versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 no.7 Rio de Janeiro 2017 Epub 27-Jul-2017
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00210216
O tabagismo é uma séria ameaça à saúde global (e a principal causa de morte que pode ser prevenida), visto que atualmente causa quase 6 milhões de mortes todo ano por consumo direto ou exposição indireta, das quais 1 milhão ocorre nas Américas 1. Diante dessa realidade e da natureza viciante do tabaco, é necessário introduzir políticas públicas que visem à redução (ou extinção) do uso deste produto, sobretudo, do cigarro 2,3. Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deu início, na década de 1990, às negociações do seu primeiro tratado multilateral voltado para a proteção do direito humano à saúde, por meio da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) 3, em vigor desde 27 de fevereiro de 2005. Um marco na área de Direitos Humanos por colocar o direito à saúde acima de acordos de comércio e tratados sobre propriedade de marca, o CQCT recomendou uma série de medidas para a redução da demanda de tabaco, especialmente em relação ao controle do consumo (i.e., educação, tratamento de dependência), comercialização (i.e., preços, impostos, conteúdo, embalagem, publicidade), e produção contra a exposição à fumaça do tabaco na sociedade. Cabe ressaltar que a CQCT também prevê medidas para a redução da oferta de tabaco, proteção ao meio ambiente, questões relacionadas à responsabilidade, bem como cooperação científica e técnica, e comunicação de informação.
A implementação das mudanças sugeridas pela CQCT incluiria a proibição da comercialização de tabaco (sobretudo, cigarros) em embalagens que apresentassem cores e logotipos corporativos associados a marcas 3. Essas seriam substituídas por novas embalagens de dimensões padronizadas cujo fundo teria uma única cor, com frases e imagens de advertências sobre os malefícios do tabaco para a saúde. Da antiga identidade visual restariam somente os nomes das marcas, porém sempre impressos numa mesma fonte, cor e tamanho, pois as embalagens de cigarros e demais derivados do tabaco influenciam a percepção dos indivíduos e, assim, são capazes de “enganar” os consumidores de tais produtos 3.
Ao ver ameaçado um de seus instrumentos promocionais, a indústria tabagista começou uma série de movimentos contrários à adoção de embalagens padronizadas, argumentando que a efetividade de tais mudanças não foi provada cientificamente e que não teria efeito real no consumo de tabaco 4. Em reação a esses movimentos, uma série de estudos com fumantes e não fumantes foram realizados para investigar o efeito psicológico (i.e., percepção), social (i.e., apelo social) e biológico (i.e., ativações neurológicas) das imagens das embalagens na prevalência e prevenção. Apresentar o resultado desses estudos - portanto, o argumento científico por trás dessa ação específica da CQCT que motivou projetos de lei no Brasil e no mundo - é o objetivo deste artigo.
Em geral, estudos mostram que os fumantes consideram cigarros menos nocivos à saúde do que os não fumantes 5. Ainda assim, embalagens padronizadas de tabaco são geralmente percebidas como tendo níveis mais altos de toxicidade e de risco à saúde quando comparadas a embalagens com marca 6,7, reduzindo a demanda por tabaco 8. Estudos de neuroimagem mostram que embalagens com marca ativam o processamento de áreas relacionadas à gratificação (i.e., corpo estriado ventral, giro frontal inferior, e córtex pré-frontal ventromedial) 9,10.
Outros estudos sugerem que as advertências sobre os malefícios do tabaco são mais facilmente percebidas quando apresentadas por meio de embalagens padronizadas 11,12. Uma meta-análise comparando embalagens com imagens e mensagens de texto, concluiu que as advertências gráficas são mais eficazes do que apenas mensagens de texto advertindo para reduzir o consumo de tabaco 13. A inclusão de advertências gráficas produz maior ativação em áreas do cérebro responsáveis por decisões cognitivas e emocionais (i.e., córtex pré-frontal medial e amígdala) 14,15, bem como áreas envolvidas no processamento de autorregulação (i.e., córtex pré-frontal medial) que é associado à motivação para a extinção do comportamento de consumo 14,16. Sobre a cor e o formato das embalagens, cabe ressaltar que as com o fundo branco (tanto as padronizadas quanto as convencionais com marcas) e aquelas em formatos mais atraentes (por exemplo, batom para mulheres) sugerem menores riscos à saúde quando comparadas com as padronizadas em cor marrom ou com a marca em fundos de diferentes cores 17,18.
Do ponto de vista social, estudos demonstram que as embalagens padronizadas reduzem o apelo e a atratividade do consumo de tabaco, bem como produzem uma percepção negativa do sabor do cigarro (comparado a cigarros em embalagens com marca) 19,20,21,22. A percepção a respeito dos fumantes também é alterada: fumantes de tabaco com embalagens padronizadas são percebidos como viciados, fora de moda, e pertencentes a uma classe social mais baixa do que fumantes de embalagens com marca 7,23,24.
Tendo em vista tantas evidências 25, alguns países passaram a adotar políticas públicas para mudar as embalagens de tabaco. Em pouco mais de 15 anos, 105 países adotaram políticas públicas para o controle do consumo de tabaco, por meio de imagens gráficas em carteiras de cigarros e demais derivados do tabaco. O Brasil foi o segundo país no mundo a sugerir o uso de imagens gráficas em maços de cigarros com advertências sobre os malefícios para a saúde dos produtos do tabaco, em 2002, ainda antes da ratificação pelo país da CQCT 26. Desde então, foram estabelecidas diferentes diretrizes para o controle do tabagismo, tais como as restrições que incluíram a proibição de propagandas de cigarros na TV e nos demais veículos de comunicação em massa, como por exemplo, revistas, jornais, outdoors e rádios. No entanto, ainda não houve no país a adoção de uma política pública para a aplicação de embalagens padronizadas simples nos produtos derivados do tabaco, sugerida pelos artigos 11 e 13 do CQCT 3. Entretanto, a combinação de embalagens com marca e advertências gráficas parece transmitir uma mensagem inconsistente para o consumidor em termos de riscos à saúde 24. A recomendação da OMS de uma embalagem completamente padronizada parece ser ideal para promover mudanças de hábitos saudáveis à população 25.
A Austrália foi o primeiro país a adotar medidas de padronização total das embalagens por meio do Tobacco Plain Packaging Act 2011, em vigor desde 2012. O Reino Unido e a França iniciaram o processo de implementação no ano de 2016, e a Hungria tem planos para o ano de 2018. Pelo menos outros 14 países (por exemplo, Canadá, Noruega, África do Sul, Uruguai, Nova Zelândia, Tailândia) estão desenvolvendo processo formal ou considerando formalmente a implementação de embalagens padronizadas 27.
Por ora, no Brasil há três Projetos de Lei sobre o tema tramitando no Congresso Nacional. O primeiro deles, Projeto de Lei do Senado nº 103/2014 (https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/116679), propõe o uso de embalagens padronizadas que não contêm qualquer elemento de cunho publicitário, somente o nome da marca escrito em cor preta sobre um fundo branco e advertências sobre os malefícios do tabagismo. O Projeto de Lei nº 1.744/2015 (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1301095) é semelhante ao projeto anterior, mas deixa a definição da cor padronizada para as superfícies externa e interna das embalagens e, ainda, da cor, tamanho e fonte da impressão do nome marca para um regulamento próprio a ser emitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Por fim, o Projeto de Lei do Senado nº 769/2015 (https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124339?o=d) também propõe a implantação de embalagens genéricas com base em padrões regulamentados pela Anvisa, mas ainda agrega ao texto a proposta de proibir aditivos que conferem sabor aos cigarros; de transformar em infração de trânsito o fumo em automóveis com a presença de passageiros menores de 18 anos; e de vedar a propaganda de cigarros ou qualquer outro produto fumígeno.
Tais projetos são condizentes com os resultados de pesquisas internacionais, bem como com pesquisas realizadas no Brasil que mostram que o uso de embalagens padronizadas reduz o apelo social do consumo de tabaco em jovens e adultos jovens, em comparação ao uso de embalagens parcialmente padronizadas (cujas dimensões são padronizadas com o fundo de uma única cor, mas contendo informações adicionais sobre o conteúdo, por exemplo, o sabor) e ao uso de embalagens com marcas em destaque 22. Entretanto, não há qualquer previsão para a aprovação desses projetos de lei, uma vez que há deputados que defendem os interesses da indústria tabagista e que recorrem a diversas estratégias para emperrar o prosseguimento de desses projetos, tal como já observado pela coordenadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Cetab/Ensp/Fiocruz), Valeska Figueiredo 28. Diante da necessidade da proteção do direito humano à saúde e à luz do consenso científico, não parece fazer qualquer sentido esse tipo de postura. Muitas enfermidades que são causadas pelo uso contínuo do tabaco podem ser prevenidas (ou minimizadas) por meio de ações governamentais baseadas nas recomendações da OMS para a adoção de embalagens padronizadas. Os estudos revisados aqui demonstram evidência promissora da efetividade na redução do consumo de produtos do tabaco, do uso de embalagens padronizadas com imagens gráficas e presença de advertências sobre os malefícios para a saúde dos mesmos.