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Alterações sensoriais em crianças com transtorno do espectro do autismo

Alterações sensoriais em crianças com transtorno do espectro do autismo

Autores:

Annio Posar,
Paola Visconti

ARTIGO ORIGINAL

Jornal de Pediatria

versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782

J. Pediatr. (Rio J.) vol.94 no.4 Porto Alegre jul./ago. 2018

http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2017.08.008

Introdução

O quadro clínico das crianças com transtorno do espectro do autismo (TEA) é caracterizado por déficits de interação social e comunicação, bem como por interesses e atividades repetitivos, de acordo com os critérios do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª Edição (DSM-5).1 As alterações sensoriais são uma característica muito frequente que geralmente não é percebida devido às dificuldades de comunicação desses pacientes. De acordo com os critérios do DSM-5, esse tipo de sintomatologia é constituído por um aumento ou redução da reatividade à entrada sensorial ou por um interesse incomum em aspectos sensoriais do ambiente. Há alguns exemplos citados pelo DSM-5: fascínio visual por luzes ou objetos que rodam, resposta adversa a sons ou texturas específicos, cheiro ou toque excessivos de objetos, aparente indiferença a dor, calor ou frio.1 Quase qualquer canal sensorial pode estar envolvido, no sentido de responsividade reduzida a estímulos ou no sentido de responsividade excessiva a estímulos. Pode haver vários tipos de alterações sensoriais na mesma pessoa durante a vida ou até mesmo ao mesmo tempo. A tabela 1 descreve vários possíveis exemplos de comportamentos relacionados a alterações sensoriais em crianças com TEA. A disfunção sensorial está provavelmente relacionada a uma modulação prejudicada que ocorre no sistema nervoso central, que regula as mensagens neurais com relação a estímulos sensoriais.2 Já na descrição pioneira de Sukhareva de algumas crianças com autismo (1926), os transtornos de reatividade sensorial foram inequivocamente mencionados como percepções do futuro (foresight).3 Mais tarde, a hiporreatividade, bem como a reatividade excessiva a estímulos sensoriais, foi relatada nas descrições clássicas de Kanner (1943)4 e Asperger (1944).5 Nas décadas seguintes, a atenção a essas características tem sido variável, apesar de a experiência clínica com indivíduos com TEA sempre ter sugerido a importância desses aspectos. Em 1980, o DSM-III considerou a falta de responsividade sensorial ou responsividade excessiva como características associadas a autismo infantil,6 ao passo que as duas edições seguintes, DSM-III-R7 e DSM-IV,8 não incluíram alterações sensoriais como critérios de diagnóstico definidos. Por fim, o DSM-5 (2013) incluiu “hiper ou hiporreatividade à entrada sensorial”, bem como “interesses incomuns nos aspectos sensoriais do ambiente”, dentro dos principais critérios do TEA com relação a interesses restritos e comportamentos repetitivos.1

Tabela 1 Exemplos de comportamentos relacionados a alterações sensoriais relatadas em crianças com transtorno do espectro do autismo, agrupadas de acordo com as modalidades sensoriais 

Modalidades sensoriais Exemplos de comportamentos relacionados a alterações sensoriais
Visual Atração por fontes de luz.
Encarar objetos que rodam, como centrífuga de máquina de lavar, rodas e ventiladores de hélice.
Reconhecimento de expressões faciais prejudicado.
Evitação do olhar.
Recusa de alimentos devido à sua cor.
Auditiva Surdez aparente: a criança não atende quando chamada verbalmente.
Intolerância a alguns sons, diferente em cada caso.
Emissão de sons repetitivos.
Somatossensorial Alta tolerância à dor.
Aparente falta de sensibilidade ao calor ou frio.
Autoagressividade.
Não gosta de contato físico, inclusive certos itens de vestuário.
Atração por superfícies ásperas.
Olfativa Cheirar coisas não comestíveis.
Recusa de certos alimentos devido a seu odor.
Paladar, sensibilidade bucal Exploração bucal de objetos.
Seletividade alimentar devido à recusa de certas texturas.
Vestibular Movimento iterativo de balanço.
Equilíbrio inadequado.
Proprioceptiva/cinestésica Andar na ponta dos pés.
Desajeitado.

As alterações sensoriais das crianças com TEA também podem afetar seu comportamento em atividades diárias familiares, inclusive comer, dormir e rotinas de dormir; e fora de casa essas alterações podem criar problemas, por exemplo, ao viajar e participar de eventos na comunidade. Consequentemente, as intervenções do autismo também devem incluir estratégias específicas de manejo de comportamentos sensoriais para melhorar as atividades diárias familiares e a participação em eventos na comunidade.9

Nessa análise narrativa, resumimos as principais características da reatividade sensorial anormal em pacientes com TEA e suas implicações para a interpretação de vários sinais e sintomas do autismo e, portanto, para o tratamento. Consideramos os trabalhos mais relevantes (preferencialmente com relação a crianças) entre aqueles publicados sobre esse assunto de 1° de janeiro de 2007 a 31 de julho de 2017 disponíveis no PubMed (Livraria Nacional de Medicina dos Estados Unidos), inclusive revisões; usamos as seguintes palavras-chave: “autismo”, “reatividade sensorial”, “alterações sensoriais”.

Alterações sensoriais e TEA

A tabela 2 resume os resultados mais importantes desta análise.10-19 Três principais padrões sensoriais foram descritos em pacientes com TEA: hiporreatividade, hiperreatividade e busca sensorial; a eles, alguns autores acrescentaram um quarto padrão: percepção aprimorada.13 Entre os achados da tabela 2, há também a importância de associar um objetivo a uma avaliação subjetiva, conforme confirmado pelo caso de sensibilidade a dor, classicamente considerada reduzida em indivíduos com TEA. Nesse sentido, o estudo de Yasuda et al. fornece achados muito interessantes (tabela 2).17

Tabela 2 Características dos estudos que avaliaram alterações sensoriais em pacientes com transtorno do espectro do autismo (TEA) 

Autores/ano/local Metodologia Principais resultados Observações dos autores
Ben-Sasson et al.
(2009),
Israel e EUA10
Nesta metanálise, os autores examinaram os dados da literatura sobre os sintomas da modulação sensorial em indivíduos com TEA. Eles consideraram os 14 estudos mais consistentes com base nos questionários dos pais feitos até maio de 2007. Os critérios de inclusão dos estudos abrangeram também a presença de um grupo de controle de indivíduos com desenvolvimento típico (DT) ou com um transtorno do desenvolvimento que não TEA. A faixa etária dos participantes foi entre sete meses a 56 anos. Considerando os estudos que relatam essas informações demográficas, 77-100% dos casos foram de etnia caucasiana. A presença/frequência de alterações sensoriais prevaleceu significativa nas crianças com TEA, em comparação com crianças com DT. A maior diferença foi falta de reatividade, seguida de reatividade excessiva e busca de sensações. Os indivíduos com TEA mostraram um aumento nos comportamentos sensoriais em geral, na reatividade excessiva e na busca, até 6-9 anos e, depois disso, redução, ao passo que não houve padrão compatível para falta de reatividade. A gravidade do TEA foi relacionada à gravidade da alteração sensorial. Houve pouca consistência na seleção da amostra e no diagnóstico entre os estudos considerados, juntamente com falta de clareza com relação aos métodos exatos usados.
Leekam et al.
(2007),
Reino Unido11
Os autores fizeram dois estudos sobre as alterações sensoriais no autismo por meio da Entrevista Diagnóstica sobre Transtornos Sociais e de Comunicação.
O Estudo 1 comparou crianças com TEA (33 casos), deficiência no desenvolvimento (19), deficiência de linguagem (15) e DT (15). Os grupos de TEA e não TEA foram comparados para idade e quociente de inteligência (QI).
O Estudo 2 considerou 200 indivíduos com autismo em crianças e adultos, comparou quatro grupos: jovens com baixo QI (35 casos), jovens com alto QI (65), idosos com baixo QI (35) e idosos com alto QI (65).
Estudo 1: os sintomas sensoriais prevaleceram em indivíduos com TEA (94%), em comparação com indivíduos com deficiência no desenvolvimento ou deficiência de linguagem (65%). Além disso, as crianças com TEA apresentaram média de pontuação total significativamente maior e foram mais propensas a apresentar sintomas multimodais (ou seja, envolvimento de múltiplos domínios sensoriais), em comparação com os controles. As crianças com TEA diferiram dos controles clínicos também nos domínios específicos de visão e cheiro/paladar, com diferenças para toque próximo ao nível de significância de 01. Frequência dos sintomas sensoriais não diferiu significativamente entre os subgrupos de autismo de baixo e alto funcionamento.
Estudo 2: na amostra como um todo, 185 casos (92,5%) apresentaram pelo menos um sintoma sensorial. Esse estudo confirmou que os sintomas sensoriais estão presentes na maioria dos pacientes com autismo e são multimodais, persistiram ao longo da idade e nível de QI. Contudo, o número médio de domínios sensoriais afetados prevaleceu significativamente em indivíduos mais novos e com baixo QI. Os domínios proximais de cheiro/gosto e toque que diferenciaram os grupos de TEA e não TEA no Estudo 1 persistiram com a idade ou QI. Alguns sintomas sensoriais podem reduzir ou aumentar com a idade e QI.
As dificuldades sensoriais multimodais nas crianças com autismo podem causar limitações à suas capacidades de integração sensorial/perceptiva.
Boyd et al. (2010), EUA12 Os autores, com o relato dos pais (Questionário de Experiências Sensoriais; Perfil Sensorial) e as médias observacionais (Avaliação de Processamento Sensorial para Seus Filhos; Teste de Defensividade e Discriminação Tátil – Revisado), estudaram a possível associação entre os sintomas sensoriais e os comportamentos restritos, repetitivos em 67 crianças com autismo e 42 crianças com atrasos no desenvolvimento. Uma análise dos fatores de confirmação foi usada para validar empiricamente as seguintes construções sensoriais de interesse: hiperresponsividade, hiporresponsividade e busca sensorial. No dois grupos clínicos, houve associações significativas entre os comportamentos hiperresponsivos e repetitivos, ao passo que, entre a hiporresponsividade ou busca sensorial e comportamentos repetitivos, a única associação significativa foi entre a busca sensorial e os comportamentos ritualísticos/de mesmice. Os mecanismos neurobiológicos compartilhados podem ser a base dos comportamentos hiperresponsivos e repetitivos, com implicações óbvias para a classificação do diagnóstico e intervenção.
Ausderau et al.
(2014), EUA13
Os autores fizeram uma pesquisa on line que envolveu 1.307 crianças com TEA para confirmar empiricamente a estrutura de fatores do Questionário de Experiências Sensoriais respondido pelos pais, versão 3.0 (SEQ-3.0). A estrutura de fatores do SEQ-3.0 inclui quatro padrões de resposta sensorial: hiporresponsividade; hiperresponsividade, interesses sensoriais, repetições e comportamentos de busca e percepção aprimorada (recente no SEQ-3.0). Os resultados da pesquisa confirmaram o modelo de quatro fatores do SEQ-3.0. Além disso, os dados do estudo mostraram que, mesmo ao controlar várias características das crianças (como idade, QI, sexo) e família (como renda), os padrões sensoriais contribuíram para a gravidade do autismo. O SEQ-3.0 mostra uma estrutura de fatores empiricamente validada específica para o TED.
Lane et al. (2014), EUA14 Os autores administraram o Perfil Sensorial Curto (SSP) aos cuidadores de 228 crianças com TED e examinaram se uma classificação em subgrupos significativos pode ser feita com base nas diferenças sensoriais detectadas no momento do diagnóstico do TEA. O SSP é um questionário para os pais, obtido do Perfil Sensorial mencionado, que fornece uma pontuação total da modulação sensorial geral e uma pontuação de cada uma das sete que a compõe (Sensibilidade Tátil, Sensibilidade a Gosto/Cheiro, Sensibilidade de Movimentos, Não Responde/Sensação de Busca, Filtragem Auditiva, Baixa Energia/Sensibilidade Auditiva Visual Fraca). Cada pontuação do SSP é classificada como Desempenho Típico, Diferença Provável ou Diferença Definida. Foram identificados quatro subtipos sensoriais: 1) adaptativo sensorial (função sensorial predominantemente típica); 2) sensível a gasto/cheiro; 3) postura desatenta (problemas graves no processamento postural com preocupações significativas na filtragem auditiva e sensação de subrresponsiva/de busca e 4) diferença sensorial generalizada. Esses quatro subtipos diferem de cada outro na gravidade e no foco das diferenças sensoriais. Com base nas características clínicas de cada subtipo sensorial, os autores hipotetizaram dois mecanismos de deficiência sensorial: hiper-reatividade sensorial e disfunção do processamento multissensorial. Os quatro subtipos sensoriais não foram bem explicados pelas variáveis como sexo, idade, QI não verbal e gravidade do autismo. As diferenças sensoriais podem ajudar a identificar os fenótipos do TEA úteis no reconhecimento das características comportamentais responsivas a intervenções específicas.
Green et al. (2016), Reino Unido15 Os autores, ao usar a Entrevista Diagnóstica de Autismo-Revisada e o SSP (consulte acima), compararam o comportamento sensorial atípico em 116 crianças com TEA e 72 crianças com necessidades educacionais especiais (NEE), porém sem TEA (deficiência intelectual em 39, hiperatividade com déficit de atenção ou transtorno de conduta em 11, deficiência de linguagem em 10, deficiência de audição em 4, deficiência física ou problema médico em 5, anomalias cromossomo em 2 e sem diagnóstico clínico em 1). Foi encontrado comportamento sensorial atípico respectivamente em 92% do grupo de TEA e 67% do grupo de NEE. O escore médio total do SSP, bem como o escore médio de cada domínio do SSP, prevaleceram significativamente em pacientes com NEE em comparação aos pacientes com TEA (no SSP, quanto maior o escore, menor grau da patologia). As hipersensibilidades múltiplas foram muito mais frequentes em pacientes com TEA que em pacientes com NEE, pois havia hipersensibilidade e impacto graves em especial de barulho. Os interesses sensoriais prevaleceram no grupo de TEA em comparação ao grupo de NEE. A maior disfunção sensorial foi associada a maior gravidade do autismo (principalmente comportamentos restritos e repetitivos) e com problemas comportamentais (principalmente sintomas emocionais), porém não com QI. Deve-se saber se o perfil de alterações sensoriais difere entre as doenças do desenvolvimento neurológico, como essas alterações podem afetar diferentemente a vida dos paciente e qual é sua evolução com o passar do tempo.
Tavassoli et al.
(2016), EUA16
Os autores usaram a Avaliação da Escala de Processamento Sensorial (SPS), uma ferramenta de observação administrada por médicos clínicos, e o relato dos pais do SSP para estudar a reatividade sensorial em 35 crianças com TEA (verbal e sem deficiência intelectual) e em 27 crianças com DT. Foram encontrados sintomas de reatividade sensorial em 65% das crianças com TEA de acordo com SPS (DT: 4,0%) e em 81,1% de acordo com o SSP (DT: 15,4%). O uso combinado do SSP com o SPS mostrou que 65% das crianças com TEA apresentaram sintomas de reatividade sensorial definida, ao passo que nenhum deles com DT se encaixou nessa categoria, exclusive as crianças que provavelmente foram erroneamente identificadas de acordo somente com o SSP. Uma combinação dos dados do questionário e de observação pode ser altamente específica na identificação da presença de sintomas de reatividade sensorial.
Yasuda et al. (2016), Japão17 Os autores compararam a sensibilidade à dor objetiva a eletricidade, calor e frio entre 15 pacientes com TEA (adulto ou adolescente) e 15 controles combinados para idade e sexo. Depois, eles compararam a sensibilidade à dor subjetiva, usaram a Escala Visual Analógica, e a qualidade da dor, usaram o Questionário de Dor de McGill. O limite de detecção de dor, bem como a tolerância à dor, não foi afetado em indivíduos com TEA. Os indivíduos com TEA mostraram hipossensibilidade significativa à intensidade da dor subjetiva e à dimensão afetiva da sensibilidade à dor. Sugere-se a presença de um comprometimento das vias cognitivas para processamento da dor no TEA.
Chamak et al.
(2008), França18
Os autores, que usaram uma abordagem antropológica, examinaram 16 autobiografias escritas e cinco entrevistas detalhadas com adultos com autismo, focaram nas experiências sensoriais e nas representações do autismo dessas 21 pessoas (12 homens e nove mulheres). Idade (faixa 22-67 anos), país (EUA, Austrália e seis nações europeias) e histórico dos indivíduos foram heterogêneos. A maior parte apresentou alto funcionamento. Todos os indivíduos afirmaram que os principais sintomas do autismo foram percepções atípicas e processamento de informações sensoriais, bem como regulação emocional anormal. Os achados deste estudo podem melhorar o entendimento dos comportamentos e das necessidades dos indivíduos com autismo.
Elwin et al. (2013), Suécia19 Os autores descreveram as experiências sensoriais relatadas por 15 indivíduos com TEA de alto funcionamento verbal (QI acima de 70), oito mulheres e sete homens, com idade de no mínimo 18 anos. As entrevistas foram semiestruturadas e os dados emergentes foram examinados por análise de conteúdo. Foram identificadas sete características das experiências sensoriais: hiperreatividade, hiporreatividade, carga geral, fortes preferenciais sensoriais, problemas com direcionamento da atenção a estímulos, problemas com estímulos sensoriais/motores e consequências rotineiras das reações sensoriais. Foi encontrado um padrão de hiperreatividade a estímulos como luz, som ou toque, ao passo que houve um padrão de hiperreatividade ou hiporreatividade a outros estímulos, como temperatura e cheiro, para diferentes indivíduos. As reações a dor ou fome foram na maior parte hiporreativas. As experiências sensoriais dos indivíduos com TEA são incomuns em qualidade e frequência e elas devem ser especificamente investigadas, fazem-se perguntas a essas pessoas.

Conforme mostrado na tabela 2, nos últimos anos vários questionários de relato de pais com relação à reatividade sensorial foram usados em indivíduos com TEA, alguns não específicos para autismo (por exemplo, Short Sensory Profile - SSP), outros específicos para autismo (por exemplo, Sensory Experiences Questionnaire, Versão 3.0- SEQ-3.0). Esses questionários (apenas esporadicamente associados a ferramentas de observação)12,16,20 podem fornecer achados valiosos, porém, como têm como base dados provenientes do ponto de vista externo, eles não conseguem descrever a experiência sensorial dos pacientes em primeira pessoa. Seria muito importante entender o que eles realmente percebem, porém, infelizmente, somente alguns deles conseguem descrevê-la, devido ao comprometimento severo frequente da fala e das habilidades cognitivas. Os pacientes com TEA que conseguem descrever as experiências sensoriais podem nos fornecer informações no mínimo parcialmente aplicáveis também a indivíduos que não conseguem descrever essas experiências. Esse aspecto foi abordado nos trabalhos de Chamak et al.18 e Elwin et al.19 (tabela 2).

Há diferentes formas pelas quais as alterações sensoriais podem afetar negativamente a vida de indivíduos com TEA e suas famílias,9-16,18-20 inclusive afetar a comunicação e as atividades sociais; o comportamento adaptativo (por exemplo, “comportamentos problemáticos” em Discussão); variedade de interesses (restritos, repetitivos); rotinas diárias (por exemplo, evitar comportamentos de dificuldade sensorial); e cognição, o último hipoteticamente devido à quantidade reduzida de sinais que os indivíduos com TEA podem usar para entender e interagir com o ambiente, conforme recentemente sugerido por Haigh.21 O comportamento de comer também pode ser afetado pelas alterações sensoriais, leva a uma seletividade alimentar que pode, por sua vez, causar nutrição inadequada,22 bem como o sono, devido principalmente a um mecanismo hiperarousal.23

Alterações sensoriais no TEA: hipóteses interpretativas

Várias hipóteses foram formuladas para explicar as alterações sensoriais em pacientes com TEA, inclusive o “funcionamento perceptual melhorado”, talvez devido ao aumento no funcionamento das regiões do cérebro envolvidas em funções perceptuais básicas,24 e a “hipótese de mundo intenso do autismo”, nas quais a patologia do núcleo do cérebro significa um aumento na reatividade e plasticidade dos circuitos neurais locais que levam a um aumento na percepção, atenção e memória, tornam o mundo aversivamente intenso para a criança com TEA.25 Porém, nos últimos anos, houve um aumento no interesse pelos modelos de interpretação que sugerem prejuízo não somente das modalidades unissensoriais (por exemplo, somente audição), mas também da integração multissensorial provavelmente relacionada a um comprometimento da conectividade cerebral, consistem principalmente de uma baixa conectividade de longo alcance.26 De acordo com esse ponto de vista, as crianças e, em geral, pessoas com TEA têm uma capacidade reduzida de integrar informações sensoriais em diferentes modalidades (auditivas, visuais etc.), o que contribuiria para os principais sintomas do autismo, como comprometimento da comunicação social.11,14,27,28 Os fatores ambientais também podem influenciar esses sintomas, conforme sugerido recentemente por Kirby et al. (EUA), que estudaram os contextos acerca dos comportamentos sensoriais e repetitivos de 32 crianças com TEA por meio da codificação comportamental de gravações de vídeo naturalistas em casa. Eles constataram que os comportamentos hiperresponsivos foram associados a atividades e diárias e estímulos iniciados pela família, ao passo que os comportamentos de busca sensorial foram associados a atividades e estímulos lúdicos iniciados pela criança. Contudo, as conclusões deste estudo intrigante devem ser levadas em consideração com cautela, devido ao tamanho relativamente estreito da amostra considerada.29

Alterações sensoriais no TEA: intervenções

No contexto de intervenções sensoriais são diferenciadas as terapias de integração sensorial (“centradas na criança”) e intervenções sensoriais (“direcionadas aos adultos”). A primeira são intervenções clínicas que usam atividades lúdicas e interações sensoriais aprimoradas para melhorar as respostas adaptativas a experiências sensoriais. Por meio de atividades motoras brutas que ativam os sistemas vestibulares e somatossensoriais, essas intervenções visam a melhorar a capacidade de integrar informações sensoriais, levam a criança a adotar comportamentos mais organizados e adaptativos, inclusive atenção conjunta melhorada, habilidades sociais, planejamento motor e habilidades perceptuais. Nesse contexto, a terapeuta escolhe um “desafio justo” (ou seja, uma atividade que seja somente um pouco acima do que a criança atualmente consegue fazer sem dificuldade) das habilidades emergentes da criança e reforça suas respostas adaptativas ao desafio. Por outro lado, as intervenções sensoriais são feitas em sala de aula e usam estratégias unissensoriais (por exemplo, bolas terapêuticas ou coletes com peso) para influenciar o estado de excitação, na maioria das vezes basicamente com vistas a reduzir um estado de alta excitação que pode ser clinicamente manifestado como comportamentos de inquietação, hiperatividade e autoestimulantes.30

Quais desses dois tipos de intervenção são os mais efetivos? A resposta provém de Case-Smith et al.,30 que fizeram uma análise sistemática das intervenções sensoriais em crianças com TEA e alterações de processamento sensorial (2000-2012), inclusive cinco estudos sobre os efeitos das terapias de integração sensorial e 14 estudos sobre os efeitos das intervenções sensoriais. Com relação às terapias de integração sensorial, dois ensaios clínicos controlados e randomizados mostraram efeitos positivos sobre a Escala de Objetivos Atingidos,31,32 a redução de maneirismos31 e melhoria do autocuidado e da função social,32 ao passo que outros estudos mostraram efeitos positivos sobre a melhoria nos comportamentos relacionados a alterações sensoriais. Pelo contrário, os estudos sobre as intervenções sensoriais mostraram apenas poucos efeitos positivos, sugeriram falta de eficácia.30

Discussão

As experiências sensoriais em indivíduos com TEA são relatadas como angústia/ansiedade, bem como fonte de fascínio/interesse.33 Por outro lado, angústia/ansiedade podem gerar reações com intensa agitação e agressão dirigida a outros ou a si mesmo (veja os chamados “comportamentos problemáticos”). Por outro lado, as fontes de estímulos absorventes podem levar a comportamentos restritivos e repetitivos, dos quais é muito difícil desviar a atenção desses indivíduos. Por um motivo ou outro, o impacto das alterações sensoriais das crianças com TEA sobre suas vidas diárias é considerável e provavelmente subestimado, devido às suas dificuldades de comunicação, então elas sempre devem ser especificamente investigadas.

A seguinte pergunta surge espontaneamente: as alterações sensoriais devem ser consideradas principais características do autismo ou apenas características de comorbidade? Com base nos dados disponíveis atualmente, essa pergunta continua sem resposta. De fato, os sintomas sensoriais são comuns e geralmente invalidam as crianças com TEA, porém não são específicos do autismo, são uma característica, conforme relatamos acima, frequentemente descrita também em indivíduos com deficiência intelectual sem autismo. Contudo, a reatividade sensorial atípica desses indivíduos pode ser a chave para entender muitos de seus comportamentos anormais e, portanto, é um aspecto relevante para ser considerado no manejo diário desses indivíduos em todos os contextos nos quais eles vivem. Por exemplo, de acordo com Leekam et al., a angústia causada por entrada sensoriais específicas pode despertar comportamentos problemáticos em indivíduos com TEA com baixo funcionamento que não conseguem relatar seu desconforto. Entender quais entradas sensoriais específicas causam desconforto em determinado indivíduo é o pré-requisito para reorganizar o ambiente em que ele vive e sua rotina diária para reduzir o máximo possível esse desconforto; nesse ponto de vista, um programa de dessensibilização pode ser útil. Em alguns casos, o uso de salas sensoriais, nas quais os indivíduos são submetidos a experiências sensoriais agradáveis de vários tipos, pode ser muito útil.11

Concluindo, sempre se deve fazer uma avaliação formal da função sensorial na avaliação neurocomportamental de crianças com TEA e ser repetida periodicamente durante o acompanhamento, para atender às necessidades desses indivíduos, prevenir o máximo possível o surgimento de comportamentos problemáticos e, por fim, aliviar as dificuldades de suas famílias. Além disso, devem ser feitas pesquisas adicionais, de acordo com Lane et al.,14 para melhor entender os possíveis caminhos neurobiológicos (genéticos, neurofisiológicos e neuroimagem) das alterações sensoriais em pacientes com TEA.

REFERÊNCIAS

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