versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140010
A função retardada de enxerto (FRE) é uma complicação comum no transplante renal com doador falecido. Sua incidência varia entre 5% e 50% e usualmente é definida como a necessidade de diálise na primeira semana de transplante.1 Possui etiologia multifatorial, resultando da injúria isquêmica que ocorre antes e durante a captação do órgão, sendo agravada pelo processo de reperfusão. A ausência de uniformidade na definição, as diferentes práticas entre os centros e as características dos doadores utilizados justificam uma incidência tão variável.1-3
No Brasil, as taxas de FRE aproximam-se dos 50%-60%, valores bem acima dos encontrados atualmente nos centros europeus e norte-americanos.4-6 A demora na recuperação da função do enxerto resulta em prolongamento dos dias de internação, elevação de custos e maior risco de infecção hospitalar. Ainda mais, a FRE também está associada com maior risco de rejeição aguda, menor filtração glomerular e pior sobrevida do enxerto em longo prazo.7,8
O objetivo deste estudo foi analisar as características do doador e receptor que influenciam a incidência e intensidade da FRE, e seu impacto na função renal 1 ano após o transplante, um marcador da evolução do enxerto em longo prazo.9
Foi realizado um estudo retrospectivo, unicêntrico, observacional, analisando os transplantes renais com doador falecido realizados em 2010 no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. De um total de 120 transplantes, cinco foram excluídos da análise por perdas durante a primeira semana de transplante. A FRE foi definida pela necessidade de diálise na primeira semana de transplante e a duração da FRE como o tempo em dias até a última sessão de diálise antes da alta hospitalar. Usando a mediana da duração da função retardada do enxerto, definimos como prolongada a função retardada do enxerto que teve duração igual ou superior a 12 dias.
A imunossupressão de manutenção consistiu de tacrolimo (Prograft, Astellas Pharmaceuticals, Japão; dose inicial de 0,2 mg/kg/dia, com nível sérico no vale de 10-15 ng/mL nas primeiras semanas e 5-10 ng/mL a seguir), micofenolato sódico (Myfortic, Novartis Pharma, Basiléia, Suíça; dose de 1,440 mg/dia) e corticosteroides. Todos os pacientes receberam uma dose única de 500 mg de metilprednisolona IV no pré-operatório imediato seguida de prednisona 0,5 mg/kg/dia, com doses decrescentes até 5 mg-7,5 mg ao final do 2º mês de transplante.
As medicações imunossupressoras utilizadas como indução foram o antagonista do receptor de IL2, basiliximabe (Simulect Novartis Pharma) na dose de 20 mg nos dias 0 e 4 ou a timoglogulina (Genzyme, Boston, MA) na dose de 1-1,5 mg/kg/dia, ajustada pela contagem de linfócitos CD3 no sangue periférico, até um total de 6-7 mg/kg. Pacientes com alto risco de rejeição (PRA > 30%, retransplantes) ou de FRE (tempo de isquemia fria > 21h) recebiam indução com timoglobulina, com a introdução de inibidor de calcineurina postergada até o dia da última dose de antilinfocitário.
Os dados descritivos foram expressos como médias ± desvios-padrão e medianas (intervalo interquartil ou variação), para variáveis com distribuição paramétrica e não paramétrica, respectivamente. A distribuição normal foi avaliada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. Variáveis categóricas foram analisadas por qui-quadrado. O teste t de Student ou U de Mann-Whitney foram aplicados para comparação entre dois grupos. Comparações entre múltiplos grupos foram feitas pela análise de variância (ANOVA) ou pelo teste de Kruskal-Wallis.
Um modelo de regressão logística multivariada foi elaborado para avaliar os fatores de risco associados de forma independente com o desenvolvimento de FRE prolongada.
Significância estatística foi assumida para resultados de p < 0,05.
Setenta e nove pacientes (68%) apresentaram FRE, com uma duração mediana de 12 dias (variação, 1-61). Destes, 44 (38%) apresentaram FRE prolongada (≥ 12 dias). As características demográficas dos doadores estão detalhadas na Tabela 1. A idade média dos doadores foi de 43 ± 13 anos, 37% eram hipertensos, 4% diabéticos e em 60% deles a causa de óbito foi acidente cerebrovascular. Noventa e três por cento utilizaram drogas vasoativas, 9% apresentaram parada cardiorrespiratória revertida e 19% permaneceram em UTI por mais de 7 dias. O sódio sérico médio foi de 161 ± 16 mL e a diurese diária média de 3.455 ± 2.926 mL. O tempo médio de isquemia fria foi de 23 ± 5 horas. Em todos os casos, a solução de perfusão utilizada foi Euro-Collins, sendo que em 52 (45%) pacientes os órgãos foram perfundidos também com a solução de Belzer. De acordo com os critérios da OPTN (Organ Procurement and Transplantation Network), 23% dos doadores eram considerados de critério expandido.
Tabela 1 Características demográficas dos doadores de rim
Característica | n (%) |
---|---|
Idade (anos) | 43 ± 13 |
Hipertensão arterial | 42 (37) |
Diabetes | 5 (4) |
Causa de óbito | |
Acidente cerebrovascular | 69 (60) |
Trauma cranioencefálico | 39 (33) |
Outras | 7 (6) |
SCr na captação > 1,5 mg/dL | 57 (49) |
Parada cardiorrespiratória revertida | 10 (9) |
Permanência prolongada em UTI (> 7 dias) | 21 (19) |
Uso de drogas vasoativas | 102 (93) |
Sódio sérico (mmol/L) | 161 ± 16 |
Débito urinário diário (mL) | 3455 ± 2926 |
Vasculopatia na biópsia de captaçãoa | 21 (25) |
Os dados estão expressos em forma de n (%) ou média ± desvio-padrão, a menos que especificado de outra forma;
aDados disponíveis de 85 pacientes.
As características demográficas dos receptores de transplante renal estão detalhadas na Tabela 2. Todos os pacientes receberam indução da imunossupressão, 46 (40%) com antagonistas do receptor de IL2 e 69 (60%) com antilinfocitários. Este achado se explica pela conduta médica do serviço na época, de utilizar timoglobulina como indução para todo paciente que fosse transplantado com rim com tempo de isquemia igual ou superior a 21 horas. O esquema inicial de imunossupressão de manutenção constituiu-se de prednisona, micofenolato sódico e tacrolimo em todos os casos. Episódios de rejeição aguda foram diagnosticados em 21 (18%) dos pacientes.
Tabela 2 Características demográficas dos receptores de transplante renal
Característica | n (%) |
---|---|
Idade (anos) | 51 ± 15 |
Tempo em diálise em mesesa(mediana e variação) | 43 (1-269) |
Incompatibilidades HLA | 2,5 ± 1,6 |
PRA > 0% | 30 (26%) |
Os dados estão expressos em forma de n (%) ou média ± desvio-padrão, a menos que especificado de outra forma;
apara os pacientes que estavam em diálise no momento do transplante. Cinco pacientes (4%) foram transplantados preemptivamente
A fim de avaliar possíveis diferenças entre os pacientes que tiveram função retardada do enxerto mais prolongada (tempo de recuperação ≥ 12 dias) e os demais, agrupamos os indivíduos em pacientes sem FRE, com FRE e com FRE prolongada. Os pacientes dos três grupos não diferiram com relação a alguns fatores relacionados às condições dos doadores, como presença de hipertensão ou diabetes, causa de óbito, uso de vasopressores no período da doação, parada cardiorrespiratória revertida e creatinina sérica no momento da doação. O tempo de isquemia fria, esquemas imunossupressores (indução e manutenção) e episódios de rejeição aguda também não foram diferentes entre os três grupos. No entanto, como mostra a Tabela 3, observamos que a idade do doador e do receptor, e o tempo de internação hospitalar foram maiores no grupo de pacientes com FRE prolongada. A presença de alterações vasculares nas biópsias renais dos doadores no momento da captação foi significantemente mais frequente entre os pacientes que tiveram o tempo de função retardada do enxerto prolongada, maior ou igual a 12 dias. Estas alterações vasculares foram avaliadas qualitativamente, e consistiam principalmente de artério e arterioloesclerose hialinas.
Tabela 3 Características basais dos pacientes sem fre, com fre e fre prolongada
Característica | Sem FRE | FRE (< 12 dias) | FRE prolongada | p |
---|---|---|---|---|
n = 41 | n = 35 | n = 44 | ||
Idade do doador (anos) | 38 ± 13 | 44 ± 12 | 46 ± 14 | 0,016 |
Idade do receptor (anos) | 46 ± 15 | 54± 12 | 53 ± 16 | 0,049 |
Tempo em diálise (meses) | 43 ± 41 | 58 ± 46 | 62 ± 51 | 0,44 |
Tempo de isquemia fria (h) | 23 ± 4 | 23 ± 6 | 23 ± 5 | 0,95 |
Tempo de internação (dias), mediana (variação) | 9 (5-45) | 16 (8-77) | 31 (13-77) | < 0,0001 |
Vasculopatia na biópsia de captação | 3 (11) | 5 (19) | 13 (41) | 0,02 |
Os dados estão expressos em forma de n (%) ou média ± desvio-padrão, a menos que especificado de outra forma.
Quando avaliamos as variáveis estatisticamente significantes no modelo de regressão logística multivariada, verificamos que entre os fatores idade do doador e receptor, tempo em diálise, tempo de isquemia fria e alterações vasculares do enxerto, a presença de vasculopatia na biópsia de captação foi o único fator de risco independente para o desenvolvimento de FRE prolongada [OR 3,6 IC 95% (1,2-10,2), p= 0,02].
Os pacientes com FRE prolongada apresentaram uma pior função renal após um ano de transplante em comparação aos pacientes sem FRE (FRE prolongada: SCr 1,7 vs. Sem FRE: 1,3 mg/dL, p = 0,03. Figura 1).
Neste estudo foi observado que a presença de vasculopatia nas biópsias de enxerto renal pré-implantação foi um fator de risco independente para o desenvolvimento de FRE prolongada, aqui definida como a necessidade de diálise por 12 ou mais dias após o transplante. A intensidade da FRE afetou a função renal 1 ano após o transplante, um reconhecido marcador da evolução do enxerto em longo prazo.9
Alguns estudos sugeriram que a FRE não influenciava a sobrevida do enxerto caso não fosse acompanhada de rejeição aguda;2,10 entretanto, estes resultados são controversos, e há dados demonstrando que FRE e rejeição aguda afetam de forma independente a sobrevida do enxerto em curto e longo prazo, e que possuem um efeito aditivo.7,8 Além disso, alguns autores demonstraram que a duração da FRE, como um marcador de sua maior gravidade, afeta negativamente a sobrevida do enxerto.11,12 Giral et al. demonstraram que uma FRE com duração maior do que 6 dias determina menor sobrevida do enxerto, e que o uso de adrenalina, tempo de isquemia fria maior do que 16 horas e a idade do receptor acima de 55 anos foram associadas com FRE prolongada.11,13
Os fatores de risco para o desenvolvimento de FRE englobam aspectos relacionados ao doador, ao processo de morte encefálica e o dano de isquemia e reperfusão, e ao receptor.1,14 As características demográficas dos doadores de múltiplos órgãos está mudando, com maior presença de idade avançada, hipertensão e morte por acidente cerebrovascular. O uso de doadores limítrofes ou de critério expandido é uma tendência mundial frente à grande escassez de órgãos e da comprovada superioridade de transplantes com estes doadores em comparação com a diálise.15,16 Estes aspectos, aliados ao cuidado intensivo prestado ao doador antes e após a morte cerebral, como o uso de drogas vasoativas, ressuscitação cardiopulmonar e estadia prolongada em UTI, contribuem para elevadas taxas de FRE e para pior sobrevida do enxerto.13,17,18 No nosso caso, os doadores apresentavam indícios indiretos de depleção volêmica, como hipernatremia e poliúria, e aproximadamente metade deles apresentava creatinina sérica acima de 1,5 mg/dL no momento da captação. Além disso, em todos os casos foi utilizada a solução de perfusão Euro-Collins para a preservação dos órgãos, o que sabidamente contribui para uma maior incidência de FRE.19
A presença de lesões vasculares nas biópsias de tempo zero também está associada tanto com uma maior incidência de FRE quanto com pior sobrevida do enxerto.20,21 Di Paolo et al. analisaram 100 transplantes renais consecutivos com doador falecido e encontraram maior presença de lesões vasculares em pacientes com FRE. Além disso, a presença de hipertensão no doador e FRE determinaram pior sobrevida do enxerto em 1 ano de seguimento nos casos de órgãos com maior índice de lesões histológicas. Estes resultados são semelhantes aos encontrados no nosso estudo, que mostrou que certas características dos doadores determinam a presença e a intensidade da FRE, com efeitos deletérios na função do enxerto 1 ano após o transplante.
A presença de artério e arterioloesclerose nas biópsias de captação, geralmente relacionada com hipertensão de longa data e idade avançada dos doadores, parece ser um indicador de que determinado órgão é mais susceptível à lesão de isquemia e reperfusão, e que sua capacidade de autoproteção e regeneração frente a este insulto é menor, deixando sequelas irreversíveis. Em modelos experimentais, foi demonstrado que em resposta à isquemia renal são ativados mecanismos de proteção celular, incluindo rápida diminuição da atividade metabólica, além da transcrição de genes cujos produtos são citoprotetores ou ligados à regeneração celular. Em rins provenientes de doadores falecidos, a expressão de genes que codificam a resposta adaptativa do enxerto, como heme oxigenasse 1, VEGF e Bcl2 está diminuída quando comparada aos rins provenientes de doadores vivos.22 Esta expressão diminuída pode representar uma adaptação defeituosa contra o insulto isquêmico, que pode prejudicar a função do enxerto em curto e longo prazo.1
A gravidade da injúria de isquemia e reperfusão, que depende, entre outros aspectos, dos cuidados intensivos prestados ao doador falecido, pode, em órgãos susceptíveis, com lesões adquiridas pela idade e comorbidades, determinar lesões irreversíveis, com prejuízo à função do enxerto até 1 ano após o transplante renal.