS é uma doença altamente prevalente e grave.1-4 Os eventos de apneias e hipopneias podem causar hipoxemia, despertares noturnos e ativação do sistema nervoso simpático, eventos esses associados a queixas cognitivas, hipertensão, diabetes mellitus tipo 2, infarto agudo do miocárdio e síndrome metabólica.8
Muitos estudos confirmaram que o uso do CPAP melhora objetivamente o índice de apneia e hipopneias e dos sintomas de sonolência.10-12 No entanto, apesar do comprovado benefício do uso, as taxas de adesão são preocupantes. Matthews et al.10 referiram que 15% a 30% dos pacientes rejeitam o uso de CPAP no início do tratamento, e que a taxa de adesão em longo prazo é, na média, de 50%. Outros autores13-18 descreveram que a adesão ao CPAP varia de 28% a 83%, e comentam que esta tende a diminuir com o evoluir do tempo, especialmente em casos onde o paciente não é seguido periodicamente. Segundo eles, um dos principais fatores que influenciam é a orientação do uso correto do aparelho quando o paciente o adquire, e seguimentos periódicos para confirmação de que o paciente o esteja usando, além de corrigir eventuais erros ou dúvidas que aconteçam no período.
No presente estudo, a taxa de adesão foi de 65% após um período mínimo de um ano de uso. Esse resultado relativamente bom deu-se, provavelmente, porque os pacientes são treinados e orientados em relação à importância do uso do aparelho para a melhora da qualidade de vida e diminuição dos fatores de risco, além de retornos periódicos, para avaliação das condições do aparelho e checagem do uso pelo horímetro, mesmo estando o paciente bem adaptado por um período longo de tempo.
Não há consenso sobre a influência dos dados demográficos na adesão ao CPAP. No presente estudo, não observamos influência do sexo na adesão ao mesmo, o que vai de acordo com os dados referidos por Budhiraja et al.19 No entanto, houve um predomínio de mulheres dentre os pacientes que compareceram com o CPAP em nosso ambulatório, apesar do predomínio franco da SAOS em homens. Villar et al.20 observaram melhor adesão ao CPAP entre as mulheres.
Também não observamos influência da idade na adesão ao CPAP, enquanto que Villar et al.20 referiram que pacientes mais novos e de pior nível socioeconômico apresentam pior adesão ao aparelho. Essa discrepância entre os resultados pode ser explicada pelo fato de que a população do presente estudo não incluía pacientes muito novos, que são provavelmente os de pior adesão. A influência dos fatores socioeconômicos na aquisição do aparelho foi minimizada em nosso estudo devido a um acordo entre o hospital, a regional de saúde e prefeituras da DRSXIII - São Paulo, sendo que as prefeituras alugam os equipamentos para o paciente e pagam por esse tratamento, desde que bem indicado.
É razoável assumir que pacientes mais sintomáticos sejam os que aderem melhor ao tratamento. Estudos sobre adesão ao CPAP sugeriram que pacientes com pior IAH poderiam apresentar melhor adesão ao aparelho.8,21 O presente estudo, assim como o de Wild et al.,22 confirma essa suspeita. Poderíamos especular que pacientes com pior IAH sejam mais aderentes ao tratamento por serem mais sintomáticos e por tornarem-se especialmente preocupados em desenvolver doenças associadas.
Shapiro et al.13 referiram que o IMC e o IAH são fatores preditivos para melhor adesão ao CPAP. No entanto, não observamos relação entre adesão ao tratamento e obesidade.
O tratamento com CPAP é importante na redução de riscos de possíveis doenças associadas com a SAOS. No entanto, a adesão ao equipamento continua sendo um desafio terapêutico. Nesse sentido, a educação continuada do paciente e seguimento do mesmo por uma equipe multidisciplinar especializada deve ser estimulada em centros especializados no tratamento de pacientes com SAOS.
Concluímos que aproximadamente dois terços dos pacientes com SAOS estudados foram adequadamente aderentes ao tratamento com CPAP em um centro onde uma equipe multidisciplinar oferece monitorização contínua e em longo prazo dos pacientes. Observamos associação entre adesão ao CPAP e intensidade do IAH, e pacientes com apneias mais graves são ao que apresentam melhor adaptação a esse tratamento.