versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.1 São Paulo jan. 2020 Epub 10-Fev-2020
https://doi.org/10.36660/abc.20190761
As doenças cardiovasculares são importantes causas de morbidade e mortalidade. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, globalmente, um terço das doenças isquêmicas do coração são atribuíveis ao colesterol elevado e este causa 2,6 milhões de mortes por ano.1 A aterosclerose se inicia na infância e evolui em um processo insidioso que pode levar décadas desde as primeiras lesões arteriais até os desfechos clínicos (morte, infarto do miocárdio ou acidentes vasculares encefálicos). Este processo é acelerado por fatores de risco como colesterol, tabagismo, obesidade e hipertensão arterial.2
O estudo multicêntrico Pathological Determinants of Atherosclerosis in Youth (PDAY) revelou presença de lesões ateroscleróticas em todas as aortas e 50% das artérias coronárias direitas de 1.532 necropsias de indivíduos de 15 a 19 anos de idade.3 Quando foi analisado o papel dos fatores de risco em indivíduos entre 15 e 34 anos encontrou-se que as lesões aórticas e coronárias estavam positivamente com os níveis de LDL e VLDL, intolerância a glicose, tabagismo, hipertensão arterial, obesidade e negativamente associados com níveis de HDL.4 Achados semelhantes foram descritos no Bogalusa Heart Study que associou a presença de estrias gordurosas na aorta com maiores níveis de colesterol total e LDL, além da associação inversa com o HDL.5 Houve também maior gravidade das lesões ateroscleróticas na presença de múltiplos fatores de risco concomitantes (índice de massa corporal, pressão arterial, concentrações de colesterol e triglicerídeos).6
Em concordância com as evidências que elevações do colesterol promovem a aterosclerose, estudos de randomização mendeliana evidenciam que a exposição à níveis geneticamente mais baixos de colesterol desde a infância se associa a uma redução de risco de doença arterial coronariana (DAC). Foi estimado que para cada 1 mmol/l (38,7 mg/dl) de redução no LDL há uma redução de 54,5% (IC 95% 48,8%-59,5%) no risco de DAC.7 Tal redução é 3 vezes superior a obtida com uso de estatinas em idades mais avançadas.7
O metabolismo do colesterol pode ser analisado pela dosagem de esteróis não-colesterol no sangue, marcadores de síntese e absorção de colesterol. Em crianças de 1 a 10 anos de idade a absorção prevalece em relação a síntese.8 Este achado demonstra a importância da dieta como ferramenta de redução do colesterol neste grupo etário.
Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Gomes et al.,9 avaliaram a prevalência de dislipidemias isoladas e em combinação em 62.530 crianças e adolescentes, com idades entre um dia e 19 anos, atendidos na rede de Unidades Básicas de Saúde da cidade de Campinas. Encontraram alterações bioquimicamente classificadas em 67% dos perfis lipídicos avaliados. As prevalências de aumento de colesterol total, triglicerídeos, colesterol LDL e colesterol não-HDL foram, respectivamente, 33%, 40%, 29% e 13%. A presença de colesterol HDL baixo foi encontrada em 39% dos casos analisados.9 Embora o número de indivíduos analisados seja um ponto forte deste estudo, a análise exclusiva dos perfis lipídicos impede quaisquer outras conclusões além da frequência de alterações nesta população.
Os fatores de risco presentes na infância e adolescência provavelmente persistirão até a idade adulta. Este período da vida é uma janela de oportunidade para iniciar medidas efetivas para prevenção de aterosclerose e de eventos clínicos na idade adulta. É, portanto, necessário rastrear e tratar alterações no perfil lipídico de crianças e adolescentes, especialmente daqueles com outros fatores de risco.
Desta forma, a Atualização da Diretriz de Prevenção Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia - 2019 recomenda a dosagem de perfil lipídico universal entre 9-11 anos de idade e a partir de 2 anos quando estiverem presentes outros fatores de risco. A adoção de dieta saudável, a prática de atividade física regular e o controle de peso são os pilares do tratamento das dislipidemias neste grupo etário. O uso de medicação, predominantemente estatinas, deve ser reservado aos casos mais graves (como dislipidemias genéticas) e para falha do tratamento não farmacológico.10