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Alterações auditivas na esclerose sistêmica

Alterações auditivas na esclerose sistêmica

Autores:

Marília Mendes Silva,
Roberto Paulo Correia de Araújo,
Fernando Antonio Glasner da Rocha Araujo,
Julia de Souza Valente,
Ana Paula Corona

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.31 no.1 São Paulo 2019 Epub 21-Fev-2019

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018119

INTRODUÇÃO

A esclerose sistêmica (ES) é uma alteração multissistêmica complexa, com anormalidades no sistema imunológico, tecido conjuntivo e sistema vascular. É caracterizada por inflamação crônica, lesão difusa dos pequenos vasos e fibrose progressiva na pele e em vários órgãos (1-4).

A incidência da ES foi estimada em 0,6-122 por milhão de pessoas por ano, e as taxas de prevalência variam 4-489 casos por milhão de indivíduos(5,6). A ES ocorre em diversas áreas geográficas, com diferenças regionais de incidência, e em diferentes raças, com maior taxa de incidência em negros comparada a brancos. Adicionalmente, as mulheres são acometidas três vezes mais que os homens e a idade média de aparecimento da doença é entre os 30 e 50 anos(1,2,5,7,8).

A classificação clínica de ES tem sido reconhecida em duas categorias principais, utilizando-se a extensão do comprometimento cutâneo como discriminador: difusa, a qual é caracterizada por um comprometimento generalizado da pele, além de envolvimento precoce dos órgãos internos; e limitada, em que o comprometimento da pele costuma ser restrito aos dedos das mãos, antebraço e face e o envolvimento dos órgãos internos ocorre tardiamente(3).

Investigações internacionais descrevem alterações auditivas e vestibulares em indivíduos com ES. Além disso, revelam prevalência variável quanto ao grau e tipo da perda auditiva e, em apenas um estudo, foi verificado relação entre a audição e o tipo e a gravidade da doença (9-13). No entanto, a relação da perda auditiva e a ES não é totalmente esclarecida e nenhuma das investigações já conduzidas apresentaram delineamento prospectivo. No Brasil, apenas a publicação prévia dos resultados parciais do presente estudo foi localizada(14).

Diante deste panorama, e considerando que a ES é uma doença progressiva e com sintomatologia que repercute no convívio social dos indivíduos, além da plausibilidade biológica da alteração auditiva pela fisiopatologia desta enfermidade, o objetivo deste estudo foi descrever as queixas e alterações auditivas em indivíduos com ES, bem como verificar a evolução do quadro audiológico.

MÉTODO

Trata-se de um inquérito epidemiológico seccional, aliado a uma fase prospectiva, desenvolvido com todos os pacientes que realizavam acompanhamento em ambulatório de referência em reumatologia de um hospital universitário no Estado da Bahia. O diagnóstico da ES foi estabelecido de acordo com os critérios internacionais do American College of Rheumatology (ACR) – European League Against Rheumatism (EULAR) de 1980 e 2013 e a coleta de dados do estudo foi realizada em dois momentos distintos, no ano de 2012 e de 2015(15,16). O ano de realização da primeira avaliação audiológica foi considerado tempo zero (T0) do estudo. Já, o tempo um (T1) foi estabelecido como o ano em que os indivíduos realizaram a reavaliação audiológica.

Em ambos os momentos, foram coletados dados de identificação (nome, idade e data de nascimento) e informações em relação ao ano de início dos sintomas, ano de diagnóstico e subtipo da ES através da análise dos prontuários médicos. Posteriormente, foi realizada a anamnese audiológica para identificação de estilo de vida, queixas e sintomas auditivos e vestibulares, além de dados sociodemográficos e audiometria pregressa (audiometria anterior à inclusão no estudo).

Na anamnese audiológica, os indivíduos foram questionados quanto à presença de queixas relacionadas à audição. A primeira queixa relatada foi considerada como queixa principal. Em seguida, foram realizadas perguntas direcionadas em relação à presença dos seguintes sintomas: perda auditiva, dificuldade de entender a fala, otalgia, otorreia, desconforto a sons intensos, autofonia, zumbido e tontura. Caso o indivíduo referisse perda auditiva, eram investigadas as características da afecção (unilateral ou bilateral), instalação e progressão desta. Para aqueles que relataram a presença de zumbido ou tontura, houve a caracterização destes quanto ao tipo, intensidade e frequência de ocorrência.

Em relação às condições de saúde e de estilo de vida, os indivíduos foram questionados quanto à exposição a ruído e produtos químicos, presença de outras comorbidades, internação com risco de morte, traumatismo craniano, realização de quimioterapia e/ou pulsoterapia e o consumo de medicamentos ototóxicos e fumo. Para aqueles que referiram consumo de tabaco, foi considerado sim para os fumantes atuais e ex-fumantes, com tempo de consumo maior ou igual a dois anos, e não para os nunca fumantes. Em seguida, todos os indivíduos foram submetidos à avaliação audiológica básica e aqueles que apresentaram limiares auditivos superiores a 25dBNA, em qualquer frequência pesquisada, uni ou bilateralmente, foram considerados como portadores de perda auditiva. O tipo de perda auditiva foi classificado em sensorioneural, condutiva ou mista e o grau foi estratificado em cinco categorias: leve, moderado, moderadamente severo, severo e profundo. Já a configuração da perda auditiva foi classificada como horizontal, descendente, curva em U invertido e entalhe(17). As perdas auditivas que não atendiam à classificação consultada, quanto ao grau e configuração, foram consideradas como não classificável.

Os dados coletados foram digitados e organizados com o auxílio do programa EpiData 3.1. Inicialmente foram estimados a média, mediana, o desvio padrão, intervalo interquartil, valor mínimo e valor máximo de referência e as frequências das variáveis sociodemográficas. Em seguida, os sintomas e os achados otoneurológicos foram descritos e quantificados. Adicionalmente, na análise prospectiva para identificação do quadro evolutivo audiológico dos indivíduos que foram avaliados em T0 e T1, foi realizada a comparação entre os achados audiométricos obtidos em ambos os tempos. Foi considerada a presença de mudança nos limiares quando a diferença entre T1 e T0 foi igual ou superior a 10dB, pelo menos em uma frequência, considerando que variação inferior entre limiares audiométricos pode ocorrer devido a fatores como ruído ambiental, temperatura, transdutores utilizados, motivação dos pacientes e critérios do examinador(17).

Participaram do estudo 50 indivíduos com diagnóstico médico de ES. Em 2012, o Serviço de Reumatologia registrou o acompanhamento de 40 indivíduos com ES, e foi realizada a anamnese e avaliação audiológica em 27 deles. Já no ano de 2015, o referido serviço acompanhava 84 indivíduos, sendo que, destes, apenas 61 eram pacientes ativos, ou seja, compareciam às consultas médicas previamente agendadas pelo serviço. Dos 61 pacientes ativos, 23 foram incluídos no estudo. No ano de 2015, também foi realizada a reavaliação audiológica de 12 dos 27 indivíduos já incluídos no estudo no ano de 2012 ( Figura 1 ).

Figura 1 Fluxograma da admissão dos indivíduos com esclerose sistêmica no estudo  

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde, através do parecer Nº 943.022, e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Dos 50 indivíduos, com idade entre 26 e 76 anos e média de 49,25 anos (DP=15,68), 41 eram do gênero feminino. Quanto à cor da pele autorreferida, dois participantes se declararam brancos, 30 como pardos e 18 como negros. Na Tabela 1 , são apresentadas as características da doença, condições de saúde e estilo de vida dos indivíduos com ES. Dos 50 indivíduos com ES, 35 apresentavam a doença por um período maior que quatro anos e a maioria não apresentou fator de risco que pudesse colaborar para a instalação/progressão da perda auditiva. Ainda em relação às condições de saúde, verificou-se que 25 indivíduos referiram a presença de pelo menos uma comorbidade, além da ES, na data da realização da anamnese, sendo a hipertensão arterial a mais frequente(14). Entretanto, nove indivíduos não apresentavam nenhuma comorbidade ou fator de risco para a perda auditiva.

Tabela 1 Caracterização da doença, presença de fatores de risco para perda auditiva e estilo de vida dos indivíduos com esclerose sistêmica  

Variáveis N (%)
Subtipo da ES
Limitada 22 (44)
Difusa 13 (26)
Sem informação 15 (30)
Exposição a ruído 8 (16)
Exposição a produto químico 9 (18)
Outras comorbidades 25 (50)
Internação com risco de morte 3 (6)
Quimioterapia 1 (2)
Pulsoterapia 12 (24)
Traumatismo Craniano 8 (16)
Medicamentos Ototóxicos 11 (22)
Fumante 20 (40)

Legenda: N = Número de indivíduos; ES = Esclerose Sistêmica. Fonte: Dados da pesquisa

Já na investigação da presença de queixas auditivas autorreferidas, verificou-se que 27 indivíduos apresentavam pelo menos uma queixa, sendo mais frequente o relato de perda auditiva(16). Em relação à investigação pregressa da acuidade auditiva, observou-se que 41 dos 50 indivíduos que participaram do estudo nunca haviam realizado avaliação audiológica básica. Os sintomas auditivos e vestibulares dos indivíduos com ES são apresentados na Tabela 2 . Observa-se que a tontura foi o sintoma mais frequentemente relatado, seguido do zumbido. A tontura foi caracterizada pela maioria como discreta e esporádica e em 62,9% dos participantes apresentava caráter rotatório. Em relação ao zumbido, a maior parte dos indivíduos o caracterizou como tonal, de pitch agudo e de ocorrência esporádica.

Tabela 2 Presença de sintomas auditivos e vestibulares dos indivíduos com esclerose sistêmica  

Variáveis N (%)
Perda auditiva 20 (40)
Dificuldade para entender fala 21 (42)
Otalgia 22 (44)
Otorreia 3 (6)
Autofonia 20 (40)
Zumbido 32 (64)
Tontura 35 (70)
Desconforto a sons intensos 17 (34)

Legenda: N = Número de indivíduos. Fonte: Dados da pesquisa

Os achados da avaliação audiológica revelaram que 27 dos 50 indivíduos apresentaram audição normal e 23 foram diagnosticados com perda auditiva de grau e configurações variáveis ( Tabela 3 ). A maioria das perdas auditivas foi do tipo sensorioneural, com maior comprometimento nas frequências agudas. Em relação aos resultados da pesquisa das medidas de imitância acústica, verificou-se que a maior parte dos indivíduos apresentou curva timpanométrica tipo A e reflexo acústico estapediano contralateral com diferenciais não sugestivos de recrutamento objetivo de Metz (igual ou abaixo de 60dB)(18).

Tabela 3 Caracterização da perda auditiva e achados imitanciométricos nos indivíduos com esclerose sistêmica  

Variável OD OE
N (%) N (%)
Perda Auditiva 22 (95,7) 21 (91,3)
Tipo
Condutiva 1 (4,5) 2 (9,5)
Sensorioneural 20 (90,9) 18 (85,7)
Mista 1 (4,5) 1 (4,8)
Grau
Leve 2 (9,1) 1 (4,8)
Moderado 1 (4,5) 2 (9,5)
Moderadamente Severo - 1 (4,8)
Severo 1 (4,5) -
Não Classificável 18 (81,9) 17 (80,9)
Configuração
Horizontal 1 (4,5) 3 (14,3)
Descendente Leve 1 (4,5) 2 (9,5)
Descendente Acentuada 1 (4,5) -
Curva em U invertido 1 (4,5) -
Entalhe 2 (9,2) 1 (4,8)
Não Classificável 16 (72,8) 15 (71,4)
Curva Timpanométrica
Tipo A 21 (95,4) 19 (90,6)
Tipo Ar 1 (4,6) 1 (4,7)
Tipo Ad - 1 (4,7)
Reflexo acústico estapediano contralateral
Normal 13 (59) 13 (61,9)
Aumentado 1 (4,5) 1 (4,8)
Diminuído 4 (18,2) 4 (19)
Ausente 4 (18,2) 3 (14,3)

Legenda: N = Número de indivíduos; OD = Orelha direita; OE = Orelha esquerda

Ao comparar as informações dos indivíduos que realizaram avaliação audiológica no T0 e reavaliação no T1, não foram observadas mudanças nas características sociodemográficas, características da doença, condições de saúde e de estilo de vida. Em relação aos sintomas auditivos e vestibulares, o número de indivíduos que referiram perda auditiva passou de quatro para seis, comparando os dois momentos de avaliação da audição (T0 e T1). Em relação aos demais sintomas investigados, não foram registradas novas queixas e observou-se manutenção das características dos sintomas anteriormente relatados.

Na análise dos resultados da avaliação auditiva básica, verificou-se que os achados imitanciométricos, tipo e configuração da perda auditiva foram mantidos. Dos 12 indivíduos que participaram do T1 do estudo, observa-se que a maioria apresentava idade até 55 anos(8), sendo que cinco se autorreferiram como pardos, seis como negros e um como branco. Dentre as 24 orelhas reavaliadas no ano de 2015, observou-se que em 16 orelhas houve piora do limiar auditivo por via aérea e por via óssea, em pelo menos uma frequência, e em 3 orelhas, as quais apresentavam limiares auditivos dentro dos padrões de normalidade, em todas as frequências no ano de 2012, foi identificado na reavaliação audiológica algum limiar auditivo superior a 25dBNA, indicando a instalação de uma perda auditiva. Nas demais orelhas (cinco), não foram observadas mudanças nos limiares audiométricos. Considerando a lateralidade da perda auditiva, observa-se que, no T0 (2012), quatro orelhas direitas e quatro esquerdas possuíam perda auditiva. Já, no T1, 12 orelhas foram identificadas com perda auditiva, sendo cinco orelhas direitas e sete orelhas esquerdas ( Quadros 1 e 2 ).

Quadro 1 Limiares tonais aéreos da orelha direita obtidos na avaliação audiológica realizada nos diferentes tempos do estudo (T0 e T1)  

CASO IDADE (anos) TEMPO NO
ESTUDO
FREQUÊNCIAS (Hz)
250 500 1000 2000 3000 40000 6000 8000
1 54 T0 25 25 15 20 10 20 30 40
57 T1 25 25 15 20 15 25 30 40
2 51 T0 10 10 20 5 25 30 45 55
52 T1 15 10 40 15 35 40 50 65
3 26 T0 25 15 15 5 10 5 5 0
28 T1 5 20 5 5 10 0 10 0
4 43 T0 15 15 20 20 20 20 35 30
47 T1 25 20 25 25 10 25 35 30
5 53 T0 10 10 5 10 10 10 15 15
56 T1 10 15 10 10 10 15 10 10
6 41 T0 10 5 5 10 20 25 20 20
43 T1 20 20 20 15 25 30 35 40
7 60 T0 0 0 0 15 20 10 10 5
63 T1 20 15 5 25 25 20 15 15
8 39 T0 20 20 15 15 15 15 15 0
42 T1 25 25 15 15 15 25 25 15
9 21 T0 25 15 25 15 15 15 20 15
24 T1 10 20 20 10 15 10 10 15
10 55 T0 20 20 5 5 5 10 10 5
57 T1 5 10 10 10 5 5 15 15
11 32 T0 30 20 15 15 15 15 15 15
35 T1 35 25 20 20 20 15 25 20
12 52 T0 25 20 15 10 5 10 10 10
54 T1 20 25 20 20 20 20 25 20

Fonte: Dados da pesquisa

Quadro 2 Limiares tonais aéreos da orelha esquerda obtidos na avaliação audiológica realizada nos diferentes tempos do estudo (T0 e T1)  

CASO IDADE (anos) TEMPO NO ESTUDO FREQUÊNCIAS (Hz)
250 500 1000 2000 3000 40000 6000 8000
1 54 T0 55 45 45 50 45 40 35 50
57 T1 55 55 45 50 45 55 55 55
2 51 T0 20 15 20 10 30 45 45 50
52 T1 30 30 25 20 45 45 70 65
3 26 T0 20 10 10 5 5 0 5 10
28 T1 15 10 15 10 10 0 5 5
4 43 T0 15 15 15 20 15 25 30 35
47 T1 20 15 15 20 15 20 30 30
5 53 T0 5 10 10 10 5 10 15 10
56 T1 5 5 5 10 0 10 15 5
6 41 T0 10 5 5 10 15 20 10 0
43 T1 25 20 20 15 15 30 35 25
7 60 T0 5 0 15 15 20 10 10 0
63 T1 15 10 10 25 25 15 10 15
8 39 T0 15 15 15 20 15 15 25 15
42 T1 25 20 15 25 25 25 35 20
9 21 T0 15 15 20 15 5 0 15 5
24 T1 15 20 20 10 10 10 20 15
10 55 T0 20 20 5 0 0 10 5 0
57 T1 5 5 10 10 5 5 15 10
11 32 T0 30 20 10 15 10 15 15 10
35 T1 35 25 15 15 20 20 25 15
12 52 T0 25 20 15 5 10 10 10 15
54 T1 15 10 15 15 10 15 15 15

Fonte: Dados da pesquisa

Na Figura 2 , é apresentada a distribuição da variação dos limiares auditivos por frequência, e por orelha, dos 12 indivíduos com ES que realizaram a reavaliação auditiva no T1. A análise da variação dos limiares obtidos no T0 e no T1 revelou uma piora de até 10dB na maioria das frequências avaliadas, sendo que esta piora foi mais expressiva nas frequências agudas.

Figura 2 Diferença em dB dos limiares auditivos por frequência obtidos na audiometria tonal liminar no Tempo Zero e Tempo Um (N=12)  

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo revelam elevada frequência de sintomas auditivos e vestibulares e de perda auditiva em indivíduos com ES. Este achado é congruente com os resultados de investigações prévias conduzidas com o intuito de avaliar o comprometimento audiovestibular em pacientes com ES(9-14).

Não há consenso na literatura em relação às queixas apresentadas com maior frequência por indivíduos com ES. No estudo atual, a queixa mais comum foi a tontura, seguida do zumbido. Esse achado é consistente com estudos que também investigaram as queixas relacionadas à audição em indivíduos com ES(12). No entanto, outros estudos identificaram a perda auditiva como queixa mais frequente (9,10).

A queixa de tontura foi identificada em 35 dos 50 indivíduos que participaram do presente estudo. Acredita-se que este sintoma esteja relacionado à redução ou interrupção do suprimento sanguíneo ao sistema vestibular, através da artéria do labirinto, devido à vasculopatia, a qual se configura como uma das manifestações clínicas da ES(10,19). A segunda queixa mais frequente foi o zumbido, relatada por 32 indivíduos, sendo a maioria do tipo tonal e com pitch agudo. Estas características do zumbido são compatíveis com a perda auditiva sensorioneural e estão de acordo com o tipo de alteração auditiva identificada nos indivíduos com ES(18,20,21).

A frequência de perda auditiva em indivíduos com ES, no presente estudo, foi de 46% e a idade média foi de 50,56 anos. Estes achados são corroborados pela maioria dos estudos internacionais, os quais revelam elevada frequência de alterações auditivas em indivíduos com ES, na mesma faixa etária(9,10,12). No entanto, verifica-se que a frequência de perda auditiva em indivíduos com ES é superior à esperada para os indivíduos sem a doença, na mesma faixa etária(22). No Brasil, estudos epidemiológicos para investigar a frequência da perda auditiva por faixa etária são restritos. Em estudo realizado com o objetivo de investigar a prevalência de perda auditiva em população de área urbana, foi identificado, através da audiometria tonal liminar, que 84,8% dos participantes apresentavam audição normal e 15,2% foram diagnosticados com perda auditiva. Os autores concluíram que a prevalência de perda auditiva estimada está de acordo com a prevalência internacional(23). Contudo, esta prevalência foi inferior à descrita no estudo conduzido com 2.427 pessoas, em Rondônia, para fornecer os primeiros dados de base populacional sobre surdez e deficiência auditiva no Brasil. Neste estudo foi verificada a perda auditiva em 26,1% da população(24). Diante deste panorama, deve-se considerar que apenas o avanço da idade não explica a elevada frequência da perda auditiva em indivíduos com ES no atual estudo.

A análise da avaliação audiológica dos indivíduos com ES em relação ao tipo da perda auditiva revelou maior frequência da perda auditiva do tipo sensorioneural, bilateral simétrica, com maior comprometimento das frequências agudas, e de grau e configurações variáveis. Esses achados são congruentes com o tipo da perda auditiva identificado em pesquisas internacionais realizadas com o mesmo intuito(9,10). Entretanto, alguns estudos descrevem em menor frequência a perda auditiva unilateral e do tipo mista ou condutiva(9,10,12,25). Apesar do relato deste tipo de comprometimento, não foram localizadas explanações sobre o mecanismo biológico do componente condutivo envolvido na perda auditiva. Acredita-se que a miopatia, a qual causa lesão muscular, bem como as alterações da pele e fibrose do tecido conjuntivo, característicos da ES, estejam relacionadas às alterações mecânicas das articulações que compõem o sistema tímpano ossicular da orelha média e, desta maneira, sejam responsáveis pela modificação deste sistema(9,10,14).

A ES possui características que abrangem o tecido conjuntivo e sistemas vasculares ocasionando fibrose generalizada na pele e vasos, além de causar inflamação crônica que pode ser decorrente de uma lesão generalizada(1-3,26,27). Dessa forma, o tecido sanguíneo é o alvo principal e pode ocasionar uma vasculopatia e, posteriormente, pode ocorrer a deposição de colágeno. Assim, a disfunção endotelial está implicada na patogênese desta doença multissistêmica(9,10,14).

A vasculite pode ser a responsável pelo mau funcionamento das células ciliadas no órgão de Corti, ocasionando a perda auditiva sensorioneural(9). Ademais, a diminuição do fluxo sanguíneo na cóclea pode desempenhar um papel importante na causa da perda auditiva em indivíduos com ES por causa da inflamação dos pequenos vasos do epineuro ou inflamação do vasa vasorum do nervo coclear(11). Este acontecimento é plausível caso haja uma alteração anatômica dos vasos terminais da cóclea associada à diminuição da densidade dos capilares, o que resulta numa redução do fluxo sanguíneo e, portanto, hipóxia tecidual(28). Assim, a hipóxia tecidual causa a morte de células ciliadas da cóclea, a qual é um órgão altamente sensível a alterações sanguíneas e, consequentemente, essa alteração se exprime com a perda auditiva sensorioneural.

A análise da condição de saúde e histórico de exposição revelou que alguns indivíduos no presente estudo apresentaram no curso da ES outras comorbidades e uso de medicamentos ototóxicos que poderiam explicar, desencadear ou intensificar a perda auditiva. A influência de medicamentos ototóxicos na audição de indivíduos com ES já foi reportada em outros estudos (25). Entretanto, os achados de Maciaszczyk et al.(12) não confirmam esta hipótese e sugerem que o curso mais agressivo da doença e da terapia de imunossupressão não afeta a audição, uma vez que, ao investigar um grupo de indivíduos que fizeram uso da ciclofosfamida e metotrexato de sódio, constataram que os efeitos adversos destes medicamentos não apresentavam efeitos ototóxicos. Adicionalmente, foi relatado o caso de um paciente com 65 anos, diagnosticado com perda auditiva sensorioneural bilateral antes do aparecimento da ES. Este indivíduo realizou tratamento medicamentoso (imunoglobulina intravenosa - IVIG e aumento da dosagem de metotrexato) para a ES e, após um mês de tratamento, os sintomas, incluindo a perda auditiva, melhoraram significativamente(11).

A relação entre a ES e o desenvolvimento da perda auditiva ainda é obscura, apesar de a fisiopatologia da doença ser coerente com as hipóteses para a plausibilidade biológica desta alteração. Desse modo, ao considerar aqueles que relataram não ter nenhum fator de risco ou comorbidade para a perda auditiva, investigados no presente estudo, verificou-se que cinco de nove indivíduos apresentavam perda auditiva do tipo sensorioneural. Esse achado evidencia a elevada frequência de perda auditiva nestes indivíduos e corrobora as hipóteses do possível papel da ES no desencadeamento, intensificação ou agravamento da perda auditiva.

A análise das avaliações audiológicas dos 12 indivíduos realizada no T0 e no T1 revelou desencadeamento ou progressão da perda auditiva. Não foram localizados estudos longitudinais que tenham acompanhado a audição de indivíduos com ES. Entretanto, três estudos internacionais seccionais, sendo que dois incluíram um grupo comparação, apontam que não há relação entre o desenvolvimento ou agravamento da perda auditiva com o tempo de doença em indivíduos com ES. 9, 10, 12 Outro ponto importante a ser discutido é a contribuição da idade nestes achados. De acordo com a Organização Mundial de Saúde(29), a idade de 60 anos é considerada como ponto de corte para a velhice. No entanto, apesar de as características das perdas auditivas identificadas serem semelhantes às alterações decorrentes do envelhecimento, observa-se que a maioria dos indivíduos que realizaram reavaliação auditiva em 2015 apresentavam idade até 55 anos. Adicionalmente, as maiores diferenças entre os limiares auditivos tonais aéreos identificadas no T1, em comparação ao T0, foram observadas em indivíduos com idade inferior a 55 anos.

A maioria dos indivíduos que participaram do presente estudo (41) não realizou avaliação auditiva pregressa. Considerando a elevada frequência de sintomas auditivos e vestibulares e que estes podem estar relacionados a problemas auditivos reais, a valorização e a investigação diagnóstica destes deveria ser rotina nos serviços de acompanhamento de indivíduos com ES. Esta conduta é reforçada pelos achados da investigação realizada com o intuito de estimar a validade de três perguntas únicas utilizadas para avaliar a perda auditiva autorreferida em comparação com a audiometria de tons puros em uma população adulta. Os pesquisadores concluem que cada pergunta permite obter respostas com acurácia suficiente para recomendar o uso da perda auditiva autorreferida em estudos epidemiológicos com adultos(30).

O presente estudo apresenta limitações, as quais implicaram as análises em relação ao papel da ES nas alterações auditivas. Dentre elas, pode-se identificar o pequeno número de participantes que foram acompanhados no T1, o qual não permitiu a condução de regressão logística para determinar a contribuição de cada fator investigado para o desencadeamento ou agravamento da perda auditiva. Acredita-se que o recrutamento dos indivíduos que ingressaram no estudo no T0, e também no T1, foi prejudicado pelo fato de a maioria residir no interior ou não comparecer ao serviço de referência com regularidade, devido a dificuldades de locomoção, causada pela progressão da ES. Além destes fatores, deve-se considerar o mau prognóstico da doença, o qual levou a óbito três dos pacientes que participaram do estudo no T0. Por se tratar de uma população com algumas limitações motoras para o deslocamento, acredita-se também que um maior número de participantes seria obtido se a avaliação audiológica fosse realizada no mesmo espaço físico do serviço de acompanhamento médico.

Entretanto, apesar das limitações, os achados deste estudo colaboram para uma melhor compreensão do perfil audiológico dos indivíduos com ES e contribuem com evidências para esclarecer o papel desta doença na perda auditiva. Além disso, estes resultados também podem fornecer subsídios para que os profissionais de saúde que atuam diretamente com indivíduos com ES indiquem a avaliação audiológica de rotina. Desse modo, a perda auditiva pode ser identificada precocemente e, assim, proporcionar uma adequada reabilitação. Adicionalmente, sugere-se a implementação da avaliação audiológica de rotina para os indivíduos com ES, uma vez que os sintomas desta são progressivos e os pacientes tornam-se cada vez mais debilitados devido a outras restrições físicas e, consequentemente, limitados à socialização.

Pesquisas futuras ainda são necessárias para uma melhor compreensão da perda auditiva em indivíduos com ES, considerando que a audição é um meio de integração ao convívio social. Sugere-se que novas investigações sejam conduzidas com a inclusão de um grupo comparação, uma vez que os indivíduos com a doença, no presente estudo, apresentam frequência de perda auditiva maior do que a estimada para indivíduos sem a doença, na mesma faixa etária. Ademais, há outros fatores de risco que podem desencadear a perda auditiva e, desta forma, a realização de estudo com um grupo comparação poderá oferecer subsídios para a investigação da associação entre a ES e a perda auditiva. Adicionalmente, a investigação da relação entre as manifestações clínicas e laboratorias da ES com os achados audiológicos deve ser contemplada em estudos futuros, pois os achados podem dar suporte na indicação da avaliação auditiva de rotina aos profissionais que atuam na área, mesmo antes do aparecimento dos sintomas auditivos e vestibulares.

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos no presente estudo indicam elevada frequência de queixas otoneurológicas e alterações auditivas em indivíduos com ES, com reduzido relato de fatores de risco para perda auditiva, e o desencadeamento e/ou progressão da perda auditiva naqueles que realizaram avaliação audiológica sequencial.

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