versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.84 no.5 São Paulo set./out. 2018
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.07.003
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) causa a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids), a pandemia devastadora que continua a afetar milhões de pessoas em todo o mundo.1,2
A infecção pelo HIV e Aids são entidades nosológicas distintas. Muitos indivíduos infectados pelo HIV apresentam um número normal de células imunes, permanecem assintomáticos por longos períodos e podem não ser categorizados com a definição clínica de Aids. Para ser clinicamente definido como portador da doença Aids, indivíduos soropositivos com mais de 13 anos devem apresentar uma contagem de linfócitos T CD4+ abaixo de 350 células por mm3 (Ministério da Saúde, 1999)3 ou desenvolver pelo menos uma condição clínica compatível com a Aids.4
Desde o advento de novos medicamentos antirretrovirais, houve uma mudança consistente no tratamento da infecção pelo HIV que proporcionou a indivíduos infectados um atraso no desenvolvimento da doença e melhorou sua condição clínica, embora haja dúvidas quanto à ação tóxica de medicamentos antirretrovirais tanto em sistemas auditivos periféricos como centrais.
Até a década de 1990, o tratamento mais comumente feito na terapia antirretroviral era a monoterapia, ou seja, o uso de apenas um medicamento. Devido à evolução do tratamento, a terapêutica combinada (mais conhecida como terapia antirretroviral altamente ativa - HAART)5,6 foi estabelecida e apresentou melhor prognóstico para os pacientes devido à inibição da reprodução do HIV; assim, aumentou os índices de sobrevida e, consequentemente, proporcionou redução de mortalidade e atualmente é usada no tratamento de indivíduos com Aids.7
Aids e as terapias desenvolvidas para combatê-la têm muitos efeitos colaterais. Especificamente, distúrbios auditivos e vestibulares acometem 5%-34% dos adultos com HIV/Aids.8 A perda auditiva afeta aproximadamente 20%-50% dos pacientes com HIV/Aids e 75% dos adultos com Aids apresentam algum tipo de transtorno auditivo.9
O HIV e as infecções relacionadas a ele podem afetar múltiplos locais no sistema auditivo e causar anormalidades observáveis em pacientes, como alteração dos timpanogramas, além dos limiares de audibilidade e respostas auditivas do tronco encefálico. A perda auditiva neurossensorial associada ao HIV/Aids pode resultar de neoplasias do sistema nervoso central (SNC), da administração de medicamentos ototóxicos,6,9-14 dos efeitos do HIV no SNC ou no nervo auditivo periférico ou de infecções oportunistas.15 Indivíduos com HIV/Aids também frequentemente apresentam otite externa e otite média.16
Apesar desses fatores, não foram estabelecidos padrões consistentes de deficiência auditiva em adultos com HIV/Aids.17 Assim, os problemas que afetam o sistema auditivo dessa população justificam pesquisas futuras. O objetivo do presente estudo foi comparar os achados audiológicos e eletrofisiológicos de pacientes HIV positivos com e sem Aids que recebiam HAART com os de indivíduos saudáveis.
Estudo transversal, observacional e descritivo feito no Laboratório de Investigação Fonoaudiológica em Potenciais Evocados Auditivos do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) entre janeiro de 2012 e dezembro de 2014. Os métodos de pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) do Conselho Clínico do Hospital das Clínicas e FM-USP sob protocolo número 1.026/04. Todos os participantes assinaram um termo de consentimento informado. Este estudo foi feito de acordo com a Declaração de Helsinque.
A amostra consistiu em 71 indivíduos entre 30 e 48 anos, divididos em três grupos. O Grupo de Pesquisa I (GPI) incluiu 16 pacientes HIV positivos sem Aids, cujo status foi confirmado por sorologia e que nunca haviam recebido tratamento antirretroviral. O Grupo de Pesquisa II (GPII) incluiu 25 pacientes HIV-positivos com Aids, cujo status foi confirmado por sorologia. Todos os pacientes no GPII recebiam HAART (terapia combinada), que consistia em pelo menos três dos seguintes medicamentos: lamivudina, zidovudina, efavirenz, didanosina, nevirapina, lopinavir-r, tenofovir, estavudina, indinavir, abacavir, amprenavir, ritonavir e atazanavir.
Finalmente, o Grupo de Controle (CG) consistiu em 30 indivíduos saudáveis com estado de HIV negativo relatado e confirmado, sem histórico de doenças psiquiátricas e neurológicas, sem queixas de processamento auditivo, auditivas ou de fala.
Os indivíduos do GPI e GPII foram encaminhados para o estudo pela Casa da Aids - Fundação Zerbini, São Paulo, Brasil e pelos Serviços de Saúde da Cidade Especializados em Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST/Aids) da Secretaria de Saúde da Cidade de São Paulo.
Os critérios de exclusão para os três grupos foram: audiometria tonal com perda auditiva moderadamente severa a profunda, gravidez, presença de infecções oportunistas em atividade, história de cirurgia otológica ou história de doença não relacionada ao HIV, presença de qualquer comprometimento cognitivo que pudesse afetar os resultados de testes de audição (esses dados foram obtidos nos prontuários médicos).
Os dados relativos à infecção pelo HIV e à categoria de exposição, bem como ao histórico de uso de antirretrovirais e outros fármacos com potencial ototóxico, foram obtidos a partir dos prontuários médicos de pacientes no GPI e GPII. Foram feitas entrevistas para avaliar a presença de indicadores de risco para perda auditiva. A inspeção visual do meato acústico externo (otoscopia de Heine) foi feita para identificar possíveis obstruções de cerume ou corpos estranhos que pudessem interferir nos testes auditivos.
As medidas de imitância acústica (timpanometria, reflexo acústico) foram feitas com o equipamento AT 235 (Interacoustic) para verificar as condições da orelha média. Os limiares de audibilidade por condução aérea em todas as frequências, de 0,25-8 kHz e nas frequências altas ampliadas a 9; 10; 12,5; 14; 16; 18 e 20 kHz foram obtidos com um audiômetro clínico GSI 61 (Grason-Stadler, Inc., Madison, WI) com técnicas audiométricas padrão em uma sala acusticamente tratada.
Foi usada uma classificação para determinar o grau de perda auditiva e classificar o tipo de perda auditiva: perda auditiva condutiva, neurossensorial, mista ou isolada em altas frequências.18,19
Os testes eletrofisiológicos (Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico - PEATE, Potencial Evocado Auditivo de Média Latência - PEAML, Potencial Cognitivo - P300) foram feitos em uma sala eletricamente e acusticamente tratada. A avaliação eletrofisiológica foi feita com um eletroneuromiógrafo de dois canais (Express Traveler Portable System, Biological Systems Corp., Mundelein, IL, EUA). Fones convencionais Biologic modelo TDH 39 foram usados para fornecer os estímulos sonoros para os testes eletrofisiológicos. Os eletrodos foram colocados na testa (Fpz), mastoides esquerda e direita (M1 e M2) e junções parieto-temporais esquerda e direita (C3 e C4) de acordo com o Sistema Internacional de Eletrodos (IES). Os valores de impedância foram mantidos abaixo de 5 kOhms.
Para o PEATE utilizou-se uma velocidade de apresentação de 19 cliques por segundo, com 0,1 microssegundos de duração, inclinação do filtro de 12 dB/oitava, com filtros passa alto de 100 Hz e passa baixo de 1500 Hz, totalizando 2000 varreduras. O estímulo foi de 80 dBnNA. Os traçados foram duplicados para assegurar a fidedignidade da resposta. As latências absolutas das ondas I, III e V e interpicos I-III, III-V e I-V foram analisados.
O PEAML foi obtido com estímulo clique apresentado monoauralmente a 70 dBnNA, em uma velocidade de apresentação de 9,9 cliques por segundo, com filtros passa banda de 10 a 300 Hz, totalizando 1.000 estímulos. As latências das ondas Na e Pa e a amplitude Na-Pa foram obtidas contralateralmente (C3/A2, C4/A1) e ipsilateralmente (C3/A1, C4/A2).
Os indivíduos foram solicitados a permanecer com os olhos fechados durante o registro de potenciais cognitivos - P300, para controlar os artefatos decorrentes da movimentação ocular. O paradigma oddball foi usado nos registros P300. Esse paradigma baseou-se na distinção entre um estímulo alvo repetido aleatoriamente (20% do tempo) e o estímulo não alvo com repetição frequente (80% do tempo). Solicitou-se aos indivíduos que contassem os estímulos alvo sempre que os discriminassem. O estímulo auditivo monoaural foi apresentado. O estímulo foi apresentado a 75 dBnNA, em uma velocidade de apresentação de 1,1 estímulos por segundo, com filtros passa alto de 1 Hz e passa baixo de 30 Hz, totalizando 300 estímulos. Para o P300, o traçado correspondente aos estímulos não alvo foi subtraído do correspondente aos estímulos alvo, sendo a latência do P300 analisada no ponto positivo mais alto (amplitude) de 250-650 ms.
A análise dos componentes dos testes eletrofisiológicos foi feita pelo investigador principal e por um segundo pesquisador experiente no campo da eletrofisiologia. Os registros eletrofisiológicos foram avaliados de maneira cega; os pesquisadores não sabiam sobre a associação participante/grupo.
Os resultados foram enviados para as instituições prestadoras de cuidados dos indivíduos do GPI e GPII. Em caso de resultados anormais, os pacientes foram encaminhados para avaliação otorrinolaringológica e instruídos a retornar para reavaliação após três meses.
As análises estatísticas foram feitas com Anova (um fator), teste de Tukey e teste exato de Fisher. Também calculamos odds ratio e medidas descritivas. Inicialmente, as orelhas esquerda e direita de cada grupo foram comparadas para cada teste. Como não foram encontradas diferenças, as orelhas foram agrupadas e em seguida comparadas. Um valor de p de 0,05 foi considerado significativo e foi designado com um asterisco (*).
A tabela 1 mostra a distribuição de sexo e idade no GC, GPI e GPII; queixas de audição, contagem de linfócitos T CD4+ e tempo de infecção por HIV em grupos GPI e GPII. Não houve diferenças estatisticamente significativas entre os grupos em relação a sexo (p = 0,218), idade (p = 0,119), queixas auditivas (p = 0,064), contagens de linfócitos T CD4 + (p = 0,193) e tempo de infecção pelo HIV (p = 0,168).
Tabela 1 Análise descritiva do sexo, idade, presença de queixas auditivas, contagem de linfócitos T CD4+ e tempo de infecção pelo HIV do GC, GPI e GPII
GC | GPI | GPII | |
---|---|---|---|
Mulher:Homem | 14:16 | 4:14 | 9:18 |
Idadea | 36,6 ± 6,1 | 39,4 ± 8,1 | 40,3 ± 6,7 |
Queixas auditivas (%) | - | 61 | 89 |
Contagens de linfócitos T CD4+ b | - | 585,3 ± 242,0 | 477,0 ± 273,3 |
Tempo de infecção pelo HIVc | 86,5 ± 57,7 | 111,6 ± 57,5 |
aEm anos (média ± desvio-padrão).
bCélulas por mm3.
cEm meses.
A figura 1 mostra as queixas auditivas em indivíduos HIV-positivos do GPI e GPII. A queixa mais frequente foi tontura, seguida por zumbido no GPI. No GPII, a queixa mais frequente foi perda de audição, seguida por zumbido. Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos GPI e GPII (p = 0,064); 61% dos indivíduos do grupo GPI e 89% do GPII apresentaram pelo menos uma queixa de audição.
Figura 1 Queixas auditivas (em %) em indivíduos HIV-positivos de GPI e GPII (EF, perda auditiva; Z, zumbido; T, tontura; PA, plenitude auricular; E, dor de ouvido; A, assintomática).
A tabela 2 mostra a porcentagem do tipo de perda auditiva encontrada em cada grupo. A neurossensorial representou o tipo mais comum de perda auditiva nos três grupos. O GPII apresentou maior porcentagem de perda (44%), seguido do GPI com 25%. Quando GPI e GPII foram comparados ao GC quanto ao risco de perda auditiva, o GPII apresentou taxa de risco e odds ratio significativamente maiores do que o GPI (tabela 3).
Tabela 2 Frequência de perda auditiva absoluta e relativa no GPI, GPII e GC
Tipo de perda auditiva | GPI (n = 16) | GPII (n = 25) | GC (n = 30) | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
A | B | C | A | B | C | A | B | C | ||||
n (%) | 1 (6,25%) | 3 (18,75%) | 0 (0%) | 4 (16%) | 5 (20%) | 2 (8%) | 0 (0%) | 2 (6,7%) | 0 (0%) |
A, perda auditiva condutiva; B, perda auditiva neurossensorial ou perda auditiva isolada em altas frequências; C, perda mista.
Tabela 3 Comparação dos riscos de perda auditiva entre GPI, GPII e GC
GPI vs. GC | GPII vs. GC | |
---|---|---|
Velocidade (GC velocidade = 0,066) | 0,25 | 0,44 |
Taxa de risco (IC) | 3,75 (0,76-18,30) | 6,6 (1,61-27,03) |
Odds ratio (IC) | 4,66 (0,75-29) | 11 (2,13-56,56) |
p-valor (teste exato de Fisher) | 0,198 | 0,002 |
Os limiares médios audibilidade na audiometria convencional e de alta frequência foram menores para GC do que os observados nos outros dois grupos (tabela 4). As diferenças nos limiares entre GC e GPII foram estatisticamente significativas para todas as frequências avaliadas. A comparação entre GC e GPI mostrou diferenças nos limiares que foram significativas e começaram na frequência de 6 kHz. Na comparação entre GPI e GPII, diferenças significativas não foram encontradas apenas para as frequências de 8 e 9 kHz.
Tabela 4 Limiares auditivos médios por frequência no GPI, GPII e GC
Média (dBHL) | DP | p-valor | Teste de Tukey | ||
---|---|---|---|---|---|
250 Hz | GPI | 10,15 | 11,39 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 25,3 | 23,69 | M1 vs. M3, não significativo | ||
GC | 5,5 | 4,08 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
500 Hz | GPI | 8,28 | 9,88 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 22,9 | 23,34 | M1 vs. M3, não significativo | ||
GC | 5,16 | 3,9 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
1000 Hz | GPI | 7,34 | 9,24 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 21 | 23,66 | M1 vs. M3, não significativo | ||
GC | 5,16 | 4,69 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
2000 Hz | GPI | 6,09 | 11,41 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 20,8 | 22,64 | M1 vs. M3, não significativo | ||
GC | 4 | 5,02 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
3000 Hz | GPI | 9,21 | 9,25 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 22,6 | 21,97 | M1 vs. M3, não significativo | ||
GC | 3,83 | 4,25 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
4000 Hz | GPI | 12,65 | 11,49 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 25,5 | 24,27 | M1 vs. M3, não significativo | ||
GC | 4,91 | 5,48 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
6000 Hz | GPI | 17,34 | 12,88 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 29,1 | 28,61 | M1 vs. M3, p < 0,05a | ||
GC | 6,25 | 6,55 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
8000 Hz | GPI | 19,06 | 21,19 | < 0,0001a | M1 vs. M2, não significativo |
GPII | 27,5 | 29,19 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 5,25 | 5,85 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
9000 Hz | GPI | 23 | 21,87 | < 0,0001a | M1 vs. M2, não significativo |
GPII | 32,73 | 30,24 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 9,25 | 7,52 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
10000 Hz | GPI | 20,83 | 21,77 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,05a |
GPII | 32,73 | 29,45 | M1 vs. M3, p < 0,05a | ||
GC | 7,83 | 8,09 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
11,200 Hz | GPI | 24 | 23,28 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 39,04 | 28,90 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 8,66 | 9,56 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
12,500 Hz | GPI | 30 | 27,32 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,05a |
GPII | 43,69 | 30,50 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 11,25 | 12,13 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
14000 Hz | GPI | 34,33 | 26,61 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 53,69 | 24,42 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 12,5 | 14,51 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
16000 Hz | GPI | 34 | 23,64 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 50,59 | 14,53 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 12,91 | 14,70 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
18000 Hz | GPI | 20,16 | 13,16 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 32,38 | 8,05 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 10,16 | 9,78 | M2 vs. M3, p < 0,01a | ||
20000 Hz | GPI | 7,85 | 7,98 | < 0,0001a | M1 vs. M2, p < 0,01a |
GPII | 13,92 | 7,03 | M1 vs. M3, p < 0,01a | ||
GC | 2,41 | 4,26 | M2 vs. M3, p < 0,01a |
DP, desvio-padrão; p-valor e teste de Tukey compararam limiares padrão de GPI, GPII e GC.
aIndica p-valor estatisticamente significativo.
A tabela 5 compara componentes do PEATE nos três grupos. O GC apresentou as latências mais curtas e diferenças significativas entre os grupos foram detectadas para as ondas I, III e V e para o intervalo interpico I-V. Em relação aos componentes de latência média, diferenças significativas na latência e amplitude foram encontradas para as ondas Na e Pa apenas para o eletrodo posicionado em C3 (tabela 6). Finalmente, a tabela 6 indica também que, em relação à onda P3, o GC teve menor latência que GPI e GPII, que foram semelhantes entre si.
Tabela 5 Valores médios de latência das ondas I, III e V e dos interpicos I-III, III-V e I-V do PEATE nos GPI, GPII e GC
Latências | Onda I | Onda III | Onda V | |||||||||
GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | ||||
Média (ms) | 1,82 | 1,73 | 1,55 | 3,87 | 3,93 | 3,74 | 5,89 | 5,94 | 5,67 | |||
DP | 0,52 | 0,39 | 0,10 | 0,30 | 0,51 | 0,15 | 0,33 | 0,58 | 0,16 | |||
p-valor | 0,001a | 0,018a | 0,001a | |||||||||
Teste de Tukey | M1 vs . M2, não significativo | M1 vs. M2, não significativo | M1 vs. M2, não significativo | |||||||||
M1 vs. M3 p < 0,01 | M1 vs. M3, não significativo | M1 vs. M3, p < 0,05 | ||||||||||
M2 vs. M3 p < 0,05 | M2 vs. M3, p < 0,05 | M2 vs. M3, p < 0,01 | ||||||||||
Interpicos | I-III | I-V | III-V | |||||||||
GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | ||||
Média (ms) | 2,29 | 2,23 | 2,19 | 4,39 | 4,33 | 4,05 | 2,01 | 2,09 | 2 | |||
DP | 0,38 | 0,31 | 0,12 | 0,62 | 0,62 | 0,41 | 0,14 | 0,38 | 0,41 | |||
p-valor | 0,265 | 0,005a | 0,400 | |||||||||
Teste de Tukey | - | M1 vs. M2, não significativo | - | |||||||||
M1 vs. M3, p < 0,01 | ||||||||||||
M2 vs. M3, não significativo |
DP, desvio-padrão; p-valor e teste de Tukey compararam latências de GPI, GPII e GC.
aIndica p-valor estatisticamente significativo.
Tabela 6 Valores médios de latência e amplitude das ondas Na e Pa do PEAML e de latência do P300 nos GPI, GPII e GC
Latências | Na (C3) | Pa (C3) | Na (C4) | Pa (C4) | ||||||||||||
GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | |||||
Média (ms) | 21,37 | 21,50 | 19,26 | 35,03 | 32,35 | 34,12 | 19,73 | 20,96 | 19,58 | 32,37 | 32,13 | 34.33 | ||||
DP | 4,04 | 6,21 | 3,06 | 4,81 | 6,45 | 3,15 | 1,95 | 6,21 | 3,91 | 4,39 | 6,97 | 3.62 | ||||
p-valor | 0,022a | 0,039a | 0,255 | 0,059b | ||||||||||||
Teste de Tukey | M1 vs. M2, não significativo | M1 vs. M2, p < 0,05 | - | - | ||||||||||||
M1 vs. M3, não significativo | M1 vs. M3, não significativo | |||||||||||||||
M2 vs. M3, não significativo | M2 vs. M3, não significativo | |||||||||||||||
Amplitudes | C3 | C4 | ||||||||||||||
GPI | GPII | CG | GPI | GPII | CG | |||||||||||
Média (µv) | 3,50 | 1,59 | 2.31 | 1,78 | 1,66 | 2,04 | ||||||||||
DP | 3,01 | 1,38 | 2.70 | 1,28 | 1,14 | 1,92 | ||||||||||
p-valor | 0,002a | 0,421 | ||||||||||||||
Teste de Tukey | M1 vs. M2, p < 0,01 | - | ||||||||||||||
M1 vs. M3, não significativo | ||||||||||||||||
M2 vs. M3, não significativo | ||||||||||||||||
Latências | P300 | |||||||||||||||
GPI | GPII | CG | ||||||||||||||
Média (µv) | 337,5 | 331,6 | 313,23 | |||||||||||||
DP | 28,12 | 42,98 | 30,06 | |||||||||||||
p-valor | 0,002a | |||||||||||||||
Teste de Tukey | M1 vs. M2, não significativo | |||||||||||||||
M1 vs. M3, p < 0,01 | ||||||||||||||||
M2 vs. M3, p < 0,05 |
DP, desvio-padrão; p-valor e teste de Tukey compararam latências de GPI, GPII e GC.
aIndica p-valor estatisticamente significativo.
bIndica significância estatísticas de marginal. Ondas Na obtidas com posições de eletrodos C3 e C4 e Pa com posições de eletrodos C3 e C4. Amplitude Na-Pa obtida com posições de eletrodos C3 e C4.
A ocorrência frequente de anormalidades auditivas em indivíduos com HIV/Aids é conhecida há muito tempo20,21 e muitos alvos potenciais foram relatados, desde a orelha média até o sistema auditivo nervoso central. No entanto, um padrão discernível não foi encontrado, nem uma doença primária que poderia resultar em deficiência auditiva.17 Assim, o presente estudo concentrou-se nessas questões ao avaliar simultaneamente a via auditiva periférica e central em indivíduos com HIV/Aids, submetidos ou não a HAART, e em indivíduos saudáveis.
Quanto às queixas de audição, não foram observadas diferenças significativas entre GPI e GPII; 61% dos indivíduos do grupo GPI e 89% do GPII apresentaram pelo menos uma queixa auditiva. Vários estudos relataram associação entre a infecção pelo HIV e os sinais/sintomas neurotológicos. Os indivíduos com Aids geralmente têm queixas auditivas, pois as manifestações otorrinolaringológicas são comuns em qualquer estágio da doença, levam a sintomas específicos, como perda auditiva, zumbido, tonturas e plenitude auricular,13,14,20-22 que também foram observados no presente estudo.
A perda auditiva neurossensorial representou o tipo mais comum nos três grupos, o que está de acordo com estudos anteriores.9 O GPII apresentou maior percentual de perda (44%), seguido do GPI (25%). Essas descobertas são compatíveis com o trabalho anterior que mostrou perdas entre 21% e 49%.23 Vale ressaltar que essas perdas podem variar de acordo com os critérios adotados para a perda auditiva e a faixa etária incluída em cada estudo.9,15,17
Observamos também um risco aumentado de perda auditiva no GPII. Encontramos um índice de risco de 6,6 para GPII, quase o dobro encontrado para GPI (3,75). A odds ratio para a presença de perda auditiva foi de 11 para GPII e 4,66 para GPI em comparação com o GC. Esses achados são compatíveis com um trabalho anterior. Ele mostra que os indivíduos HIV positivos submetidos a HAART apresentaram maior odds ratio para perda de audição do que indivíduos saudáveis. No entanto, esses autores não fizeram comparações com indivíduos HIV positivos que não receberam HAART. Nossos resultados contrastam com os relatados anteriormente,16 que encontraram uma fraca associação positiva entre o estágio do HIV e a fraca função coclear, com uma odds ratio ligeiramente superior a um. No entanto, esse trabalho anterior dependia de uma técnica diferente (emissões otoacústicas) e não separava os indivíduos em relação ao uso ou não de HAART.
O GC teve limiares auditivos mais baixos do que os outros dois grupos e o GPI apresentou limiares mais baixos do que GPII com diferenças significativas na maioria das frequências testadas. Esses achados sugerem a existência de mecanismos subjacentes à piora dos limiares de audição nos dois grupos de pacientes com HIV/Aids: presença do virus na cóclea;24 uma combinação de HIV com infecções oportunistas; e/ou efeitos dos agentes terapêuticos ototóxicos.2,9,15,17 Especificamente no GPII (indivíduos com Aids), esses mecanismos podem atuar em sinergia, enquanto a não administração de HAART no GPI exclui a existência de efeitos de fármacos ototóxicos. Essa hipótese é sustentada pelo trabalho com células HEI-OC1 que avaliou o potencial ototóxico de 14 agentes anti-HIV, a maioria dos quais foi usada por pacientes do GPII.6 Nesse estudo anterior, os autores sugerem que muitos desses fármacos, usados como agentes antirretrovirais, podem ter efeitos deletérios para o sistema auditivo de pacientes e pesquisas estão em andamento para validar essa ideia.
Vale ressaltar que a perda de audição neurossensorial afeta mais frequentemente pacientes com infecção grave por HIV.22 Esse fato também pode explicar por que os indivíduos no GPI, que não estavam sob tratamento com HAART e provavelmente apresentavam infecções menos graves do que os do GPII, tiveram problemas de audição menos intensos.
Em relação ao PEATE, o GC teve latências mais curtas do que o GPI e o GPII, que eram semelhantes entre eles. Outros estudos anteriores compararam o ABR de pacientes HIV positivos e controles.25-31 Os resultados desses relatórios incluíram atrasos de latência de uma ou mais ondas e latências aumentadas de um ou mais intervalos interpicos, todos os quais concordam com o presente estudo.
O HIV pode afetar as áreas subcortical e cortical do SNC e o sistema gerador do PEATE depende da sincronização temporal da atividade neuronal. Assim, a condução central de informações auditivas em pacientes com vários graus de infecção pelo HIV pode ser afetada, o que pode gerar mudanças nas ondas do PEATE, frequentemente ocasionando latências aumentadas das ondas III e V, enquanto as ondas I e II mantêm latências absolutas normais.32
Em relação ao PEATE em indivíduos com HIV/Aids, esses resultados indicam a utilidade desse procedimento para a detecção de sinais iniciais de neurodegeneração nessa população e no monitoramento de evolução das lesões.25,28 Esses achados também enfatizam o papel da imunossupressão no desenvolvimento de anormalidades neurais que envolvem a via auditiva do tronco encefálico durante o curso da doença.26
Em relação ao PEAML, observamos diferenças significativas na latência e amplitude das ondas Na e Pa com o eletrodo posicionado em C3. Em dois outros estudos com MLR em pacientes com HIV/Aids, verificou-se uma tendência para o aumento da latência e a redução da amplitude da onda pa33, ao passo que o outro encontrou efeitos orelhas e eletrodos que aconteciam concomitantemente.31 Os dois estudos sugeriram que a informação auditiva foi prejudicada nas regiões corticais e subcorticais, reforçaram a necessidade de uma investigação detalhada da função auditiva em indivíduos com HIV/Aids.
Esse resultado pode ser explicado pelo fato de que a primeira alteração do SNC nessa população inclui desmielinização subcortical, mesmo antes de manifestações neurológicas clínicas estarem presentes.34 Na mesma linha, outro trabalho sugeriu que o HIV afeta as áreas subcortical e cortical do SNC, cruciais para a geração dos componentes do PEAML, explicando assim as anormalidades.32 No entanto, estudos que avaliam o PEAML de indivíduos HIV positivos permanecem escassos, já que a maioria das pesquisas utiliza o PEATE e P300.
No que diz respeito ao P300, encontramos diferenças significativas entre os três grupos para a onda P3, com latências mais curtas do GC e sem diferenças entre o GPI e o GPII. Estudos anteriores usaram potenciais evocados auditivos de longa latência para avaliar a via auditiva central de indivíduos com HIV/Aids.31,33,35-39 Todos esses estudos relataram alterações, principalmente um aumento na latência ou redução da amplitude das ondas N1, P2 e/ou P3, na comparação com indivíduos saudáveis. Esses achados podem estar associados à cognição prejudicada, um problema que pode estar presente em pacientes com Aids.35,37 Outros autores acrescentaram que o P300 parece ser um indicador precoce de déficits cognitivos em pacientes soropositivos, visto que a amplitude reduzida sugere um prejuízo na atenção, e a latência prolongada um processamento mais lento da informação acústica.38,39
A abordagem inovadora do presente estudo foi avaliar simultaneamente as vias auditivas periférica e central de indivíduos HIV positivos submetidos ou não a HAART e compará-los com indivíduos saudáveis. Nossos achados sugerem que indivíduos HIV positivos podem desenvolver alterações nos sistemas auditivos periféricos e centrais que podem resultar da ação viral direta, da presença de infecções oportunistas e/ou do uso de fármacos ototóxicos.
Em relação ao número de indivíduos, vale a pena mencionar que alguns desafios foram encontrados para ampliar a amostra, especialmente em relação ao encaminhamento dos indivíduos do GPI, uma vez que a população HIV positiva que não foi submetida a tratamento antirretroviral é escassa. Por esse motivo, não foi possível atingir o mesmo número de indivíduos no GPII.
Especificamente em relação ao GPII, como cada paciente recebeu pelo menos três medicamentos entre os disponíveis para HAART, não foi possível obter uma amostra homogênea quanto ao tipo de medicação usada.
Pacientes HIV-positivos com e sem Aids, que receberam HAART, quando comparados com indivíduos saudáveis, apresentaram:
- Limites auditivos elevados nas avaliações de audiológicas comportamentais (audiometria tonal convencional e audiometria de alta frequência), sendo que o grupo submetido a HAART apresentou limiares mais elevados.
- Latências aumentadas das ondas I, III, V e interpico I-V no PEATE, sugerindo diminuição da velocidade de transmissão do impulso neuroelétrico ao longo da via auditiva do tronco encefálico.
- Latência aumentada do P300 sugerindo redução na velocidade de processamento da informação acústica em regiões corticais.
- Redução na amplitude da onda Pa do PEAML na comparação entre GPII e GPI, sugerindo alterações na via auditiva em regiões corticais e subcorticais.