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Agendas públicas de saúde no enfrentamento da violência contra mulheres rurais - análise do nível local no Rio Grande do Sul, Brasil

Agendas públicas de saúde no enfrentamento da violência contra mulheres rurais - análise do nível local no Rio Grande do Sul, Brasil

Autores:

Marta Cocco da Costa,
Marta Julia Marques Lopes,
Joannie dos Santos Fachinelli Soares

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.5 Rio de Janeiro maio 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015205.04412014

Introdução

A violência afeta fortemente a saúde, pois além de provocar danos físicos, emocionais e morte, também reduz a qualidade de vida das pessoas e das coletividades. Em consequência, a violência exige uma readequação da organização tradicional dos serviços de saúde, impondo novos problemas para o atendimento médico preventivo ou curativo e evidencia a necessidade de uma atuação interdisciplinar e intersetorial1.

No que se refere à violência praticada contra as mulheres, destaca-se sua invisibilidade na assistência à saúde em consequência de obstáculos de ordem tecnológica. Sua natureza de objeto social não encontra legitimidade na racionalidade biomédica de intervenção, hegemônica nas profissões em saúde, suscitando dificuldades dos profissionais da saúde em lidarem com a violência2.

Situando o contexto rural, os poucos estudos sobre o tema apontam para o desconhecimento da situação das mulheres em aspectos gerais de saúde e quanto às especificidades e peculiaridades de vida, seja no contexto familiar, social e de trabalho. Em decorrência, acredita-se que a violência contra as mulheres, nesse contexto, não se constitui em objeto de ação do poder público e de intervenção institucional em saúde configurada em atenção específica e práticas de cuidado efetivas.

O contexto dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, destas últimas em particular, é permeado por experiências de submissão e resistência geradas e manifestadas por conflitos de classe, gênero, etnia, lutas pela terra, entre outros, e que, muitas vezes, utilizam a violência como forma de resolução. Nesse contexto socioeconômico, os conflitos agrários surgem e são protagonizados por vários agentes sociais, na tentativa de minimizar as consequências das modificações da agroindústria e das diversas modalidades de economia contratual na agricultura, que indicam a modernização da agricultura, acompanhada pelo aumento da exclusão social, das migrações campo-cidade e da pauperização dos agricultores3. Poder-se-ia afirmar que se constituem cenários de vulnerabilidades em diferentes setores da vida social e familiar.

A partir desses elementos, este estudo assenta-se no reconhecimento de que existe vulnerabilidade programática (inexistência de programas no nível local) em saúde que afeta, em particular, e potencialmente, as mulheres rurais em situação de violência. A vulnerabilidade programática, em linhas gerais, compreende um esforço de produção e difusão de conhecimento, e apresenta, para fins analíticos, um esquema, reportando-se aos planos individuais, sociais e programáticos dos serviços, salientando que, em realidade, as diferentes dimensões de vulnerabilidade formam um todo indivisível. O presente artigo, com base nos estudos de Ayres et al.4, direciona sua análise na dimensão programática da vulnerabilidade, pois essa dimensão busca avaliar de que modo, em circunstâncias sociais dadas, as instituições, especialmente as de saúde, atuam como elementos que reproduzem, ou aprofundam, as condições socialmente dadas de vulnerabilidade.

Busca-se discutir elementos que possibilitem tensionar as agendas públicas do setor saúde, isso poderá contribuir para a reflexão sobre as práticas e as ações públicas, de maneira crítica e dinâmica. Segundo Ayres5 e Muñoz-Sánchez e Bertolozzi6, esse tipo de análise contribui para a busca de reflexões direcionada a mudanças políticas, culturais, cognitivas e tecnológicas, que promovam impacto nos perfis epidemiológicos gerados pelas violências e influenciem no apoio aos sujeitos sociais no que diz respeito aos seus direitos, neste caso as mulheres rurais, o que na conjuntura de saúde e de desenvolvimento do país, se constitui um desafio a ser perseguido e concretizado.

Objetivou-se, portanto, analisar as agendas públicas locais de saúde direcionadas ao enfrentamento da violência contra mulheres rurais, na perspectiva dos/as gestores/as de municípios da Metade Sul do Rio Grande do Sul.

Caminho metodológico

Desenvolveu-se um estudo exploratório-descritivo de abordagem qualitativa. Elegeu-se como local de estudo, a base geográfica do Programa de Pesquisa Interdisciplinar (PROINTER), que é fruto de um acordo de cooperação interuniversitário franco-brasileiro entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade Paris 7, a Universidade Paris 10, a Universidade Bordeaux 2, e a Universidade Federal do Paraná. A região escolhida para o desenvolvimento desse programa foi a "Metade Sul" do Estado do Rio Grande do Sul, que vem sofrendo uma crescente desaceleração econômica, quando comparada a outras regiões do Estado, o que torna visíveis as disparidades regionais7.

Os participantes foram todos os gestores e gestoras municipais de saúde, responsáveis pelo planejamento das ações direcionadas à saúde da mulher e responsáveis pelas ações da atenção básica de saúde, o que totalizou 13 participantes. Como critérios de inclusão definiu-se que os participantes deveriam estar atuando nesse cargo a mais de seis meses, estarem trabalhando no momento da geração dos dados e aceitarem participar da pesquisa.

Para a geração dos dados, buscaram-se elementos discursivos por meio de entrevista semiestruturada. Construiu-se um guia para as entrevistas, organizado em dois eixos: o primeiro dedicado à caracterização sociodemográfica dos entrevistados; e o segundo com questões abertas que contemplaram o objeto de estudo. As entrevistas foram previamente agendadas com os gestores, realizadas nos seus locais de trabalho, no período de julho a novembro de 2010. Para manter o sigilo e anonimato dos participantes, as falas serão apresentadas seguidas da sigla GES e o número sequencial das entrevistas.

Para o tratamento dos dados, utilizou-se o método de Análise de Conteúdo, por meio da técnica de análise temática, considerando a pré-análise, a exploração do material, e o tratamento dos resultados obtidos e interpretação conforme recomenda Minayo8. A organização do material empírico e as análises foram realizadas com o auxílio do software QRS NVivo versão 7. Buscou-se compreender os elementos da vulnerabilidade programática em relação à violência, nas falas dos participantes. Utilizou-se para as análises as dimensões da vulnerabilidade programática propostas por Mann et al.9 e Ayres et al.4, optando pelas seguintes dimensões: expressão do compromisso; transformação do compromisso em ação e planejamento/coordenação.

Esse estudo foi realizado em consonância com as normas da Resolução 19610/96, para pesquisas com seres humanos. Obteve-se a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul. Os participantes foram informados sobre todos os aspectos da pesquisa, receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

Expressão do compromisso: as políticas públicas de saúde e o nível local

A efetiva implementação da descentralização da saúde requerida pelo SUS pressupõe o preparo dos gestores em saúde com capacidade de gerir os serviços públicos de saúde sob sua responsabilidade, e autonomia para organizar o processo de produção de ações em saúde. Assim, buscou-se uma abordagem ampliada de compreensão e da expressão do compromisso do grupo de gestores, analisando, inicialmente, as "leituras" que esse grupo faz das políticas públicas de saúde, e o conhecimento que têm sobre seu direcionamento para enfrentar a violência contra as mulheres rurais.

Em uma primeira leitura das falas dos participantes, observou-se que as políticas públicas de saúde constituem-se, formalmente, em propostas ou conjunto de ações que norteiam a organização da gestão dos serviços. Identificou-se, nas falas, o direcionamento da responsabilidade ao Estado enquanto propositor público das políticas para as comunidades, e a responsabilização do gestor em instituí-las e desenvolvê-las no nível local.

[...] políticas públicas de saúde é o conjunto das ações que o ente público coloca à disposição de uma comunidade para resolver aqueles problemas, aquelas situações que são as certas para aquela população.[...] cabendo ao gestor municipal instituí-las e desenvolvê-las no nível local a partir dos interesses comuns(GES9).

De maneira geral, observa-se, nas falas, a compreensão de que as políticas de saúde são construídas frente às demandas identificadas nas comunidades que se constituem em problemática para esse setor, e que a responsabilidade de formulá-las centra-se no nível federal, cabendo aos municípios (nível local) a sua implementação de acordo com cada realidade.

Na primeira fala transcrita, o gestor diz que a implementação de determinada política ocorre a partir dos interesses comuns. Nessa dimensão, Arretche11 destaca que a autonomia local para a gestão de políticas cria oportunidades institucionais para que os governantes implementem decisões de acordo com suas próprias preferências, as quais não são necessariamente compatíveis, muitas vezes, com o interesse público e o bem-estar da população. São as regras institucionais de uma política pública que propiciam os incentivos ao comportamento dos governos locais.

Assim, pode-se inferir que, além de submeter-se ao "cardápio de políticas", a população ainda se sujeita a vontade do gestor e a sua leitura do que chama "necessidades". O que não é implementado é imputado à falta de interesse e mobilização da população.

Nesse sentido, e com certa lógica, alguns dos entrevistados mencionaram que as políticas públicas de saúde são sinônimo de protocolos de atendimento, conforme expressa a fala a seguir.

Se não tivessem estas Políticas Públicas talvez não tivessem um 'protocolo de atendimento' para cada paciente. Eu acho que é importante essas políticas porque aí é organizado todo o atendimento[...] faz o programa para atenção a gestante, programa para saúde da mulher, prevenção do câncer de mama, de colo uterino(GES6).

Esse entendimento atesta compreensão restrita e fragmentada das políticas, dimensionando-as simplesmente como norteadoras da forma/maneira de conduzir ações de cuidado, seguindo protocolos técnicos, o que resulta em ação protocolar, repetição de ações, destituindo as condições sociais, culturais, econômicas das comunidades enquanto elementos de singularização potencializadores na produção da saúde.

Essa abordagem e amplitude limitada de compreensão e implementação das políticas públicas é a tônica das falas. Quanto às políticas públicas de enfrentamento da violência o desconhecimento fica evidente nas entrevistas.

Olha, eu não tenho conhecimento de nenhuma política de saúde voltada para esse problema, aqui no município não temos feito quase nada com foco nisso, até porque não sabia da existência de 'coisas federais' para isso (GES11).

[...] não tem muitos casos de violência, e menos ainda na área rural. Então acaba que a gente não vai atrás de políticas que trabalhem com esse problema, visto que temos inúmeros problemas que demandam ações das políticas (GES1).

Nessas falas, observa-se que o fenômeno violência "não existe" e assim não se coloca enquanto problemática local geradora de práticas em saúde. Essa aparente "inexistência" dispensa agendas locais de saúde. Ou seja, a forma de pensar essa problemática pelos gestores e responsáveis pela saúde da mulher não se traduz em práticas e ações que concretizem proposições capazes de produzir mudanças na situação da violência local e rural em particular.

Atualmente, pode-se falar na existência, no setor saúde, de várias políticas públicas com proposições de intervenção/enfrentamento da violência contra as mulheres. No entanto, o que se observou no local de estudo é que apenas quatro dos treze participantes do grupo de gestores, responsáveis pela saúde da mulher, mencionaram ter conhecimento de alguma dessas políticas.

Com isso, evidencia-se, o distanciamento entre o que é instituído no nível federal enquanto proposições públicas e o que, de fato, chega e como chega ao nível local. Pode-se mencionar que existem estratégias públicas propositivas de enfrentamento da violência contra as mulheres, no entanto, observa-se os desafios para sua efetiva implementação no nível local. Como elementos implicados nessa situação, pode-se destacar, primeiro, o fato da origem das políticas estar na esfera federal e, frequentemente, sem participação e articulação com as demais esferas e sem controle popular, o que não resulta na corresponsabilização entre níveis de governo; e um segundo elemento é o não reconhecimento da violência como objeto de intervenção da saúde.

Transformação do compromisso em ação: foco no planejamento/estratégias voltadas à violência contra mulheres rurais

Observou-se que na maioria dos serviços de saúde locais, permanece o padrão de organização da atenção à saúde centrado na doença, sem reconhecer a violência enquanto problema mais amplo da saúde, e da saúde pública em particular. Assim, identificou-se a inexistência de agendas locais em saúde específicas direcionadas à violência contra as mulheres rurais. Nas narrativas aparecem algumas estratégias pontuais vinculadas à Estratégia de Saúde da Família (ESF).

[...] não enxergo, uma gestão, uma política pública no sentido de proteção à mulher em relação à violência ainda efetiva, e ainda mais em relação às mulheres rurais [...] aqui no município ainda não existe nada estruturado para esse problema, e creio que quando existir, também tem que vir junto com essas políticas os recursos pra gente poder aplicar (GES11).

[...] não, efetivamente não tem nada estruturado a nível local para as mulheres rurais. A saúde acaba se fragmentando de uma forma ou de outra, apesar da gente tentar o contato e vínculo com todas as equipes, não sei se eles trabalham isso de alguma forma específica no CAPS, mas eu acredito que não, pois acredito que ainda a violência não aparece tanto na saúde, 'mais na área da segurança'(GES13).

As falas revelam que gestores e responsáveis pela saúde da mulher consideram a violência problema de saúde mental e de segurança. Mesmo que se tenha avanços quer sejam legais (políticas e normativas) ou da proposição da gestão local dos serviços e de práticas de cuidado para as mulheres em situação de violência, pouco se somou em termos das competências e das responsabilidades dos gestores em nível local.

Os achados atestam, ainda, a "transferência de responsabilidade" dessa problemática do setor saúde, para o setor da segurança. Essa "transferência" resulta na não inclusão da violência nas prioridades em saúde e reflete-se no entendimento de que a violência é de "outra esfera", o que legítima a exclusão desse problema dos atendimentos às usuárias rurais que buscam "refúgio", muitas vezes, nos serviços públicos de saúde.

Nesse cenário, foi mencionado pelos participantes dos cinco municípios que possuem ESF, porém insuficientes para a cobertura de toda a extensão rural, que as estratégias propostas enquanto agenda de intervenção/enfrentamento da violência, limitam-se a existência da própria Estratégia de Saúde da Família das áreas rurais, conforme aparece na fala.

Espera-se de uma equipe de Saúde da Família das áreas rurais que eles possam intervir e atuar, nos casos de violência contra a mulher, inclusive possam sentar com as pessoas, se tiverem um bom vinculo com a família, e discutir isso com o casal (GES9).

A ESF insere-se no cenário da saúde com o propósito de reorientação do modelo assistencial vigente, num trabalho multidisciplinar de atuação, com foco na promoção da saúde e no usuário enquanto indutor sujeito do cuidado. Conforme Andrade e Fonseca12, busca-se a superação do diagnóstico de necessidade para se integrar à voz do outro, mudando a relação de poder técnico-usuário, visualizando a mulher enquanto ser social, com vida plena e digna. Dessa forma, e de acordo com as falas acima, vislumbra-se esse potencial da estratégia, colocando-se em condição de propor e criar, a partir do território de atuação, formas locais de intervenção/enfrentamento desse fenômeno.

Assim, à medida que a ESF caracteriza-se como espaço de promoção da saúde tem sob sua responsabilidade as situações de violência contra as mulheres rurais, potencializando espaços reflexivos e de articulação de estratégias de enfrentamento com os demais serviços do setor saúde e com as organizações formais e informais da sociedade civil. No entanto, a cobertura e, consequentemente, o alcance dessas ações limitam-se em número, extensão e qualificação para a ação.

Na primeira fala acima, o gestor menciona que, dada a complexidade dessa problemática e das suas contradições de compreensão, estabeleceu serviços de apoio matricial para uma abordagem de intervenções interdisciplinares e intersetoriais. Esse olhar mostra uma visão da ESF não com "superpoderes" ou "estratégia salvadora", mas um dispositivo que tem papel relevante diante dessa problemática, sendo necessária uma rede de atenção para o diálogo entre/intrassaberes, a fim de estabelecerem-se projetos terapêuticos e de atenção mais amplos para as mulheres rurais em situação de violência.

De acordo como Conill13, pode-se entender que a ESF não se constitui uma espécie de "cavalo de Tróia", tampouco representa a garantia de uma "travessia messiânica" para os problemas do SUS. Muitos e importantes aspectos já são suficientemente visíveis com o acompanhamento e os estudos de sua implementação para que se realizem ajustes necessários, os quais não são somente específicos da ESF, mas dizem respeito a um conjunto mais amplo de questões que vêm marcando historicamente o padrão da oferta dos serviços de saúde no Brasil. Assim, pouco se pode esperar em relação às ações não programáticas ainda não reconhecidas como assunto da saúde, como a violência.

As evidências atuais apontam para uma "discreta" mudança nas ações da ESF em relação às atividades de unidades tradicionais. No entanto, desvendam-se fragilidades, em que o acesso permanece como um grande nó crítico, também as dificuldades na distribuição geográfica, na estrutura física e no quantitativo de equipes, na capacitação e qualificação para o trabalho, na gestão e na articulação da rede de serviços.

Em um dos municípios, os gestores destacaram a existência em um dos municípios da Coordenadoria da Mulher e, em outro, o Centro de Referência especializado no atendimento à violência. No município que possui a Coordenadoria da Mulher evidenciou-se que, mesmo incipiente, são desenvolvidas algumas discussões juntos aos trabalhadores da saúde, e também com a comunidade, possibilitando reflexões e questionamentos sobre esse problema. Conforme a fala a seguir, essa Coordenadoria busca propor um trabalho em rede, conjugando esforços de entidades governamentais e não governamentais, atuando no enfrentamento à discriminação e à desigualdade de direitos aos quais as mulheres são submetidas.

[...] temos juntamente uma parceria com o CRAS, com a secretaria da saúde, com a educação e a coordenadoria da mulher. Então, a coordenadoria da mulher é para trabalhar em vários setores, e para a prevenção, especialmente da violência que abrange as mulheres rurais(GES5).

Nós temos um 'centro de referência especializado', que atende abusos sexuais e todas as situações de violência tanto contra a mulher como a criança, e recebe também as mulheres vítimas de violência das áreas rurais, mas tem ainda muitas fragilidades(GES8).

O Centro de Referência citado possui papel de articulador das instituições e serviços governamentais e não governamentais que integram a rede de proteção à mulher, sendo facilitado o acesso a esses serviços às mulheres em situação de violência ou vulnerabilidade, em função de qualquer tipo de violência ocorrida por sua condição de mulher. Esse serviço, no entanto, é destinado prioritariamente às demandas da área urbana, em detrimento das especificidades das áreas rurais, mesmo que no rural se encontre a maioria da população do município.

Observa-se, nesses municípios, que tanto a Coordenadoria da Mulher quanto o Centro de Referência, apresentam certas barreiras de atuação, limitando-se ao acolhimento e à orientação. Essa limitação ocorre, muitas vezes, pela falta de políticas públicas locais articuladas que ofereçam respostas eficazes para as mulheres nessas situações, de modo que muitas ocorrências ainda são resolvidas na boa vontade, no improviso e no caso a caso. Além disso, a fragilidade de articulação da rede, e as respostas limitadas, reduzem as possibilidades de um desfecho rápido, que garanta a segurança e a preservação dos direitos das mulheres rurais.

Assim, constata-se que a existência de iniciativas isoladas de atenção à violência, que ainda não foram incorporadas politicamente à agenda local de atenção às mulheres rurais em situação de violência. Por essa razão, reconhece-se a permanência de iniciativas isoladas, implementadas sem a compreensão da complexidade do "lidar" com as situações e suas singularidades, e as consequências relacionadas a essa problemática.

Em relação a esse problema, merece atenção o conteúdo da entrevista a seguir, em que o participante menciona a dimensão da organização das ações em nível da gestão para as mulheres rurais vítimas de violência como sendo algo pré-estabelecido e fragmentado, é muito automático aqui na secretaria, cada uma faz sua parte. Porque tu te dá conta da violência que alguma mulher rural sofreu e daí tu já vai providenciar a questão do atendimento de saúde mental, tu vai encaminhar elas, dependendo da violência, tu vai dar um encaminhamento que é muito natural isso assim para nós e eu já estabeleci algumas coisas[...] assim, já vem a diretora da assistência social, ela, eles não têm comida, providencia cesta básica, as crianças estão malvestidas, a psicóloga conversa, ela tem que fazer uma laqueadura, isso é um problema, a psicóloga já avalia, já encaminha para assistente social e a gente já fala com o médico (GES3).

Essa fragmentação e compartimentalização das respostas a essas mulheres estão arraigadas na concepção dominante de trabalho em saúde, o que, na maioria das vezes, é tomado como caminho natural. Trata-se de uma visão parcelar e protocolar dos problemas, com isso, cada área de saber (especialidade) propõe sua parte na terapêutica, promovendo intervenções isoladas, ou seja, a segmentação da saúde em que cada pedaço seria de responsabilidade de um especialista de uma pasta, cada âmbito pertence à competência de um setor profissional técnico, e ninguém se responsabiliza pelo todo. Além disso, essa visão "pré-definidora" das condutas, mostra a forma tradicional e normativa de conduzir a gestão.

Observa-se, assim, uma visão que se pode denominar, segundo Cecilio14, de "racionalizadora" e "técnica", à medida que as pessoas reais, com suas angústias e sofrimentos passam a ser vistas, no jargão tecnocrático, como espécie de "agentes" dotados de comportamentos previsíveis, que deverão ser enquadrados a partir dessa racionalidade exterior.

Nessa perspectiva, Mendes15, ao realizar uma análise dos sistemas de atenção à saúde, identificou que eles são dominados pelos sistemas fragmentados, voltados para a atenção às condições agudas e às agudizações de condições crônicas. O autor salienta que os sistemas fragmentados de atenção à saúde são aqueles que se organizam mediante um conjunto de pontos isolados e incomunicáveis (uns com os outros) e que, em consequência, são incapazes de prestar uma atenção contínua à população.

Evidencia-se, para além da fragmentação do cuidado, a não compreensão das necessidades e dos desejos dessas mulheres e o respeito às mesmas como sujeitos de direitos, além de sujeitos na construção coletiva do projeto terapêutico - apenas institui-se um cardápio de opções de encaminhamentos, o que é influenciado pela visão biomédica e patologizante das situações e restrito pela própria capacidade tecnológica dos serviços de saúde.

No que se refere às redes de atenção, observou-se, nas falas sobre as agendas locais, relações de apoio do serviço social (CREAS, CRAS), do Conselho Tutelar, da Emater, da Segurança Pública, entre outros setores. Salienta-se que mesmo assim, esses serviços não se constituem uma rede de atenção, pois não ocorrem interfaces entre os segmentos, acabam sendo apenas suportes, retaguarda, "fragmentos" de apoio.

[...] têm alguns setores que dão suporte às vítimas de violência, mas, no entanto, chega um momento dessa rede que não funciona. Em algum momento essa rede falha, pois cada um faz um pedaço, e às vezes ações repetidas por não ocorrer um diálogo comum entre esses segmentos(GES13).

Assim, os serviços, sejam eles do setor saúde ou dos demais setores, não se comunicam, têm lógicas próprias e distintas, sendo que o eixo de sua organização, muitas vezes não tem no seu centro a política como norteadora e as necessidades de saúde dos usuários como balizamento, atuando de modo desarticulado. Essas dificuldades são materializadas possivelmente pela inexistência de uma rede efetiva de atendimento e de uma política integrada entre as esferas de governo. O "visível" é a desarticulação dos serviços disponíveis, resultado do esforço espontâneo e de alguns indivíduos e setores. E, nessa condição, são as mulheres usuárias dos serviços e as vítimas de violência que constroem trajetórias particulares de intersetorialidade.

Em seu estudo, Santos e Vieira16buscaram conhecer as organizações envolvidas no atendimento de mulheres em situação de violência, considerando a rede de agências e equipamentos sociais disponíveis. Os achados desses autores corroboram os achados do presente estudo, em que os operadores sociais ouvidos, embora tenham se mostrado sensíveis a essa questão, não formularam, de fato, um pensamento em rede. Os autores destacam que de maneira geral, a organização entre os serviços pauta-se por uma concepção de cuidado desarticulado frente à situação da violência contra as mulheres. Dependendo da dimensão com que se focaliza o problema, há um ou outro serviço que se propõe a lidar com o problema, mas sem se articular aos demais setores.

Reiteram-se as palavras de Faleiros17, quando afirma que "a rede é uma articulação de atores em torno [...] de uma questão ao mesmo tempo política, social, profundamente complexa e processualmente dialética". Assim, a construção de redes de atenção para o enfrentamento da violência contra as mulheres em cenários rurais, apresenta-se como estratégia desafiadora e exige ir além do atendimento protocolar, deslocando ações individuais dos profissionais para as usuárias, criando possibilidades de aumentar a participação dos sujeitos na implementação de soluções.

Avançando na problemática local, muitos entrevistados mencionaram as dificuldades de construção e consolidação de ações para esse contingente populacional de forma geral. A dificuldade mais citada centra-se em barreiras físicas, no caso, a distância geográfica.

[...] é a distância, o deslocamento, a distância. Então há dificuldade, pois temos roteiros de atendimento e às vezes não conseguimos, como na semana passada, nessa segunda-feira choveu muito. Na terça tinha atendimento médico, os enfermeiros do interior não puderam ir devido às estradas, que chove e alaga as pontes e aí não tem como o pessoal se deslocar até lá (GES5).

A extensão territorial agrava ainda mais a situação e "justifica" as ações pontuais em saúde voltadas a essas áreas adstritas. O isolamento geográfico das comunidades rurais as exclui, e não lhes assegura, na prática, a universalidade e a equidade de acesso aos serviços de saúde, garantidos pela Constituição enquanto direito. Portanto, é consequência lógica que a utilização e o fluxo das usuárias seja fortemente influenciado pela oferta em quantidade e localização dos serviços.

Constata-se a desigualdade ou inexistência de oferta de serviços em saúde considerando o rural e o urbano. Essa desigualdade é justificada, com frequência, pelas distâncias geográficas do rural, o que, de certa forma, isenta o poder público de suas atribuições enquanto responsável por suprir recursos de saúde às populações, e de buscar alternativas e construir propostas que possam minimizar essa situação.

Outro elemento dificultador, mencionado pelos participantes, direciona-se à falta de recursos financeiros, conforme expressam as falas:

[...] volto a te dizer, o grande regulador são os setores financeiros. Isso também é para as ações no meio rural, aquilo que nós podemos fazer lá no meio rural, especificamente direcionado à mulher(GES2).

Temos dificuldades financeiras, de equipe, de não ter pessoal suficiente, de quando a equipe está aqui às vezes não tem carro. Mas a gente faz algumas ações assim de grupo, nas escolas, encontro com os idosos e a comunidade de zona rural nos recebe muito bem, 'eles atendem os nossos chamados'(GES3).

O recurso financeiro é citado pelos participantes como fator impeditivo e justificador para a não concretização de ações em saúde nas áreas rurais. Essa dificuldade aparece enquanto foco central das gestões municipais, pois a organização e o planejamento partem da premissa do "ter recurso", portanto a violência sem recurso "não existe" - é melhor continuar invisível. No entanto, e para, além disso, está a necessidade de inserir nas agendas públicas a saúde das mulheres rurais em sentido amplo e para além da epidemiologia clássica. Para tanto, a falta de outros indicadores se faz sentir, contemplando as desigualdades de gênero, por exemplo, e repercutem cotidianamente na vida e saúde das mulheres rurais nos espaços públicos e privados.

Chama a atenção a segunda fala, acima, em que o gestor menciona queas comunidades rurais atendem nossos chamados, dizendo que a população rural participa ativamente das ações de saúde propostas. No entanto, pode-se questionar se o contrário acontece? Será que os gestores e profissionais atendem aos chamados e às demandas de atendimento das comunidades rurais? Fica claro que a meta do setor saúde limita-se em propor alguma ação pontual na perspectiva clínica tradicional à população rural, mas, a usuária, essa é responsável por participar.

Em síntese, neste estudo constatou-se que as agendas públicas locais de saúde não atingem as mulheres rurais nem na sua perspectiva clássica, a reprodutiva, e muito menos são pensadas ações na direção da problemática da violência nesses contextos. As mulheres rurais vivem dinâmicas específicas desse meio, que não são contempladas nas ações e serviços de saúde.

Considerações finais

Os achados do estudo mostram o não reconhecimento dessa problemática na perspectiva da gestão em saúde e assim, a inexistência de agendas locais direcionadas à violência contra as mulheres rurais. Também, evidenciou-se que as áreas rurais são inseridas pontualmente nas agendas públicas de saúde e as ações são pensadas e estruturadas a partir de cenários urbanos. Com isso, estruturam-se ações desconexas da realidade que repercutem na não resolutividade das demandas e problemas advindos das comunidades rurais.

Esses achados revelam que a violência contra as mulheres rurais situa-se no campo da "novidade desconfortável" para o setor saúde, já desconfortável com o próprio rural como espaço de prática, apontando potencialidades, limitações e fragilidades da condução da gestão local em saúde, direcionadas ao enfrentamento dessa problemática. Evidencia-se o desafio aos gestores de traçarem linhas de ação em saúde norteadas pelas diretrizes e princípios do SUS. Com isso, propicia-se a reafirmação de conceitos e práticas hegemônicas em saúde, especialmente na Atenção Básica, da qual se espera, ao contrário, gestão e práticas de proximidade e inovadoras em saúde.

Isso repercute na fragilidade de construção e fortalecimento da atenção integral a essas mulheres, e se expressa em vulnerabilidade programática. Embora o sistema de saúde tenha avançado em muitas práticas baseadas em seus próprios princípios, os sentidos da integralidade na organização da gestão dos serviços foi o que menos avançou, ou, talvez seja, o menos visível na trajetória recente do sistema público de saúde. Assim, o modelo de gestão em saúde como um dos sentidos da integralidade aparece dentre as principais questões a serem enfrentadas para a mudança das práticas e serviços de saúde, a fim de operá-lo na ideia de que, as mulheres rurais são legítimas portadoras de direitos e necessidades singulares, e merecem atenção central nos processos gerenciais das instâncias gestoras dos serviços de saúde.

As ações pontuais desenvolvidas nos cenários pesquisados não dão conta de ver com clareza, de questionar ou mesmo de reconhecer as iniquidades em saúde e reforçam, por um lado, as desigualdades e a dominação de gênero, e por outro legitimam o poder do Estado e seus meios de perpetuar o distanciamento de uma perspectiva de igualdade e legitimidade para demandas próprias das mulheres rurais.

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