versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.1 São Paulo jan. 2019 Epub 13-Dez-2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180220
Os agentes quimioterápicos da classe das antraciclinas e dos anticorpos monoclonais humanizados são tratamentos eficazes para o câncer de mama, entretanto, apresentam alto risco de cardiotoxicidade. Diversos parâmetros têm sido reconhecidos como preditores no desenvolvimento de toxicidade cardíaca, sendo que a avaliação da alteração contrátil segmentar ventricular esquerda (ACSVE) ainda não foi estudada.
Analisar a associação entre o surgimento de ACSVE e o desenvolvimento de cardiotoxicidade em pacientes com câncer de mama em tratamento com quimioterapia.
Coorte prospectiva de pacientes diagnosticados com câncer de mama e em tratamento quimioterápico com doxorrubicina e/ou trastuzumab. Foram realizados ecocardiogramas transtorácicos antes, durante e depois do tratamento para avaliar a presença ou não de cardiotoxicidade. A cardiotoxicidade foi definida por um decréscimo de 10% na fração de ejeção do ventrículo esquerdo, em pelo menos um ecocardiograma. Modelos de regressão logística multivariada foram utilizados para verificar os fatores preditores na ocorrência de cardiotoxicidade ao longo do tempo.
Dos 112 pacientes selecionados (idade média = 51,3 ± 12,9 anos), 18 (16,1%) apresentaram cardiotoxicidade. Na análise multivariada os pacientes com ACSVE (OR = 6,25 [IC 95%: 1,03; 37,95], p < 0,05), diâmetro sistólico do VE (OR = 1,34 [IC 95%:1,01; 1,79], p < 0,05) e strain longitudinal global pela técnica de speckle tracking (OR = 1,48 [IC 95%: 1,02; 2,12], p < 0,05) foram preditores significativos e independentes na predição de cardiotoxidade.
Mostramos que ACSVE, bem como a redução do strain longitudinal global foram preditores independentes para cardiotoxicidade, podendo ser úteis na estratificação de risco destes pacientes.
Palavras-chave: Disfunção Ventricular Esquerda; Tratamento Farmacológico; Cardiotoxicidade; Neoplasias da Mama; Antraciclinas; Trastuzumab
Chemotherapeutic agents of anthracyclines class and humanized monoclonal antibodies are effective treatments for breast cancer, however, they present a potential risk of cardiotoxicity. Several predictors have been recognized as predictors in the development of cardiac toxicity, and the evaluation of left ventricular segmental wall motion abnormalities (LVSWMA) has not been studied.
To analyze prospectively the role of LVSWMA among echocardiographic parameters in the prediction of development of cardiotoxicity in breast cancer patients undergoing treatment with chemotherapy.
Prospective cohort of patients diagnosed with breast cancer and in chemotherapy treatment with potential cardiotoxicity medications including doxorubicin and trastuzumab. Transthoracic echocardiograms including speckle tracking strain echocardiography were performed at standard times before, during and after the treatment to assess the presence (or lack thereof) of cardiotoxicity. Cardiotoxicity was defined by a 10% decrease in the left ventricular ejection fraction, on at least one echocardiogram. Multivariate logistic regression models were used to verify the predictors related to the occurrence of cardiotoxicity over time.
Of the 112 patients selected (mean age 51,3 ± 12,9 years), 18 participants (16.1%) had cardiotoxicity. In the multivariate analysis using the logistic regression model, those with LVWMA (OR = 6.25 [CI 95%: 1.03; 37.95], p < 0,05), LV systolic dimension (1.34 [CI 95%: 1.01; 1.79], p < 0,05) and global longitudinal strain by speckle tracking (1.48 [CI 95%: 1.02; 2.12], p < 0,05) were strongly associated with cardiotoxicity.
In the present study, we showed that LVWMA, in addition to global longitudinal strains, were strong predictors of cardiotoxicity and could be useful in the risk stratification of these patients.
Keywords: Ventricular Dysfunction, Left; Drug Therapy; Cardiotoxicity; Breast Neoplasms; Anthracyclines; Trastuzumab
A introdução de novos agentes quimioterápicos e o uso de técnicas avançadas e precisas de radioterapia nas últimas décadas melhoraram a sobrevida do câncer de mama.1 Os medicamentos quimioterápicos da classe das antraciclinas e os anticorpos monoclonais humanizados, como o trastuzumab, são amplamente utilizados e agentes eficazes para o tratamento do câncer de mama.2 Infelizmente, as antraciclinas podem induzir efeitos cardiotóxicos, e a gravidade desses efeitos adversos é agravada pelo uso concomitante de trastuzumab.3
A quimioterapia pode trazer várias complicações cardiovasculares, incluindo hipertensão, insuficiência cardíaca congestiva, doenças tromboembólicas, cardiopatia isquêmica, prolongamento do intervalo QT e bradicardia.3 Quando usadas em conjunto, as antraciclinas e trastuzumab podem causar insuficiência cardíaca em até 27% dos pacientes.4 Entre os sobreviventes de câncer, um terço morrerá de doença cardiovascular, tornando-se importante a necessidade de cuidados cardíacos na população com câncer. A detecção precoce da disfunção cardíaca pode permitir a implementação de estratégias cardioprotetoras antes que o dano miocárdico, potencialmente irreversível, tenha ocorrido.5
A definição de disfunção cardíaca relacionada à terapia do câncer (DCRTA) é baseada em um declínio em série na fração de ejeção (FE) do ventrículo esquerdo (VE). A ecocardiografia bidimensional (2DE) é cada vez mais usada para monitorar a função cardíaca durante o tratamento do câncer devido à sua ampla disponibilidade e acurácia. A ecocardiografia permite avaliar a função sistólica e diastólica, as pressões pulmonares, a função valvular, a função ventricular direita e o pericárdio.6
A redução na FEVE provavelmente ocorre tardiamente na história natural dos pacientes com DCRTA, já que a redução da FEVE pode não ser evidente até que uma quantidade substancial de reserva miocárdica esteja esgotada. Portanto são necessárias modalidades mais sensíveis para a avaliação da disfunção subclínica do VE. Apesar do reconhecimento de vários parâmetros ecocardiográficos associados à DCRTA, incluindo avaliação da mecânica miocárdica derivados da ecocardiografia, como strain e strain rate, atualmente não há consenso na prática médica para prever quais pacientes estão propensos a desenvolver cardiotoxicidade.6-8 Estudos anteriores demonstraram a presença de disfunção miocárdica regional em pacientes com DCRTA,9-11 no entanto, seu papel como preditor de risco não foi estabelecido. O objetivo deste estudo é verificar a associação entre a ocorrência da alteração contrátil segmentar ventricular esquerda e o desenvolvimento de cardiotoxicidade em pacientes com câncer de mama em tratamento com quimioterapia.
Este estudo é parte de um estudo de coorte prospectivo de pacientes com câncer de mama recrutados no Hospital Mater Dei em Belo Horizonte - MG de janeiro de 2010 a dezembro de 2016. Os critérios de inclusão foram: idade acima de 18 anos, diagnóstico de câncer de mama histologicamente confirmado, tratamento com doxorrubicina e/ou trastuzumab, e que realizaram ecocardiograma, de acordo com as normas do protocolo hospitalar. Os critérios de exclusão foram pacientes com diagnóstico prévio de disfunção ventricular, incluindo anormalidade contrátil regional, valvopatia significativa, cardiopatia congênita, arritmias, doença arterial coronariana crônica e bloqueio de ramo esquerdo por eletrocardiografia. Os esquemas de tratamento ficaram a critério do oncologista e consistiram no uso dos seguintes medicamentos isoladamente ou em combinação: 1) doxorrubicina e ciclofosfamida; 2) paclitaxel; 3) trastuzumab. As dosagens dos medicamentos foram prescritas de acordo com as diretrizes.12
Foram avaliados diversos parâmetros clínicos (por exemplo: hipertensão, dislipidemia, diabetes), laboratoriais (por exemplo: sódio, potássio, cálcio, magnésio, hemoglobina, creatinina e BNP) e ecocardiográficos antes, durante e após o término do tratamento coletados em intervalos de tempo padronizados para cada regime de tratamento.
Todos os pacientes fizeram um ecocardiograma transtorácico, incluindo avaliação strain longitudinal com ecocardiograma bidimensional de rastreamento do speckle-tracking (2D STE). Os estudos e análises ecocardiográficas foram realizados por um Ecocardiografista experiente (M.V.L.B.). Os seguintes parâmetros ecocardiográficos foram avaliados: diâmetros sistólico final e diastólico final do VE e diâmetro atrial esquerdo. A FEVE foi avaliada pelo método de Simpson. A avaliação visual da função miocárdica regional foi avaliada com base no espessamento parietal e no movimento endocárdico do segmento miocárdico, como descrito previamente.13 O movimento septal anormal foi caracterizado como um movimento atípico do septo interventricular durante o ciclo cardíaco com uma abordagem do modo M guiada pela ecocardiografia bidimensional. A função diastólica foi avaliada e classificada por meio de critérios previamente publicados.14 A disfunção diastólica do VE foi estratificada em quatro graus como: 0-normal, 1-relaxamento alterado, 2-padrão pseudonormal e 3-restritivo.
A deformação longitudinal pelo 2D STE foi obtida a partir de cortes apicais de quatro câmaras, duas câmaras e eixo longo. Três ciclos cardíacos de cada visualização foram registrados para análises com uma taxa de frame rate > 50 frames/seg. A deformação longitudinal máxima negativa foi avaliada em 16 segmentos do VE, definidos como o valor máximo de pico durante todo o ciclo cardíaco, portanto incluindo o encurtamento pós-sistólico, e foi calculada a média da strain longitudinal global (SLG). DCRTA foi definida como uma diminuição na FEVE > 10 pontos percentuais, para um valor < 53% em exames de imagem cardíaca repetidos durante o acompanhamento após a quimioterapia.15
Os estudos ecocardiográficos foram realizados em intervalos padronizados de acordo com o tratamento. 1) os pacientes tratados com antraciclinas sem trastuzumab foram submetidos a um estudo ecocardiográfico no início, no final e a cada seis meses após o término da quimioterapia. 2) os doentes tratados com antraciclinas e trastuzumab foram submetidos a um estudo ecocardiográfico no início e após a conclusão de tratamento com antraciclina, a cada 3 meses durante a terapêutica com trastuzumab e a cada seis meses após o tratamento completo. 3) os doentes tratados com trastuzumab sem antraciclinas foram submetidos a um estudo ecocardiográfico no início, a cada 3 meses durante o tratamento com trastuzumab e a cada seis meses após o tratamento completo.
A avaliação ecocardiográfica foi concluída em pacientes com pelo menos três estudos ecocardiográficos realizados durante o período do tratamento.
Para descrever as variáveis qualitativas, foram utilizadas as frequências absolutas e relativas, enquanto para descrever as variáveis quantitativas, foram utilizadas medidas de tendência central e dispersão.
A fim de identificar os fatores que influenciaram a ocorrência de cardiotoxicidade ao longo do tempo, foi utilizada a abordagem de Equações de Estimação Generalizadas (GEE). Uma estrutura de correlação substituível foi assumida para as observações repetidas do mesmo indivíduo. Modelos univariados e multiariados foram considerados. Não houve ocorrência de cardiotoxicidade na primeira ocasião da medição e, portanto, também incluímos os valores basais dos preditores dependentes. Valores faltantes foram excluídos das análises. Variáveis estatisticamente significantes no nível 0,20 foram incluídas no modelo multivariado. Para este modelo final, adotou-se um nível de significância de 0,05. A reprodutibilidade da avaliação visual da função miocárdica regional anormal foi avaliada pela estatística kappa.
Curvas ROC foram criadas e a habilidade de discriminação do modelo foi avaliada pela área sob a curva ROC. Todas as análises estatísticas foram realizadas usando o R Statistical Software 3.4.1 e os pacotes R gee, pROC e PredictABEL.
O estudo está em conformidade com a Declaração de Helsinque e foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital.
Um total de 112 pacientes foram incluídos. O tempo médio de seguimento foi de 491 dias. As características da população estudada estão resumidas na Tabela 1. A maioria dos pacientes da coorte era do sexo feminino (98,2%). A idade média foi de 51,3 ± 12,9 anos.
Tabela 1 Características clínicas e laboratoriais de 112 pacientes submetidos a quimioterapia
Variável | n |
---|---|
Idade (média ± DP) | 51,4 ± 11,1 |
Feminino (n/%) | 111 (99,1%) |
IMC (kg/m2) | 26,1 ± 5,8 |
Mastectomia (n/%) | 111 (99,1%) |
Tempomédiode acompanhamento (meses) | 16 |
Radioterapia (n/%) | 74 (66) |
Quimioterapia (n/%) | |
AC-T | 90 (80) |
Anti HER2 | 29 (26) |
Outras | 20 (18) |
Terapia hormonal (n/%) | 72 (64) |
Fatores de risco cardiovascular (n/%) | |
Hipertensão | 39 (35) |
Diabetes | 8 (7) |
Hiperlipidemia | 21 (19) |
Tabagismo | 25 (22) |
IMC: índice de massa corporal; AC-T: Doxorrubicina/ ciclofosfamida -Taxol (Paclitaxel).
Dos 112 pacientes acompanhados, 18 (16,1%) apresentavam DCRTA.
As características dos pacientes com alteração contrátil segmentar ventricular esquerda estão resumidas na tabela 2. A alteração contrátil segmentar ventricular esquerda foi encontrada em 16 (14%) pacientes, mais frequente no segundo estudo ecocardiográfico (43%). A análise da alteração contrátil segmentar ventricular esquerda por avaliação visual mostrou anormalidades mais frequentes nas paredes do septo interventricular (78,5% - Figura 1), inferior (14,3%) e inferolateral (7,1%). Durante o seguimento, nenhum paciente apresentou bloqueio de ramo esquerdo pelo estudo eletrocardiográfico.
Tabela 2 Características em pacientes com alteração contrátil segmentar durante a quimioterapia
Paciente | Idade | Tratamento* | Contração anormal | Acompanhamento ecocardiografico | Fatores de risco | DCRTA | Acompanhamento |
---|---|---|---|---|---|---|---|
2 | 49 | 1,2 | Hipocinesia Infero-septal | 5 | Não | Sim | Morte |
5 | 40 | 1,2 | Movimento septal anormal | 2 | Não | Sim | NYHA I |
12 | 68 | 1,2 | Hipocinesia Ínferolateral | 5 | Não | Sim | NYHA I |
21 | 30 | 1,2 | Movimento septal anormal | 3 | Dislipidemia | Não | |
27 | 43 | 1,2 | Movimento septal anormal | 2 | Não | Não | |
52 | 73 | 1 | Hipocinesia Inferior | 4 | Diabetes, Hipertensão | Sim | NYHA I |
63 | 53 | 1 | Hipocinesia septal | 2 | Não | Não | |
67 | 77 | 1,2 | Movimento septal anormal | 4 | Hipertensão | Sim | NYHA II |
72 | 44 | 1,2 | Movimento septal anormal | 2 | Não | Não | |
84 | 59 | 1,2 | Hipocinesia Inferior | 4 | Não | Não | |
88 | 34 | 1 | Movimento septal anormal | 3 | Não | Não | |
92 | 39 | 1 | Movimento septal anormal | 3 | Não | Sim | Morte |
100 | 41 | 1 | Hipocinesia Infero-septal | 2 | Não | Não | |
110 | 62 | 1 | Hipocinesia septal | 2 | Não | Sim | NYHA I |
*1: antraciclina; 2: transtuzumab; DCRTA: disfunção cardíaca relacionada à terapia do câncer; NYHA: New York Heart Association.
Figura 1 Ecocardiograma bidimensional modo M guiado que mostra o movimento anormal do septo interventricular (seta) durante a quimioterapia. VE: ventrículo esquerdo; VD: ventrículo direito.
Entre as variáveis estudadas, observou-se, na análise multivariada, que as medidas da SLG, bem como as dimensões sistólicas do VE e a presença de anormalidades de movimento da parede regional do VE no estudo basal, poderiam predizer o desenvolvimento de cardiotoxicidade (Tabelas 3 e 4). A análise da curva ROC do modelo final (Figura 2) mostrou área sob a curva (AUC) de 0,93 (0,88 - 0,98). Quando excluímos a presença de anormalidade de movimento de parede no modelo, a AUC foi de 0,84 (0,72- 0,96) mostrando poder preditivo aditivo dessa variável (p = 0,047). A variabilidade intra- observador e a variabilidade interobservador para a avaliação do movimento de parede foram de 0,89 e 0,81, respectivamente.
Tabela 3 Análise univariada de preditores relacionados à cardiotoxicidade
Variável | OR | IC 95% | p |
---|---|---|---|
Idade | 1,03 | [0,99; 1,07] | 0,151 |
DDVE | 1,22 | [0,99; 1,50] | 0,061 |
DSVE | 1,69 | [1,35; 2,12] | 0,000 |
Disfunsão diastólica | 3,55 | [1,34; 9,44] | 0,011 |
Alteração contrátil segmentar do VE | 8,91 | [2,75; 28,82] | 0,000 |
AE | 0,95 | [0,78; 1,16] | 0,624 |
SLG | 1,96 | [1,25; 3,09] | 0,022 |
PSAP | 1,86 | [0,32; 10,99] | 0,491 |
BNP | 1,24 | [00,91; 1,70] | 0,306 |
Troponina | 3,36 | [0,49; 23,14] | 0,219 |
Creatinina | 0,04 | [0,00; 2,20] | 0,113 |
Hemoglobina | 0,90 | [0,60; 1,35] | 0,608 |
Sódio | 1,01 | [0,98; 1,03] | 0,623 |
Potássio | 1,33 | [0,51; 3,51] | 0,559 |
Cálcio | 1,06 | [0,81; 1,39] | 0,657 |
Magnésio | 6,20 | [0,67; 57,73] | 0,204 |
Hipertensão | 0,79 | [0,26; 2,39] | 0,673 |
Dislipidemia | 0,41 | [0,07; 2,21] | 0,298 |
Diabetes | 1,15 | [0,15; 8,83] | 0,894 |
DDVE: dimensão diastólica do ventrículo esquerdo; DSVE: dimensão sistólica do ventrículo esquerdo; SLG: strain longitudinal global; AE: dimensão do átrio esquerdo; PSAP: pressão sistólica da artéria pulmonar; BNP: peptídio natriurético cerebral.
Tabela 4 Análise multivariada de preditores relacionados à cardiotoxicidade
Variável | OR | IC 95% | p |
---|---|---|---|
DSVE | 1,34 | [1,01; 1,79] | 0,044 |
Alteração contrátil segmentar do VE | 6,25 | [1,03; 37,95] | 0,046 |
SLG | 1,48 | [1,02; 2,12] | 0,036 |
DSVE: dimensão sistólica do ventrículo esquerdo; SLG: strain longitudinal global.
Neste estudo de coorte longitudinal prospectivo, mostramos que a presença de distúrbios de movimento de parede regional e diminuição de SLG são preditores independentes de DCRTA.
Estudos histopatológicos anteriores realizados a partir de biópsias endomiocárdicas demonstraram um envolvimento inicialmente focal e disperso de miócitos, circundados por células normais em pacientes tratados com antraciclinas.16 À medida que a toxicidade evolui, a frequência dessas alterações aumenta, levando a danos miocárdicos significativos e, posteriormente, a fibrose miocárdica. Assim, a disfunção contrátil segmentar pode preceder o envolvimento intenso e difuso do coração visto no DCRTA. Nesse contexto, a dissincronia do septo interventricular, bem como a hipocinesia segmentar, podem estar presentes devido a edema tecidual e/ou dano celular focal.17
De fato, Piotrowsk et al.,9 demonstraram que em 60,9% dos pacientes com disfunção sistólica do VE foram observadas anormalidades regionais de movimento de parede no primeiro ecocardiograma que revelou uma queda significativa da FEVE. Na maioria desses casos (64%), a hipocinesia regional envolveu o septo interventricular.9 Estudos prévios utilizando Doppler tecidual e strain 2D também mostraram alterações contráteis regionais em pacientes tratados com quimioterapia.10,11 Boyd et al.18 demonstraram que no grupo com disfunção subclínica do VE (> 11% de redução no SLG comparado com antes do tratamento) 58% dos segmentos regionais tiveram uma redução no SLG > 11%, comparado a 29% dos segmentos regionais no grupo sem disfunção subclínica do VE (p < 0,001).18
É bem conhecido que a redução da deformação longitudinal é um fator preditivo precoce da cardiotoxicidade induzida pelo tratamento com antraciclinas e trastuzumab, como confirmado por nossos resultados. Negishi et al. mostraram que o SLG foi um preditor independente de reduções subsequentes na FE, com uma melhoria de discriminação pela adição de SLG de -18,6% dos parâmetros tradicionais pela ecocardiografia em pacientes com risco de cardiotoxicidade induzida pelo trastuzumab.19 Em outro estudo, Sawaya el al.,20 mostraram que, em pacientes com câncer de mama tratados com quimioterapia, a SLG medida no término da terapia com antraciclina foi útil na predição de cardiotoxicidade subsequente.20
Foi demonstrado em uma revisão sistemática que uma redução precoce de 10% a 15% na SLG foi um parâmetro útil para a predição de cardiotoxicidade.21 Um pequeno estudo de coorte associado à disfunção subclínica do VE mostrou que em 7 dias após o tratamento com trastuzumab22 apresentou diminuição significativa da SLG e da velocidade sistólica anular da parede lateral do VE. Fei et al.,23 encontraram em uma coorte de 95 pacientes tratados com antraciclina e trastuzumab, e acompanharam por um tempo médio de 17 meses, 20% com cardiotoxicidade, demonstrando uma associação significativa entre a redução da SLG e o declínio da FEVE.23
A presença de disfunção diastólica não foi um preditor independente de DCRTA em nosso estudo. O uso de disfunção diastólica como um marcador substituto para a predição da cardiotoxicidade induzida pelo trastuzmab é controverso. Estudos anteriores demonstraram que o comprometimento diastólico do VE ocorre antes da deterioração da FEVE na antraciclina24,25 e da cardiotoxicidade induzida pelo transtuzumab.26,27 O desenvolvimento de disfunção diastólica foi relatado em até 57% dos pacientes após o tratamento com antraciclinas ou antraciclinas mais trastuzumab.28 Cochet et al.,28 Serrano et al.,29 avaliaram os parâmetros diastólicos derivados da MUGA e demonstraram que redução da função diastólica do VE antes do tratamento era um preditor independente de cardiotoxicidade mediada pelo trastuzumab. Boyd et al.,18 mostraram em uma coorte envolvendo 140 pacientes que o grau de disfunção diastólica do VE aumentou significativamente de 46% para 57% (p < 0,001) em sete dias após o tratamento com antraciclinas. É importante ressaltar que a disfunção diastólica foi mais predominante no subgrupo com uma redução significativa do SLG, demonstrando a íntima associação entre disfunção sistólica e diastólica.18 Um estudo usando parâmetros de função diastólica derivados da MUGA investigou se o comprometimento da função sistólica era precedido por disfunção diastólica em um grupo de 77 mulheres com câncer de mama em tratamento com trastuzumab. Os resultados deste estudo mostraram um número quase igual de pacientes com disfunção diastólica precedendo a disfunção sistólica (54%), em comparação com o número de pacientes com ordem inversa (42%).30 A discrepância entre esses estudos provavelmente está relacionada aos diferentes desenhos metodológicos e interpretação dos resultados.
Todos os pacientes foram recrutados no centro e o estudo consistiu com um número limitado de pacientes. O estudo foi limitado por um curto período de acompanhamento do paciente e, portanto, qualquer possível impacto a longo prazo das alterações evidenciadas pelo estudo é incerto. O acompanhamento a longo prazo é, portanto, necessário para determinar a significância dessas observações iniciais. O tratamento proposto foi definido individualmente, incluindo o uso de drogas cardioprotetoras, o que pode ter influenciado nossos resultados.
Nesta coorte de 112 pacientes submetidos a tratamento de câncer de mama com quimioterapia, demonstramos que a alteração contrátil segmentar é um preditor independente de cardiotoxicidade, podendo ser uma ferramenta útil na avaliação de pacientes com risco de desenvolver CTRCT, resultando na detecção precoce da disfunção miocárdica e potencial redução na morbidade e mortalidade nesses pacientes.