versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.4 São Paulo out./dez. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1789
As vias neurais que controlam a função do trato urinário inferior são organizadas como simples circuitos ligadesliga, que mantêm uma relação recíproca entre a bexiga urinária e o meato uretral. As medidas da pressão intravesical durante o enchimento vesical em humanos e animais revelaram pressões vesicais baixas e relativamente constantes quando o volume urinário era inferior ao limiar para induzir a micção. Durante o enchimento vesical, a atividade do esfíncter uretral aumenta e, portanto, eleva a resistência à saída que contribui para a manutenção da continência urinária(1).
A via de sinalização óxido nítrico (NO)-cGMP desempenha um papel crucial na regulação de vários processos fisiopatológicos em mamíferos. No trato urinário inferior, a atividade da NO sintase foi detectada no urotélio, músculo liso, músculo estriado, nervos e vasos sanguíneos(2,3). A ativação da via de sinalização NOcGMP em geral resulta em respostas inibidoras ao nível da uretra e esfíncter uretral, assim como do músculo liso detrusor (MLD)(4–6). Algumas evidências sugerem que a alteração da via de sinalização NO-cGMP contribui para a hiperatividade vesical(1). Bexigas dilatadas hipertróficas e meatos uretrais disfuncionais foram encontrados em camundongos com deleção dirigida do gene para a NO sintase neuronal(7). A deleção do gene para a proteína quinase I dependente de cGMP (cGKI) também exibiu um padrão de micção irregular e caracterizado por frequentes contrações esvaziadoras e não esvaziadoras, assim como intervalos mais curtos entre as contrações(8). Recentemente, demonstramos que o tratamento durante quatro semanas com o bloqueador da NO sintase L-NAME causa hipersensibilidade do MLD in vitro aos agonistas muscarínicos por meio de aumentos nos níveis de [3H]-inositol-fosfato, acompanhada por reduções do relaxamento do MLD mediadas por receptor β3 adrenérgico(9).
A guanilil ciclase solúvel (sGC) é uma enzima de transdução do sinal amplamente distribuída que, sob a ativação pelo óxido nítrico (NO), converte GTP no segundo mensageiro cGMP, o qual exerce seu efeito ativando as proteínas quinase I e II dependentes de cGMP, canais iônicos controlados por cGMP e/ou fosfodiesterases reguladas por cGMP Os ativadores da sGC não dependentes do NO surgiram como ferramentas valiosas para elucidar a fisiopatologia da via de sinalização NO-sGC-cGMP. BAY 41-2272, conhecido como potente estimulador da sGC não dependente de NO(10), causa relaxamento de vários músculos lisos vasculares in vitro(11–13). Esse composto também previne a hipertensão arterial em ratos espontaneamente hipertensos(10), assim como o infarto do miocárdio e hipertrofia de cardiomiócitos em ratos sob bloqueio crônico do NO(14). Nas preparações uretrais em porcos e coelhos in vitro, o composto YC-1 (relatado como potente estimulador da sGC não dependente de NO) e o composto BAY 41-2272 causam relaxamentos dependentes da concentração(15,16). Recentemente, BAY 41-2272 demonstrou relaxar o MLD in vitro de modo significativo devido ao acúmulo de cGMP, e um mecanismo adicional envolvendo o bloqueio da entrada de Ca2+ independentemente da produção de cGMP também foi relatado(17). Entretanto, não há estudos que investiguem os possíveis efeitos benéficos de BAY 41-2272 em condições de disfunção vesical. Portanto, neste estudo, projetamos experimentos para avaliar inicialmente os efeitos do tratamento crônico com o bloqueador da NO sintase, o L-NAME, nos parâmetros cistométricos e, em segundo lugar, os efeitos benéficos do tratamento oral em longo prazo com BAY 41-2272 na disfunção vesical de ratos cronicamente deficientes de NO.
Os protocolos experimentais foram aprovados pelos Princípios Éticos em Pesquisa Animal do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA). Foram usados ratos machos Wistar (220 - 310 g). O peso corporal e a pressão arterial sistólica foram avaliados semanalmente durante quatro semanas com o uso de método modificado do manguito na cauda, em animais conscientes.
Os animais foram divididos em quatro grupos experimentais (n = 5 cada), como se segue:
Controle: ratos que receberam apenas água da torneira durante quatro semanas;
80% DMSO: ratos que receberam gavagem oral diária com sulfóxido de dimetila a 80% (DMSO) durante quatro semanas;
L-NAME: ratos que receberam L-NAME (20 mg/rato/dia, administrado na água de beber mais gavagem oral diária de DMSO 80% durante quatro semanas);
L-NAME + BAY 41-2272: ratos que receberam concomitantemente L-NAME (20 mg/rato/dia, administrado na água de beber) e BAY 41-2272 (10 mg/kg/dia, dissolvido em DMSO 80% e administrado por gavagem oral diária) durante 4 semanas;
BAY 41-2272: ratos que receberam BAY 41-2271 isoladamente (10 mg/kg/dia dissolvido em DMSO 80%, administrado por gavagem oral diária) durante 4 semanas.
O volume de água bebido por cada rato foi de, aproximadamente, 50 ml/rato/dia. As doses de L-NAME e BAY 41-2272 foram escolhidas de acordo com nossos estudos prévios(14,18).
Os ratos foram anestesiados com injeção intraperitoneal de uretano (1,2 g/kg) e a artéria carótida foi canalizada para monitoramento da pressão arterial média. Foi realizada uma incisão de 1 cm ao longo da linha média do abdome. A bexiga foi exposta e uma agulha tipo butterfly (19 G) foi inserida na cúpula vesical e conectada a um transdutor de pressão e a uma bomba de infusão. Antes de iniciar a cistometria, a bexiga foi esvaziada. A cistometria contínua (CMGs) foi realizada com a infusão de solução salina na bexiga dos ratos a uma velocidade de 4 ml/hr. Foram avaliados os seguintes parâmetros: limiar de pressão (TP) em que a micção iniciava; pressão de pico (PP) durante a micção; limiar de volume (VT), que foi calculado pelo tempo necessário para a primeira micção x 4 (ml)/60 minutos; frequência de micção calculada como ciclos por minuto (FM); pressão vesical basal (BP); complacência (ΔVolume/ΔPressão) e número de contrações não esvaziadoras (NVCs). As NVCs foram consideradas como contrações vesicais espontâneas maiores que 4 mmHg acima da pressão basal e que não resultaram em micção.
Os dados são expressos como média ± erro padrão da média (EPM) de n experimentos. O programa Instat (GraphPad Software, Inc.) foi usado para a análise estatística. A significância estatística das diferenças foi estudada pela análise de variância (ANOVA) e, posteriormente, o método de Bonferroni foi empregado. P < 0.05 foi aceito como significativo.
L-NAME (N-Nitro-L-arginina metil éster), uretano e dimetilsulfóxido foram obtidos da Sigma Chemicals Co. (St. Louis, MO, EUA). O composto BAY 41-2272 (5-ciclopropil-2-[1-(2-fluoro-benzila)-1H-pirazolo[3,4-b] piridina-3-yl]-pirimidina-4-ilamina) foi fornecido pelo Pharma Research Center, Bayer AG (Wuppertal, Alemanha).
A Figura 1 mostra que o tratamento durante quatro semanas com L-NAME aumentou em 75% a pressão arterial média (PAM) em comparação com o grupo controle. O cotratamento com BAY 41-2272 evitou a hipertensão induzida por L-NAME (p < 0,001). Os animais que receberam apenas BAY 41-2271 não mostraram qualquer diferença na PAM em comparação com o grupo controle. Não houve diferenças no peso corporal entre os grupos experimentais (318 ± 10; 313 ± 5; 312 ± 6; 314 ± 18 e 310 ± 5 g para os grupos controle, DMSO, L-NAME, BAY 41-2272 e LN+ BAY 41-2272, respectivamente).
Figura 1 Efeito de BAY 41-2272 (10 mg/kg/dia) na hipertensão arterial média induzida por administração crônica de N-nitro-L-arginina metil éster (L-NAME; 20 mg/rato/dia) em ratos. A pressão arterial média foi medida ao final da 4a semana nos grupos Controle, DMSO80%, L-NAME (LN), BAY e LN+BAY. Os resultados são expressos como média ± EPM (n = 5). *P < 0,001 comparado ao grupo controle, **p < 0,001 comparado ao grupo L-NAME (LN).
O tratamento a longo prazo com L-NAME causou aumento significante no número de NVCs em comparação aos grupos controle ou DMSO (p < 0,001). O cotratamento com BAY 41-2272 quase normalizou essas contrações vesicais espontâneas durante a fase de enchimento em comparação com o grupo L-NAME (p < 0,05; Figura 2A). O VT também estava significantemente elevado nos ratos tratados com L-NAME (p < 0,001), e o cotratamento com BAY 41-2272 não alterou significantemente esse parâmetro (Figura 2B).
Figura 2 Alterações nas contrações não esvaziadoras (A) e limiar de volume (B) após tratamento a longo prazo com BAY 41-2242 (10 mg/kg/dia) em ratos cronicamente tratados com N-nitro-L-arginina metil éster (L-NAME; 20 mg/rato/dia). Os resultados são expressos como média ± EPM (n = 5). *P < 0,01, **p < 0,001 comparado ao grupo controle, #p < 0,001, ##p < 0,05 comparado ao grupo L-NAME (LN).
A BP não mudou significantemente entre os grupos (Figura 3A). Entretanto, a TP e a PP aumentaram 69 e 44%, respectivamente, após o tratamento crônico com L-NAME (p < 0,001) em comparação com os grupos controle ou DMSO (Figuras 3B e 3C). O cotratamento com BAY 41-2272 quase normalizou (p < 0,001) a TP e PP elevadas observadas no grupo L-NAME. A Figura 4 mostra traços típicos de contrações espontâneas durante a fase de enchimento dos ciclos miccionais, indicando a PP durante a micção em todos os grupos experimentais.
Figura 3 Alterações na pressão basal (A), limiar (B) e de pico (C) após tratamento a longo prazo com BAY 41-2242 (10 mg/kg/dia) em ratos cronicamente tratados com L-NAME (LN; 20 mg/rato/dia). Os resultados são expressos como média ± EPM (n = 5). *P < 0,001 comparado ao grupo controle, **p < 0,001 comparado ao grupo L-NAME (LN).
Figura 4 Traços representativos mostram contrações espontâneas e pressão de pico (seta) durante a fase de enchimento para os grupos (A) DMSO, (B) L-NAME (LN; 20 mg/rato/dia). (C) BAY 41-2272 (10 mg/kg/dia) e (D) LN + BAY 41-2272
A frequência miccional diminuiu significantemente nos ratos tratados com L-NAME em comparação com os grupos controle ou DMSO (p < 0,001; Figura 5A). A coadministração com BAY 41-2272 preveniu a redução na frequência de micção encontrada no grupo L-NAME (LN). A complacência não foi alterada nos grupos experimentais (Figura 5B).
Figura 5 Alterações na frequência de micção (A) e complacência (B) após tratamento a longo prazo com BAY 41-2242 (10 mg/kg/dia) em ratos cronicamente tratados com L-NAME (LN; 20 mg/rato/dia). Os resultados são expressos como média ± EPM (n = 5). *P < 0,001 comparado ao grupo controle, **p < 0,01 comparado ao grupo L-NAME (LN).
Este estudo é o primeiro a mostrar que o bloqueio crônico do NO causa aumentos significativos nas NVCs, TP e PP, juntamente com reduções na frequência das micções. O cotratamento com BAY 41-2272 restaurou todos esses parâmetros cistométricos para os valores iniciais.
As alterações patológicas causadas pela deficiência crônica do NO são bem documentadas nas doenças cardiovasculares. Entretanto, não há estudos avaliando o efeito da deficiência crônica de NO no trato urinário inferior. Na verdade, a maioria dos estudos funcionais relata o uso de inibidores da NO sintase administrada de forma aguda nos animais(5), ou adicionada in vitro a preparações de banho de órgãos (MLD estimulado eletricamente)(19–20). Neste estudo, em ratos submetidos à cistometria contínua, demonstramos que o tratamento crônico com L-NAME aumentou significativamente NVCs, VT, TP e PP. O tratamento crônico com LNAME também diminuiu a frequência de micções em comparação com os animais controles. Nossos achados são consistentes com um estudo prévio demonstrando que a inibição aguda do NO elimina completamente o reflexo de relaxamento uretral durante a micção em ratos, e esse efeito foi revertido pela administração do substrato para a síntese de NO, a L-arginina(5). A inibição aguda da óxido nítrico sintase neuronal (nNOS) em ratas ooforectomizadas também reduziu significativamente a frequência de micções, o que ocorreu juntamente com aumento do volume residual(21). Um estudo mais recente mostrou que camundongos machos mutantes Immp2l (animais com baixa biodisponibilidade de NO em razão da produção de espécies de oxigênio altamente reativo) exibem menor volume miccional e maior volume pós-miccional do que camundongos do tipo selvagem(22). Estudos morfométricos mostraram que o tratamento com L-NAME durante quatro semanas causou aumento da espessura da musculatura lisa do trígono vesical sem alterar a espessura do MLD(9). A densidade de nervos imunorreativos à sintase do NO também é maior na musculatura lisa do trígono vesical e uretra do que no MLD(23). Portanto, é provável que a falta de NO, principalmente no nível da uretra, resulte em estado de intensa contração, dessa maneira reduzindo a liberação da urina.
Os benefícios do tratamento de longo prazo com BAY 41-2272 foram relatados anteriormente no sistema cardiovascular, no qual o agente evitou aumento da pressão arterial, infarto do miocárdio e hipertrofia cardiovascular em um modelo de hipertensão com baixo NO em ratos(14). Trabalhos realizados anteriormente em nosso laboratório também mostraram que o BAY 41-2272 relaxa a uretra isolada de maneira dependente da concentração, sinergicamente como inibidor da fosfodiesterase-5, a sildenafila(16). Neste estudo, o co-tratamento com BAY 41-2272 atenuou significativamente os aumentos de NVCs, TP e PP, assim como a frequência reduzida de micções observada em ratos tratados com L-NAME, o que indica que a estimulação direta de sGC de maneira independente de NO por BAY 41-2272 contrapõe-se à disfunção vesical em ratos deficientes de NO. Em estudos realizados anteriormente, a ativação da via de sinalização de NO-cGMP com o doador de NO, DEA-NO, e o análogo de cGMP permeável, 8-BrcGMP, atenuou a atividade elétrica espontânea em células intersticiais de Cajal recém dispersas, principalmente pela redução das ondas de Ca+2(24). Mais recentemente, demonstrou-se que o doador de NO, SNAP, diminui a amplitude e a frequência de contrações espontâneas em tiras de bexiga hiperativa de ratos no período neonatal de maneira dependente de cGMP(25). Portanto, é provável que o acúmulo de cGMP por BAY 41-2272 leve ao relaxamento na porção uretral, facilitando a liberação da urina. A administração de doadores de NO em pacientes com dissinergia do esfíncter do detrusor ou em homens saudáveis causou reduções na resistência ao fluxo de saída vesical em estudos sobre fluxo de pressão(26,27). Em ratos, a aplicação intravesical de S-nitroso-N-acetilpenicilamina (composto doador de NO) diminuiu a hiperatividade vesical induzida pelo irritante químico ciclofosfamida(28).
O tratamento a longo prazo com o ativador de sGC independente de NO, BAY 41-2272, restaura os aumentos das NVCs e das pressões intravesicais observados em ratos cronicamente deficientes de NO. Portanto, os ativadores diretos de sGC, tais como BAY 41-2272, poderiam trazer efeitos benéficos para o tratamento dos sintomas de disfunção vesical.