versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.14 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082016rc3744
A orbitopatia de Graves (OG) é uma afecção caracterizada por uma combinação de achados orbitários e dos anexos oculares, causada por um processo inflamatório imunomediado, que leva à expansão de músculos extraoculares e da gordura orbitária. Sua fisiopatologia está estritamente relacionada à da doença de Graves.(1) Os achados típicos da OG incluem proptose, retração palpebral, edema periorbitário, quemose e oftalmoplegia restritiva, que podem anteceder, coincidir, ou aparecerem depois dos sinais sistêmicos de doença tireoidiana. No início, o movimento ocular vertical (olhar para cima) está limitado, já que o músculo reto inferior é o músculo extraocular envolvido mais frequentemente na OG.(2)
O diagnóstico de OG é geralmente bem claro, baseado nos sinais clínicos e testes laboratoriais de função tireoidiana. No entanto, algumas doenças orbitárias podem simular os achados clínicos de OG, levando a uma grande confusão diagnóstica, particularmente quando o paciente já teve diagnóstico de alteração da tireoide.(3)
Este relato descreve um paciente com hipotireoidismo autoimune, que depois apresentou proptose unilateral devido ao aumento do músculo reto inferior, observado na ressonância magnética. O paciente teve diagnóstico inicial errôneo e foi tratado por outros médicos como OG. Considerando uma limitação não característica na depressão do olho e a presença de calcificação nos exames de imagem, foi levantado um diagnóstico alternativo. Posteriormente, o paciente teve o diagnóstico de amiloidose primária isolada da órbita.
Paciente masculino, 48 anos, com queixa de edema progressivo, indolor, na pálpebra inferior, proptose à esquerda, diplopia vertical por 6 meses (Figura 1). A propedêutica clínica revelou hipotireoidismo autoimune, sem outros achados significativos. A ressonância magnética demonstrou aumento importante do músculo reto inferior esquerdo, sem acometimento do tendão (Figura 2). O diagnóstico de OG foi considerado com base nesses achados. O hipotireoidismo foi controlado com medicação adequada. Prednisona oral em altas doses foi prescrita por 2 meses, mas sem melhora clínica, e o paciente foi encaminhado para nosso serviço especializado em órbitas.
A acuidade visual estava normal no exame dos dois olhos. Havia uma proptose à esquerda, medindo 4mm, não sem retração palpebral nos olhos. A motilidade extraocular mostrou deficits importantes no olhar para cima (-3 músculo reto superior) e olhar para baixo (-2 músculo reto inferior) (Figura 1). A motilidade extraocular do olho direito estava normal. O diagnóstico de OG foi questionado devido ao deficit de depressão do músculo reto inferior e à ausência de retração palpebral, tendo sido solicitada tomografia computadorizada. O diagnóstico de OG ainda foi levantado pelo radiologista, porém a presença de calcificação no músculo reto inferior – discreta, mas bem documentada (Figura 3) – sugeria um diagnóstico alternativo. Foi então realizada uma biópsia do músculo.
O exame histopatológico dos tecidos da biópsia mostrou material extracelular amorfo, hialino e eosinofílico na coloração com hematoxilina-eosina, e birrefringência verde na coloração vermelho Congo (Figuras 4A e 4B). A imuno-histoquímica mostrou coloração positiva para proteína amiloide A (Figura 4C). Com base nestes achados, definiu-se o diagnóstico histopatológico como depósitos de amiloide. Uma investigação sistêmica abrangente foi completamente negativa, fechando o diagnóstico de amiloidose localizada e primária na órbita. Não foram encontrados outros depósitos amiloides no corpo.
Há uma grande variedade de sintomas e sinais na OG. Esta alteração ocular é geralmente bilateral e constitui a causa mais comum de exoftalmia bilateral, ou mesmo unilateral, em adultos.(4) Apesar da retração palpebral ser o sinal associado mais importante, o diagnóstico de OG pode também se basear em proptose e estrabismo.(2) A doença de Graves manifesta como hipertireoidismo é o diagnóstico de base na maioria (80%) dos indivíduos com OG, porém os pacientes podem apresentar hipotireoidismo autoimune primário ou sem história pregressa ou atual de disfunção tireoidiana.(2)
Apesar do fato de OG ter um vasto espectro de apresentações clínicas, quando as características atípicas no diagnóstico de OG superam os achados mais esperados, o médico deve reconsiderar sua primeira hipótese diagnóstica. Como neste relato, a motilidade ocular atípica, a ausência de retração da pálpebra e a apresentação unilateral devem alertar o médico para fazer mais investigações diagnósticas. Na verdade, quando o músculo reto inferior está envolvido na OG, a motilidade extraocular manifesta-se geralmente por uma disfunção restritiva do músculo. Portanto, os pacientes realmente apresentam limitação de rotação vertical (olhar para cima), como neste caso, mas não apresentam, em geral, deficit de função do músculo reto inferior. Assim, a presença de um deficit significativo na depressão ocular, em nosso caso, foi um achado clínico importante para questionar o diagnóstico de OG (Figura 1, inferior).
Os exames de imagem desempenham um papel importante no diagnóstico diferencial de OG.(5) No presente caso, a tomografia computadorizada mostrou aumento do músculo reto inferior, com lesão calcificada significativa e infiltrado, que ofereceu novas possibilidades diagnósticas. No entanto, a ressonância magnética não foi capaz de detectar as lesões calcificadas e, se fosse o exame único realizado, poderia ter reforçado um diagnóstico clínico errôneo.
Há várias causas subjacentes para aumento dos músculos extraoculares: OG; inflamação nas órbitas, como sarcoidose ou não específica (miosite); infecções, como doença de Lyme, cisticercose ou triquinose; doenças vasculares, como fístulas cavernosas nas carótidas ou malformação arteriovenosa; miopatias; acromegalia; doenças infiltrativas; e neoplasias.(6,7) As lesões orbitárias calcificadas são descritas em tumores metastáticos da órbita, meningioma, teratoma, neurofibroma, hemangioma esclerosante, condrossarcoma e amiloidose.(8)
As características clínicas e de imagens deste caso estreitaram as possibilidades a uma doença neoplásica ou a uma doença de depósito. O comprometimento neoplásico dos músculos extraoculares pode ser causado por infiltração local de tumores adjacentes, incluindo tumores orbitários primários e neoplasias secundárias a sítios periorbitários, ou metástases à distância.(9) Amiloidose é um distúrbio de deposição que pode ser localizado ou sistêmico, primário ou secundário a doenças inflamatórias crônicas. O envolvimento da órbita é mais comum na forma primária de amiloidose.(10) Nos dois tipos da doença, após uma propedêutica sistêmica negativa, é necessária uma biópsia do músculo afetado para estabelecer certos diagnósticos.
Foi relatado um caso raro de amiloidose orbitária localizada em músculo extraocular, com diagnóstico errôneo de orbitopatia de Graves. Os autores enfatizam a importância de um diagnóstico minucioso de algumas orbitopatias de Graves atípicas, incluindo a amiloidose no diagnóstico diferencial, apesar de sua rara ocorrência.