versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.3 Rio de Janeiro 2019 Epub 05-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0373
A Atenção Primária à Saúde (APS) é considerada pela literatura internacional eixo norteador da organização dos sistemas de saúde, pautada no acesso universal aos serviços. Os princípios da APS, formulados na Conferência da Organização Mundial da Saúde, realizada em Alma Ata, contemplam a atenção ao primeiro contato, a longitudinalidade, a integralidade e coordenação do cuidado, a orientação familiar e comunitária, o reconhecimento das necessidades das pessoas em função do contexto físico, econômico e cultural.1-3
No Brasil, a Estratégia Saúde da Família (ESF) integra a Política Nacional da Atenção Básica, sendo reconhecida como eixo prioritário para reorganização, fortalecimento e consolidação da Atenção Primária à Saúde (APS), por favorecer a reorientação do processo de trabalho com maior potencial de ampliar a resolutividade e impactar na situação de saúde das pessoas e coletividades.4,5
A ESF contempla um conjunto de ações, que constituem a base da organização das redes de atenção, priorizando a promoção, a proteção e a recuperação de saúde, de forma integral e continuada, desenvolvidos com base no reconhecimento das necessidades da população e vínculo formado entre usuários e profissionais.6,7
As mudanças propostas pela ESF, com vistas à reestruturação da APS e consolidação do Sistema Único de Saúde, trazem novos e constantes desafios aos trabalhadores.8 A complexidade dos ambientes de trabalho e as condições disponíveis para realização desta podem interferir na segurança e qualidade da assistência.9,10
Ademais, ao mesmo tempo em que se exige preparo e capacitação, muitas vezes, os profissionais não encontram, no ambiente de trabalho, condições favoráveis para o desempenho de trabalho humanizado, competente e resolutivo, fatores que os expõem a desgastes físicos e mentais,11 além de promover implicações aos sentidos atribuídos ao trabalho e cuidado prestado à comunidade.
Acerca dessa problemática, publicações nacionais e internacionais têm destacado a importância de compreender os eventos, fatores ou situações adversas que podem causar danos e trazer riscos à saúde física mental e social do trabalhador e ao desempenho das atividades deste.12,13 Considera-se a adversidade como a experiência de eventos e circunstâncias da vida que podem ameaçar o desenvolvimento saudável.14
Destarte, pesquisas têm salientado a relevância de valorizar a percepção subjetiva e o sentido atribuído às vivências de adversidade presentes nos diferentes contextos, tendo em vista que a interpretação dos profissionais sobre as próprias experiências pode trazer implicações aos sentidos atribuídos ao trabalho, assim como à maneira de lidar com as adversidades.11-12,15
A produção científica sobre o conceito de sentidos do trabalho engloba diversas abordagens teóricas e metodológicas. A definição de um trabalho com sentido consiste em desafio, uma vez que contempla subjetividades, interpretação, além de envolver fatores sociais, culturais, psíquicos e identitários.16
Para fins deste estudo, assume-se Morin17,18 como referencial teórico sobre os sentidos do trabalho, que postula características necessárias para que um trabalho tenha sentido, quais sejam: ser feito de maneira eficiente e levar a um resultado útil; possibilitar satisfação na realização das tarefas; permitir que o trabalhador utilize o próprio talento e potencial com autonomia; ser moralmente aceitável; ser fonte de relações humanas satisfatórias; possibilitar segurança financeira, ligada a um salário que permita garantir a sobrevivência e manter as pessoas ocupadas, evitando a ansiedade. Desta forma, quando o trabalho tem sentido, ele passa a ser desempenhado com satisfação e comprometimento.
Ao considerar a importância da Atenção Primária à Saúde e respectivo potencial significativo de expansão, por meio da Estratégia Saúde da Família, este estudo se justifica pela necessidade de reflexão sobre as situações de adversidade nos ambientes laborais e as implicações aos sentidos do trabalho dos profissionais, que podem trazer repercussões ao cuidado prestado à população.
Desse modo, pode ser possível fornecer subsídios sobre a realidade do trabalho no ambiente laboral da Atenção Primária à Saúde e refletir sobre estratégias de melhorias na organização e nas condições de trabalho dos profissionais, além de ações voltadas ao bem-estar e à saúde mental dos trabalhadores. Diante do exposto, ao pensar sobre a relevância de se discutir a temática, o estudo objetivou apreender as vivências de adversidade de profissionais da Atenção Primária à Saúde e respectivas implicações para os sentidos do trabalho.
Trata-se de estudo de caso único, de natureza qualitativa. A opção pelo estudo de caso como referencial metodológico justifica-se quando se deseja estudar em profundidade determinado fenômeno contemporâneo, social e complexo, inserido em contexto de vida real, permitindo ao investigador a apreensão de características significativas dos eventos, sejam estes individuais, grupais, organizacionais, sociais, políticos entre outros.19
A realização de estudo de caso requer a utilização de diferentes fontes de evidência, as quais podem incluir documentos, registros em arquivos, entrevistas, observações, filmes, fotografias, técnicas projetivas, entre outras. As variadas fontes de evidência permitem a triangulação dos dados e a possibilidade de linhas convergentes de investigação, propiciando descobertas mais apuradas e fidedignas, atendendo, deste modo, aos critérios relativos à validade de constructo.19
O estudo foi desenvolvido em todas as unidades da Estratégia Saúde da Família que compõem a Rede de Serviços da Atenção Primária à Saúde em um município do alto sertão do Estado da Paraíba, Brasil, o qual dispõe de 23 unidades da Estratégia da Família, sendo 17 localizadas na zona urbana e seis na zona rural.
Optou-se por entrevistar um participante de cada categoria profissional que compunha a equipe básica em cada unidade da ESF. A equipe básica da ESF, conforme Portaria 2.436, de 11 de setembro de 2017, deve ser composta por um médico, um enfermeiro, um técnico em enfermagem e agentes comunitários, a depender do contigente populacional do território.5 Em se tratando dos ACS, foi realizado sorteio de um participante por unidade da ESF.
Para inclusão dos participantes, foi adotado o critério de tempo de trabalho maior ou igual a seis meses, tempo necessário para que os profissionais pudessem vivenciar as dinâmicas dos serviços e estabelecer maior proximidade com a comunidade. Excluíram-se profissionais em licença, férias ou afastamento durante o período de coleta.
A coleta dos dados ocorreu de fevereiro a agosto de 2017, sendo utilizadas duas fontes de evidência: a entrevista e a técnica do Gibi. Como primeira fonte de evidência, realizou-se entrevista orientada por roteiro semiestruturado que incluiu a caracterização do perfil sociodemográfico dos participantes, questões abertas pertinentes ao objeto de estudo, enfocando aspectos organizacionais, ambiente de trabalho, relações interpessoais e vivências de adversidade que trazem implicações aos sentidos e à realização do trabalho. As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora, individualmente, em ambiente reservado, na própria unidade da ESF, respeitando a disponibilidade dos profissionais, com duração entre 30 e 90 minutos.
A técnica do Gibi, utilizada como segunda fonte de evidência, consiste em estratégia lúdica, na qual os sujeitos têm a possibilidade de se expressar sobre uma situação problemática real que vivenciam no cotidiano, por meio de analogias entre figuras de revistas em quadrinhos do tipo gibi.20
As Histórias em Quadrinhos (HQ) são formas narrativas, essencialmente contextuais, que devido ao caráter lúdico, têm o potencial de atingir sentimentos e emoções, permitindo melhor aproximação e reflexões a respeito do objeto em estudo, possibilitando aos participantes expressar, de maneira mais espontânea, aspectos subjetivos que poderiam não ser abordados nas formas tradicionais.21
Pesquisas qualitativas utilizaram a técnica do Gibi como estratégia de coleta de dados, sendo estabelecido como critério de escolha das revistas a edição atual da Turma da Mônica, disponível em bancas de revistas durante o período de coleta.22-24 Os gibis da Turma da Mônica oportunizam aos participantes a vinculação de temas de pesquisa com situações do cotidiano, de forma espontânea e descontraída, facilitando a captar aspectos subjetivos da realidade.
Destaca-se que para fins do presente estudo, a técnica do Gibi foi utilizada considerando os critérios utilizados em outras pesquisas,25 tanto no que se refere à aplicação, quanto à opção metodológica.22-24
Estudo descreve as etapas para realização da técnica do Gibi e destaca as experiências exitosas com a utilização na prática assistencial em enfermagem, no ensino e como estratégia de coleta de dados, em pesquisas qualitativas.25 Outro estudo realizado por Albuquerque et al.26 relata a experiência sobre o uso da técnica durante disciplina vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFMG.
Para realização da técnica, os participantes foram inicialmente orientados sobre as etapas. Em seguida, os gibis foram disponibilizados mediante solicitação de que fossem representados, por meio de uma ou mais figuras da revista, incluindo capa e contracapa, aspectos acerca da seguinte frase norteadora: "O trabalho não faz sentido quando...". Posteriormente, os participantes discorreram sobre a escolha das figuras, considerando a relação destas com a frase norteadora.
Os dados empíricos provenientes das duas fontes de evidência foram gravados e transcritos na íntegra e os depoimentos identificados com as iniciais de cada categoria, Enfermeiros - E; Técnicos em enfermagem - TE; Médicos - M; Agente Comunitário de Saúde - ACS, seguidas por número de identificação de cada participante.
Para analisar os dados que emergiram das fontes de evidência, foi empregada a análise de conteúdo temática,27 com as etapas de pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Como ferramenta operacional, foi utilizado o software Atlas ti, versão 7. O uso desta ferramenta permite organizar o material proveniente da coleta de dados, favorecendo a indexação, busca, teorização e qualificação dos achados.28
O estudo respeitou às exigências formais da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, regulamen tadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, sendo aprovado pelo comitê de ética da Universidade Federal de Minas Gerais, conforme parecer 1.886.483.
Participaram da pesquisa 62 profissionais atuantes nas 23 unidades da ESF. Com relação aos participantes por categoria profissional, 14 eram médicos (22,6%), 16 enfermeiros (25,8%), 16 técnicos em enfermagem (25,8%) e 16 ACS (25,8%). Não foram incluídos na pesquisa 30 profissionais: 17 não aceitaram participar (56,3%), nove possuíam menos de seis meses de atuação profissional no serviço (30,0%), três estavam em férias (20,0%) e um se encontrava em licença médica (3,3%). No que concerne a não aceitação em participar da pesquisa, os profissionais atribuíram ao receio de retaliações, caso os depoimentos fossem identificados, mesmo após explicações detalhadas acerca dos objetivos do estudo e princípios éticos que norteiam a pesquisa, assegurados pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Outro aspecto citado foi a pouca disponibilidade de tempo, em decorrência das demandas de trabalho.
Entre a categoria médica a maioria era do sexo feminino (8; 57,2%), com faixa etária entre 20 - 29 anos (7; 50,0%), solteiros (11; 78,5%), entre seis e 11 meses de atuação na unidade (2; 14,2%), com vínculo de trabalho por contrato (10; 71,5%). Com relação aos enfermeiros, predominou o sexo feminino (14; 87,5%), com faixa etária entre 30 - 39 anos, solteiros, com vínculo empregatício em igual percentual para contratados e efetivos e tempo de atuação na unidade da ESF entre seis e 11 meses (12; 75,0%).
Entre os técnicos em enfermagem, prevaleceu o sexo feminino (15; 93,8%), com faixa etária entre 30-39 anos (9; 56,3%), casadas ou em união estável (9; 56,3%), com vínculo empregatício efetivo (16; 100,0%), e entre um e cinco anos de atuação na unidade (9; 43,8%). Sobre os agentes comunitários de saúde, participaram mulheres (16; 100,0%), com faixa etária entre 40 - 49 anos (6; 37,5%), casadas ou em união estável (9; 56,3%), com vínculo profissional efetivo (16; 100,0%) e atuando na unidade há mais de 10 anos (8; 50,0%).
Da análise dos dados empíricos, emergiram as categorias: Vivências de adversidades na Estratégia Saúde da Família e Implicações das adversidades para os sentidos do trabalho dos profissionais.
Na categoria Vivências de adversidades na Estratégia Saúde da Família, entre as situações referidas pelos profissionais, observaram-se aspectos ligados a: condições de trabalho inadequadas, ausência de apoio da gestão, questão salarial, excesso de demandas e conflitos interpessoais no trabalho.
As condições de trabalho inadequadas, no que se refere à infraestrutura, escassez de materiais, insumos e transporte foram apontadas pelos profissionais como adversidades presentes nas vivências de trabalho, por impossibilitá-los de desenvolver o que almejam no trabalho:
[...] um problema que a gente tem que dificulta o trabalho de todo mundo é quando chove, porque a unidade enche de água [...]. Aí, a gente não trabalha, porque fica todo cheio aqui, a gente tem que tirar [...]. No dia da puericultura, é difícil, pois a sala é muito pequena para trabalhar. A gente fica no calor e é muita criança, então, fica meio que uma agonia assim (E12).
Era para fazer atendimento na zona rural, só que como nunca tem o carro disponível para fazer a visita lá. É mais dificuldade para eles virem, aí acaba que eles ficam sem atendimento (M7).
Não temos condições adequadas para executar o nosso trabalho como realmente deve ser, com relação a materiais de curativos, de informativos, deixa muito limitado (T5).
As implicações decorrentes das condições de trabalho inadequadas que comprometem a organização do trabalho e resolutividade das ações dos profissionais da ESF foram representadas por meio da técnica do Gibi por um dos participantes (Figura 1):
Fonte: Almanaque da Mônica Nº 61, 2017.
Figura 1 Representação das implicações decorrentes das condições de trabalho inadequadas.
[...] na imagem, tudo está bagunçado, desorganizado. Quando a gente não tem materiais, estrutura, espaço na unidade para fazer nossas atividades, tudo fica meio desorganizado, a gente não consegue trabalhar direito. E se não tiver organizado, as coisas não funcionam! (ACS 12).
Alguns participantes mencionaram a questão salarial como situação de adversidade que conduz ao desestímulo com o trabalho na ESF:
[...] a questão salarial, a implementação do plano de cargos e carreiras, que os municípios não implantaram, e aí eu me sinto desestimulada. A gente tenta fazer qualificação, a gente estuda, e isso não está servindo para esse trabalho que a gente está hoje (T15).
[...] para você ter dedicação exclusiva a um trabalho de você ficar de segunda a sexta dois horários, tinha que ter uma remuneração muito melhor. Esse programa, Mais Médicos, está ajudando muito na valorização salarial da saúde da família, mas, infelizmente, tem muitos municípios que não dão valor, aí, fica aquela correria de ter que ir trabalhar em outros lugares, em outro trabalho, para poder se manter. É complicado! (M 9).
Nos depoimentos, o excesso de demandas, assistenciais e administrativas, emergiu nos relatos dos participantes como adversidades que implicam sobrecarga e repercutem no trabalho desenvolvido:
Então, às vezes, eu queria um tempo para pensar, digerir aquele problema, e ver a melhor solução possível. O excesso de demandas para o enfermeiro, o excesso de cobranças, eu acho que é uma das maiores adversidades (E9).
Aqui, são muitas cobranças, muita demanda de imunização, muitos procedimentos. Eu faço a manhã toda até meio dia e meia, uma hora da tarde eu pego nos curativos, retiradas de ponto e visita domiciliar. É muita coisa e, às vezes, não existe a compreensão sobre isso (T11).
O excesso de demandas pode trazer consequências à saúde mental dos profissionais, refletindo no cuidado aos usuários. A problemática também emergiu por meio da técnica do Gibi (Figura 2):
Fonte: Almanaque da Mônica Nº 61, 2017.
Figura 2 Representação sobre o excesso de demandas e sobrecarga dos profissionais.
[...] quando você está muito ocupada, com muita gente em cima de você, você não consegue prestar atenção naquilo que aquela pessoa realmente veio buscar, quando tem aquela demanda, aquele pessoal todinho em cima de você, aí você não consegue prestar atenção, você fica perdida, atordoada. [...] (T1).
Os conflitos interpessoais entre os membros da equipe foram mencionados por alguns dos participantes como fatores que interferem no trabalho:
Tem conflitos, muitos conflitos, assim, com alguns profissionais e isso de qualquer forma interfere na execução, não apenas do meu trabalho, mas da equipe e na assistência do usuário que naquele momento está precisando (T5).
A relação interpessoal dentro da própria equipe que traz muitos conflitos, esses conflitos, muitas vezes, eram vistos pelos pacientes (E13).
Na categoria Implicações das adversidades para os sentidos do trabalho dos profissionais, foi possível apreender como as vivências de adversidades podem comprometer os sentidos atribuídos ao trabalho pelos profissionais a atuação destes junto à comunidade.
As condições de trabalho inadequadas dificultam a resolutividade das ações e podem influenciar o cuidado, na medida em que compromete o sentido do trabalho ligado a utilidade, sendo associados também ao sentimento de impotência:
O sentido, assim, é de inutilidade, improdutividade, porque quando você sabe fazer determinado procedimento, tem a vontade de fazer, mas não dispõe de recursos para que aquele procedimento seja feito, você se sente impotente. Como se você não servisse para muita coisa (T3).
Infelizmente, a gente tenta conseguir dar uma resposta para esses pacientes, porque não vamos para zona rural atender. Mas, até hoje, a gente não tem essa resposta da gestão e, assim, a equipe, de certa, forma acaba ficando também com esse mesmo sentimento de impotência (M13).
A questão salarial, para alguns dos participantes, compromete o sentido do trabalho ligado a valorização pessoal e satisfação, pois, segundo estes, a remuneração insuficiente para atividades que desempenham resulta em desestímulo, além da possibilidade de abandono do emprego:
Então, para você trabalhar bem, você tem que estar satisfeito, ser valorizado, receber um salário de acordo com o trabalho que você faz. Então, como é que você vai querer ficar numa profissão como essa, como é que você vai trabalhar com tanta vontade? (T15).
Eu gosto daqui, mas vou sair, a gente trabalha muito na Estratégia Saúde da Família, mas é mal remunerado, entendeu? (T2).
Nos depoimentos, o excesso de demandas, repercute negativamente no sentido do trabalho relacionado a satisfação profissional, comprometendo a assistência e abordagem adequada às problemáticas da população. Esse contexto foi apontado principalmente por médicos e enfermeiros:
(...) o preenchimento daquelas fichas de produção, então, isso me deixa insatisfeita, porque me atrapalha muito. Porque eu tenho que dar conta do paciente, conversando, fazendo a consulta e, ainda, tenho que procurar os "benditos" códigos para colocar na ficha, e depois de colocar tudo isso, ainda tem que digitar em casa, num sistema e isso atrapalha muito, assim, a assistência às pessoas (M1).
Mas, a gente acaba também assumindo infelizmente questões administrativas e de recursos humanos no geral que, segundo a portaria do Ministério da Saúde, era para a gente se preocupar só com o técnico de enfermagem e os ACS (E9).
As situações conflituosas ligadas ao relacionamento entre os profissionais no ambiente laboral afetam o sentido do trabalho em equipe:
Quando cada um pensa somente em si, aí vem a dificuldade, a discórdia, aí fica um ambiente pesado para trabalhar, perde o sentido do trabalho em equipe, eu já tive experiência assim, é terrível (T10).
Situações conflituosas entre a equipe que atrapalham a integração entre membros e interferem na dinâmica do ambiente laboral e no cuidado aos usuários foram referidas pelo participante M13, por meio da técnica do Gibi (Figura 3):
Fonte: Almanaque da Mônica Nº 61, 2017.
Figura 3 Representação das situações conflituosas entre a equipe de profissionais da ESF.
Quando numa equipe, onde todo mundo trabalha desunido e um está com raiva ou tem algum problema com o outro, isso aí atrapalha todo andamento dos trabalhos, aliás, todo andamento do trabalho da unidade. Além de trazer tristeza pessoalmente, também vai trazer prejuízo para nossos usuários, no sentido de cada um trabalhando separadamente, ninguém vai conseguir dar uma resposta final para um paciente de forma adequada (M13).
Nas vivências na ESF, muitas vezes, o trabalhador se depara com situações complexas que, em maioria, estão ligadas ao confronto entre os princípios estabelecidos para reorganização do serviço e adversidades inerentes ao contexto real do trabalho, sejam estas estruturais, organizacionais, financeiras, gerenciais ou relacionais.
Entre as adversidades referidas pelos profissionais, as condições de trabalho inadequadas, no tocante aos recursos financeiros, materiais ou humanos suficientes, são circunstâncias que comprometem a resolutividade das ações voltadas para promoção da saúde da população, dificultando o alcance dos resultados com excelência. As situações de adversidade reveladas, proporcionaram implicações negativas aos sentidos atribuídos ao trabalho, o que repercute no cuidado prestado aos usuários.
Os achados estão em consonância com o referencial teórico de Morin,17,18 adotado neste estudo, em que, para que o trabalho possua sentido, as características do trabalho devem estar associadas aos motivos que estimulam os profissionais ao próprio desenvolvimento, como: condições satisfatórias de trabalho, salário aceitável, preservação da saúde, trabalho estimulante, variado e oportunidade de realização das tarefas de maneira adequada.
As adversidades mencionadas pelos participantes deste estudo promoveram sentidos negativos ao trabalho, sendo associados à insatisfação, inutilidade, impotência e frustração, fatores que comprometem a saúde mental e, consequentemente, o cuidado prestado à comunidade.
Esses aspectos também são apontados por Morin,17,18 ao afirmar que um trabalho com sentido deve ser útil e desenvolvido com satisfação, porém, quando o trabalho perde tais sentidos, pode haver repercussões negativas ao comprometimento dos trabalhadores com as atividades que desenvolvem.
Em confirmação aos resultados deste estudo, pesquisas realizadas com equipes multiprofissionais da ESF, em diferentes regiões do país, apontaram que as condições laborais podem se configurar como fonte de insatisfação do sujeito com o trabalho, por não conseguir proporcionar a assistência de qualidade à população, resultando em sofrimento para o profissional.29,30
No que concerne à questão salarial, os participantes mencionaram que, embora a remuneração não seja o único aspecto importante para a atuação na ESF, um salário insuficiente compromete o sentido de realização pessoal e profissional e leva-os a pensar em abandonar o trabalho. Tal problemática foi apontada por alguns médicos e técnicos em enfermagem. Os participantes evidenciaram a necessidade de um Plano de Cargos e Carreiras que lhes garanta reconhecimento e valorização, por meio de remuneração compatível à função, além de incentivo à capacitação.
Semelhante aos resultados apontados neste estudo, pesquisa ressalta o descontentamento de profissionais médicos, enfermeiros e técnicos da ESF com relação à remuneração e inexistência de um Plano de Cargos e Carreiras, promovendo a ausência de perspectiva e o desestímulo com relação ao investimento em qualificação profissional. Tais fatores, de acordo com o estudo citado, podem provocar a desmotivação e pouco envolvimento do trabalhador com o trabalho, impactando negativamente no cuidado aos usuários e no estabelecimento de vínculos institucionais e comunitários.31
Ainda com relação à remuneração na ESF, alguns dos participantes relataram que precisam buscar mais de um trabalho que lhes proporcione renda adequada às necessidades particulares. Tal problemática, somada ao excesso de demandas na própria ESF, pode trazer consequências à saúde do trabalhador e ao cuidado prestado. No que tange ao excesso de demandas no cotidiano de trabalho da ESF, foi possível apreender no discurso dos participantes que existem especificidades entre as categorias profissionais.
Enquanto para os agentes comunitários de saúde, o excesso de demandas decorre de recursos humanos insuficientes para cobertura das áreas adscritas, para os técnicos em enfermagem, está ligado ao acúmulo de procedimentos e atividades, já para os médicos e enfermeiros, refere-se ao excesso de atividades burocráticas e problemáticas assistenciais. Todavia, os aspectos citados apresentam em comum a possibilidade de repercutir negativamente no desempenho e na qualidade do cuidado prestado à população.
Face à realidade mencionada, o acúmulo de vínculos empregatícios, de jornadas de trabalho e tarefas com complexidades diferentes, pode ocasionar a sobrecarga de trabalho, por requerer demandas físicas e psicológicas que vão além do suportado pelo trabalhador.31,32 Essas dificuldades também foram reveladas por meio da técnica do Gibi, sendo possível apreender no discurso dos participantes os possíveis agravos psicológicos e cognitivos decorrentes do excesso de demandas no cotidiano, o que interfere, por conseguinte, em ações junto à comunidade.
Nessa perspectiva, pesquisa revela as implicações decorrentes da sobrecarga de trabalho para os profissionais da equipe da ESF e aponta que a alta demanda de trabalho, associada à pressão para cumprimentos dos prazos, à cobrança por resultados, ao número insuficiente de pessoas para realizar as atividades, tarefas repetitivas, ritmo de trabalho acelerado entre outros, são aspectos que dificultam a realização do cuidado com qualidade.33
Sobre as relações interpessoais no ambiente de trabalho, os depoimentos revelaram que os conflitos existentes entre os profissionais ocasionam distanciamento destes e implicações ao sentido do trabalho em equipe. Esse aspecto emergiu na técnica do Gibi, sendo mencionado por um dos médicos, que reiterou o quanto os conflitos e distanciamentos entre os profissionais atrapalham a dinâmica do trabalho em equipe e a resolutividade das ações, interferindo no cuidado aos usuários.
Resultados semelhantes foram descritos em estudo realizado com 13 profissionais da ESF de município da Região Sul do Brasil, sobre as percepções quanto ao trabalho em equipe. No referido estudo, os participantes relataram que a dificuldade de colaboração entre os membros da equipe era decorrente da existência de relações conflituosas e distantes, problemas de personalidade, excesso de trabalho e escassez de recursos, além da desvalorização e desmotivação dos profissionais.34
Destarte, compreende-se que o trabalho em equipe emerge como resultado de processo complexo, em que há necessidade de superar a fragmentação do trabalho e das relações entre os profissionais da ESF das diferentes áreas e níveis de formação, para que seja possível permitir a coesão e integração da equipe, o que favorecerá as ações voltadas ao cuidado efetivo e a ambiente laboral saudável.
Este estudo possibilitou apreender as vivências de adversidades na Atenção Primária à Saúde e respectivas implicações para os sentidos do trabalho dos profissionais participantes. Entre as experiências de adversidades, emergiram aspectos ligados às condições inadequadas de trabalho, à questão salarial, ao excesso de demandas e aos conflitos interpessoais no trabalho.
Concluiu-se que os eventos adversos vivenciados pelos profissionais desencadearam sentimento de impotência e desestímulo, os quais impactaram negativamente nos sentidos do trabalho ligados a utilidade, valorização pessoal, trabalho em equipe e de satisfação com as atividades desempenhadas. Estes aspectos, muitas vezes, conduzem ao sofrimento por impedirem o desenvolvimento de ações efetivas na solução de problemas ligados às necessidades da população.
No que se refere às potencialidades do método utilizado, denota-se a importância do estudo de caso como referencial metodológico desta pesquisa, possibilitando agregar duas fontes de evidência que permitiram achados mais amplos e significativos. Além disso, a realização do estudo de caso em todas as unidades da ESF que compõem a Rede de Atenção Primária do município, que incluiu trabalhadores das diferentes categorias profissionais proporcionou a visão mais abrangente sobre a temática.
Salienta-se, ainda, como potencialidade deste estudo a utilização da técnica do Gibi como estratégia inovadora para coleta de dados em pesquisas qualitativas e significativa fonte de evidência para o estudo de caso desenvolvido, permitindo aos participantes refletir e expressar de maneira mais espontânea sobre as complexas adversidades vivenciadas e as implicações destas para os sentidos do trabalho que podem interferir na assistência prestada.
Almeja-se que as reflexões apresentadas neste estudo possam trazer contribuições à prática dos profissionais na ESF, no intuito de possibilitar discussões e reflexões entre gestores e profissionais sobre as reais necessidades no cotidiano do trabalho, com vistas à implementação de estratégias que viabilizem a redução das adversidades no ambiente laboral e repercutam de maneira positiva nos sentidos e no desenvolvimento do trabalho. Tais ações podem possibilitar aos profissionais ambientes de trabalho saudáveis, com espaço democrático, o que reflete em benefícios à saúde do trabalhador e cuidado de qualidade à população.
Destaca-se que o contexto em que os participantes do estudo estão inseridos podem influenciar nas respectivas percepções, impossibilitando que os resultados apresentados sejam generalizados para outros cenários, aspecto que constitui a limitação desta pesquisa. Sugere-se, assim, que o estudo seja realizado em outros espaços, de modo a subsidiar novas discussões e investigações sobre a temática, em diferentes contextos do trabalho em saúde, permitindo ampliar os resultados sobre o fenômeno investigado.