versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.3 São Paulo jul./set. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160044
A história do transplante renal (TxR) no Brasil apresenta uma trajetória de sucesso. Na última década, o número de TxR aumentou cerca de 40%, sendo que em 2013 foram realizados 5.433 e, atualmente, somos o segundo país do mundo em número absoluto de transplantes renais.1
Os avanços terapêuticos, especialmente os novos imunossupressores, aumentaram a sobrevida do paciente e do enxerto, melhorando significativamente a qualidade de vida dos transplantados. Segundo o Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), em 4 anos, a sobrevida dos pacientes e do enxerto é superior a 90% para doadores vivos, e em torno de 80 % para doadores falecidos.1 Apesar desses resultados promissores, novos desafios têm surgido, principalmente relacionados a complicações tardias do TxR, dentre eles, a persistência dos distúrbios do metabolismo mineral e ósseo (DMO).2,3
Após o primeiro ano de um TxR bem-sucedido, é esperado que os níveis séricos de cálcio (Ca), fósforo (P), fosfatase alcalina (FA), paratormônio (PTH) calcitriol e fator de crescimento do fibroblasto 23 (FGF23), se normalizem. Entretanto, muitos pacientes persistem com alterações do metabolismo mineral, resultado de uma complexa interposição de fatores como o funcionamento deficiente do enxerto, doença óssea pré-existente ao TxR e o uso de drogas imunossupressoras, especialmente os glicocorticoides, com seus efeitos tóxicos para o tecido ósseo.4-7
Alguns pacientes desenvolvem hipercalcemia, secundária à hipofosfatemia, persistência do hiperparatireoidismo (HPT) e ao uso de corticoide.8,9 A hipofosfatemia, que ocorre em 90% dos pacientes, é resultado da ação fosfatúrica do FGF23 e do PTH.8,10 O hiperparatireoidismo secundário (HPTS), que acomete aproximadamente 45% dos pacientes em diálise, pode persistir em 25%-50% deles, mesmo com o enxerto funcionando adequadamente.11 Após o TxR, os níveis séricos de PTH diminuem rapidamente, apresentando uma queda mais lenta entre o terceiro e sexto mês, se estabilizando ao final do primeiro ano.12
Os principais preditores da persistência do HPT são o tempo de doença renal crônica (DRC), níveis séricos elevados de PTH prévios ao transplante, glândulas paratireoideanas com provável hiperplasia nodular e recuperação incompleta da função renal.13,14 Apesar dos vários estudos que avaliaram a persistência do HPT, ainda não há um consenso sobre os níveis séricos ideais de PTH no período pós-transplante.15,16 No Brasil, temos alguns estudos sobre distúrbios do metabolismo mineral e doença óssea pós-TxR, valendo ressaltar dois deles, que apresentaram resultados de biópsias ósseas antes e 6-12 meses após o TxR, respectivamente.7,17
Esse estudo teve como objetivo avaliar a evolução dos marcadores do metabolismo mineral e a prevalência da persistência do HPT, em uma população de pacientes transplantados renais, após 12 meses do procedimento.
Trata-se de estudo retrospectivo, realizado no Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, entre abril de 2005 a setembro de 2011. Nesse período, 322 pacientes foram submetidos a TxR e, dentre eles, 41 pacientes foram incluídos, conforme os seguintes critérios: pacientes com mais de 18 anos, com taxa de filtração glomerular ≥ 30 ml/min (avaliada pelo método MDRD), com registros clínicos e bioquímicos completos, obtidos no momento e um ano após o transplante. O restante dos pacientes apresentou dados incompletos nos seus prontuários e eles foram excluídos.
Para avaliar a evolução dos parâmetros do metabolismo mineral, todos os pacientes tiveram os níveis séricos de Ca, P e PTH analisados pré e 12 meses após o TxR. Para analisar o impacto do HPTS, anterior ao TxR, na evolução dos parâmetros do metabolismo mineral e na incidência da persistência do HPT, dividimos os pacientes em dois grupos, segundo as diretrizes do KDOQI:18 Grupo I: PTH ≤ 300 pg/mL (n = 21) e Grupo II: PTH > 300 pg/mL (n = 20).
Foi considerada hipofosfatemia: P < 2,7 mg/dL, hipercalcemia: Ca > 10,2 mg/dL e persistência do HPT: PTH ≥ 100 pg/ml, associados ou não à hipercalcemia.16 Outras variáveis, que parecem estar associadas à persistência do quadro de HPT, tais como idade, gênero e tempo de diálise, também foram avaliadas.
Os dados foram analisados quanto à normalidade de sua distribuição. Quando apresentaram distribuição normal, foi realizado o teste t de Student para comparação de grupos, com correção de Welch se necessário. Caso contrário, foi utilizada a comparação por teste de Mann-Whitney. A análise de associação foi feita por teste de Fisher. As variáveis foram correlacionadas utilizando teste de correlação de Pearson (quando normais) ou teste de Spearman (caso contrário). Os resultados foram expressos como média ± desvio padrão ou mediana (mínimo; máximo) e valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. Para as análises foi utilizado o software estatístico GraphPad Prism versão 4.
Dos 41 pacientes avaliados, 18 (44%) eram do sexo feminino, com média de idade de 39 ± 15 anos. A maioria dos pacientes (90%) estava em programa de hemodiálise e 10% em diálise peritoneal, sendo o tempo médio de tratamento dialítico de 33 ± 31 meses. Quanto à doença de base da DRC, 20 pacientes (49%) apresentavam glomerulonefrite crônica, 10 pacientes (25%) nefropatia hipertensiva e 11 pacientes (26%) outras causas.
Os pacientes foram submetidos a diferentes esquemas de imunossupressão: 66% com prednisona, micofenolatomofetil (MMF), micofenolato sódico (MMS) e tacrolimus, 30% com prednisona, MMF/MMS e ciclosporina, 2% com prednisona, rapamicina e ciclosporina, 2% com prednisona, rapamicina e tacrolimus.
Todos os pacientes apresentaram uma redução significativa dos níveis séricos de P, PTH, creatinina e aumento significativo no RFG e Ca sérico (Tabela 1).
Tabela 1 Características clínicas e laboratoriais da população
Total (n = 41) | p | ||
---|---|---|---|
Idade (anos) | 39 ± 15 | -- | |
Gênero (feminino) | 18 (44%) | -- | |
Tempo de diálise (meses) | 33 ± 31 | -- | |
Creatinina (mg/dL) | Pré TxR | 9,9 ± 2,9 | < 0,0001 |
Pós TxR | 1,4 ± 0,3 | ||
Cálcio total (mg/dL) | Pré TxR | 9,5 (6,1 ; 11,5) | 0,02 |
Pós TxR | 9,8 (8,8 ; 11,0) | ||
Fósforo (mg/dL) | Pré TxR | 5,7 ± 1,3 | < 0,0001 |
Pós TxR | 3,6 ± 0,9 | ||
PTH (pg/mL) | Pré TxR | 300 (16 ; 2172) | 0,0009 |
Pós TxR | 85 (38 ; 530) | ||
RFG (mL/min.1,73m2) | Pré TxR | 6,4 ± 2,8 | 0,0001 |
Pós TxR | 58,1 ± 18,7 |
Variáveis expressas em média ± desvio padrão ou mediana (mínimo; máximo).
Após 12 meses, observamos que dois pacientes (5%) permaneceram em hipofosfatemia, 10 pacientes (24%) em hipercalcemia e 20 pacientes (48%) com persistência de HPT.
As variáveis tais como idade, gênero, doença de base, tempo de diálise e esquema imunossupressor não estiveram associadas a presença de HPT. Por outro lado, observou-se correlação significativamente positiva entre o PTH pré e pós-TxR (r = 0,42/p = 0,006) e significativamente negativa entre PTH pré e cálcio pré-TxR (r = 0,45/p = 0,002).
Os níveis séricos de Ca e PTH apresentaram um aumento discreto, e houve uma queda significativa dos níveis séricos de P e o aumento da RFG, conforme Tabela 2. Observamos hipofosfatemia em um paciente, hipercalcemia em sete pacientes, e persistência de HPT em seis pacientes.
Tabela 2 Características clínicas e laboratoriais do grupo I (pth ≤ 300 pg/ml)
Total (n = 21) |
p | ||
---|---|---|---|
Idade (anos) | 33 ± 11 | -- | |
Gênero (feminino) | 9 (42%) | -- | |
Tempo em diálise (meses) | 30 ± 31 | -- | |
Cálcio total (mg/dL) | Pré-TxR | 9,7 ± 0,8 | 0,24 |
Pós-TxR | 9,9 ± 0,6 | ||
Fósforo (mg/dL) | Pré-TxR | 5,5 ± 1,4 | < 0,0001 |
Pós-TxR | 3,6 ± 0,8 | ||
PTH (pg/ml) | Pré-TxR | 76 (16; 300) | 0,40 |
Pós-TxR | 78 (38; 238) | ||
RFG (mL/ min.1,73 m2) | Pré-TxR | 5,4 ± 1,6 | < 0,0001 |
Pós-TxR | 57,9 ± 14,8 |
Variáveis expressas em média ± desvio padrão ou mediana (mínimo; máximo).
Os níveis séricos de Ca e a função renal aumentaram significativamente, enquanto os níveis séricos de P e PTH também apresentaram diminuição significativa, conforme Tabela 3. Observamos hipofosfatemia em dois pacientes, hipercalcemia em três e persistência de HPT em nove pacientes.
Tabela 3 Características clínicas e laboratoriais do grupo II (pth > 300 pg/ml)
Total (n = 20) |
p | ||
---|---|---|---|
Idade (anos) | 45 ± 15 | -- | |
Gênero (feminino) | 11 (55%) | -- | |
Tempo em diálise (meses) | 35 ± 32 | -- | |
Cálcio iônico (mg/dL) | Pré-TxR* | 8,9 ± 1,2 | 0,008 |
Pós-TxR* | 9,7 ± 0,6 | ||
Fósforo (mg/dL) | Pré-TxR* | 5,9 ± 1,2 | < 0,0001 |
Pós-TxR* | 3,6 ± 0,9 | ||
PTH (pg/ml) | Pré-TxR* | 745 (360; 2172) | < 0,0001 |
Pós-TxR* | 96 (40; 530) | ||
RFG (mL/ min.1,73m2) | Pré-TxR* | 7,4 ± 3,4 | < 0,0001 |
Pós-TxR* | 58,2 ± 22,4 |
Variáveis expressas em média ± desvio padrão ou mediana (mínimo; máximo).
Observamos uma maior incidência de pacientes com PTH ≥ 100 pg/mL no Grupo II, embora não tenha apresentado significância estatística (Tabela 4).
Este estudo avaliou a evolução dos parâmetros do metabolismo mineral em pacientes submetidos a TxR, após 12 meses, assim como a incidência do HPT persistente e seus fatores predisponentes. O principal achado deste estudo aponta para uma tendência de persistência do HPT após o TxR, principalmente na população que apresentava níveis séricos de PTH elevados, antes da realização deste procedimento.
O Brasil é um dos países com maior número de TxR em todo mundo, e o estudo da persistência do HPT é relevante, visto que apresenta um impacto negativo na função do enxerto e na evolução clínica dos pacientes.
Espera-se que a maioria das alterações metabólicas se normalize em torno de 12 meses pós-TxR. Ao se avaliar o comportamento do cálcio, fósforo e do PTH, nossos resultados parecem estar de acordo com a literatura.12,13,19 Em relação aos níveis séricos de P, inferimos que houve uma queda imediata após o TxR, entretanto, apenas verificamos esses dados após um ano do TxR, em que quase todos os pacientes apresentavam níveis séricos de P dentro da normalidade. A hipofosfatemia pode ser explicada pela predominância da ação fosfatúrica do FGF23, que ocorre nos primeiros meses pós TxR, e posteriormente, à ação fosfatúrica do PTH, quando o FGF23 e o calcitriol já apresentam níveis séricos diminuídos.10
Em relação à calcemia, os níveis séricos de Ca apresentaram uma elevação discreta após o TxR, sendo que cerca de um quarto dos pacientes persistiram com hipercalcemia, provavelmente, secundária a fatores já comentados anteriormente (hipofosfatemia, persistência do HPT e uso de corticoide). Outros estudos8,20 descrevem uma incidência muito variável da hipercalcemia, entre 5 e 50%.8 A hipercalcemia é uma das consequências mais deletérias da persistência do HPT, podendo levar à perda tardia do enxerto, por nefrocalcinose, além de ter um impacto negativo no sistema hematopoiético, gastrointestinal e cardiovascular, aumentando a mortalidade dos pacientes.20 No presente estudo, os achados de hipercalcemia, mesmo sem elevação dos níveis séricos do PTH, poderiam indicar a persistência do HPTS.
É bem estabelecido o conceito de persistência de HPT ou HPT terciário,21 em que há uma elevação persistente dos níveis séricos de PTH, acompanhado ou não de hipercalcemia. Essa hipersecreção de PTH parece ser decorrente da hiperplasia monoclonal das glândulas paratireoides, que apresentam perdas de receptores de vitamina D, receptores de Ca e alteração do set-point de Ca.19 Na literatura, os estudos divergem sobre o nível sérico adequado de PTH pós TxR. Alguns autores, classificam como persistência de HPT, níveis séricos de PTH > 2,5 vezes o valor superior da referência de normalidade ou PTH > 130- 150 pg/mL.19 Nesse estudo, estabeleceu-se a faixa de PTH = 70-100 pg/ml,16 baseada na função renal do paciente e estágio da DRC (KDOQI), como valores dentro da faixa da normalidade.
Quando avaliamos o comportamento dos níveis de PTH nesta amostra, eles apresentaram uma queda gradativa pós TxR, e, ao final do primeiro ano, 48% dos pacientes permaneceram com persistência de HPT. Outros estudos mostraram uma incidência entre 17 a 28% de pacientes que apresentaram níveis séricos de PTH elevados, em período equivalente.12
A análise dos fatores relacionados à persistência do HPT, em todos os pacientes, não mostrou ser influenciada pela etiologia da doença renal e pelos imunossupressores utilizados. Reconhecidamente, sabe-se que o corticoide é a droga que mais interfere no metabolismo mineral e, neste estudo, tanto as doses quanto o tempo de uso foram semelhantes nos diferentes esquemas de imunossupressão empregados. O tempo de diálise é considerado um importante determinante na persistência de HPT, visto que favorece uma evolução para quadros severos de HPTS, não responsivos a tratamento clínico. No entanto, não pudemos observar a influência deste parâmetro sobre a persistência do HPT.
Esse estudo apresenta algumas limitações: o fato de seu desenho ser retrospectivo, o que dificultou a coleta de dados, resultando em um grande número de prontuários que necessitaram ser excluídos, limitando a análise a 41 pacientes. Apesar disto, a amostra parece ser representativa em relação à população transplantada, no estado do Paraná. Ainda consideramos a ausência de dados como biópsia óssea, exames de imagem das paratireoides, dosagens de fosfatase alcalina e vitamina D, dados importantes para a interpretação dos parâmetros bioquímicos e clínicos analisados.
A doença óssea, até recentemente, era uma complicação pouco valorizada no pós-TxR, apesar do seu impacto na sobrevida do paciente e do enxerto. A persistência do HPT deve ser uma preocupação importante no dia a dia dos nefrologistas, alertando para o controle desta patologia antes do transplante. Dessa maneira, pode-se evitar quadros dramáticos de hipercalcemia no pós-TxR, que muitas vezes são encaminhados para paratireoidectomia (PTx). Este procedimento pode levar à alteração da função do enxerto, mesmo que temporariamente, além de expor o paciente ao risco cirúrgico, condições pouco desejáveis em um TxR recente.22
Nossos achados sugerem que as alterações do metabolismo mineral e o HPT podem persistir após o TxR, mesmo quando bem-sucedido, principalmente naqueles pacientes com níveis de PTH elevados no pré TxR.
Outros estudos são necessários para acrescentar conhecimentos e condutas na doença óssea no pós-TxR.