versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3147
O transplante de rim é a terapia substitutiva de escolha para pacientes em estágio final da doença renal, uma vez que proporciona uma melhor qualidade de vida e maior sobrevida para eles, em relação ao tratamento dialítico, além de ser o tratamento mais custo-efetivo.(1,2)
Há, porém, uma enorme discrepância entre o número de pacientes em lista de espera e o número de transplantes realizados. De acordo com dados do United States Renal Data System de 2013, 600 mil pacientes estavam em diálise nos Estados Unidos, sendo que, ao final de 2012, 100 mil pacientes estavam em lista de espera para o transplante renal, e o número de transplantes realizados anualmente é de cerca de 17 mil, sendo somente 11 mil de doadores falecidos.(1)
No Brasil, observa-se o mesmo cenário, ou seja, um crescente aumento de pacientes em tratamento dialítico e uma grande desproporção entre pacientes em lista de espera e transplantes realizados. De acordo com Censo Brasileiro de Diálise de 2011, havia, neste período, mais de 90 mil pacientes em diálise.(3) De acordo com dados de janeiro a setembro 2013 do Registro Brasileiro de Transplantes, ativos em fila de espera e transplantados de rim eram, respectivamente, 19.913 e 2.707 pacientes.(4) Muitos pacientes em lista de espera acabam morrendo antes de serem convocados para o transplante. Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, 5% dos pacientes morrem enquanto aguardam por um transplante renal.(5)
Considerando que essa disparidade entre órgãos ofertados e a demanda por transplantes é um problema mundial, a sociedade transplantadora adotou algumas estratégias para ampliar o pool de doadores. Algumas delas, além de tentarem otimizar a identificação de potenciais doadores pelos serviços de saúde, consistem na utilização de doadores com coração parado (ainda não utilizada no Brasil); na utilização de dois rins do mesmo doador de idade avançada e/ou critérios expandidos. No Brasil os critérios para a utilização de dois rins com critérios expandidos ainda não foram definidos em portaria; e na utilização de doadores com critérios expandidos (DCE).(1,6)
A definição de DCE, segundo a United National Organ Sharing (UNOS), é quando o risco relativo de perda do enxerto é 1,7 vez maior do que o risco associado à perda com o doador padrão.(7) Os DCE correspondem a doadores com idade ≥60 anos ou doadores com idade entre 50 e 59 anos e que apresentam dois ou mais dos seguintes critérios: história de hipertensão arterial sistêmica (HAS), creatinina sérica terminal >1,5mg/dL e acidente vascular cerebral (AVC) como causa de morte do doador.(7) As sobrevidas do enxerto e do paciente com a utilização de DCE foram 8-12% e 15-20% menores aos 3-5 anos, respectivamente, comparadas às de doadores padrão.(8) Alguns estudos recomendam a utilização de DCE para pacientes mais velhos (>65 anos), porque possuem menor expectativa de vida, pois teriam mais anos de vida salvos do que se permanecessem em diálise, enquanto para pacientes mais jovens o benefício seria maior, em termos de sobrevida, em aguardar um órgão de melhor qualidade e ficar mais tempo diálise.(8,9) Cerca de 20% dos doadores nos Estados Unidos são DCE.(10)
A decisão de aceitar um órgão de DCE deve sempre ser compartilhada com o receptor, que deve estar ciente dos resultados relacionados a esse tipo de transplante e decidir entre ficar menos tempo em lista de espera e receber um órgão de DCE, ou ficar mais tempo em lista e aguardar um órgão de melhor qualidade.
Algumas ferramentas são utilizadas para auxiliar o transplantador a avaliar melhor a viabilidade dos órgãos provenientes de DCE, como a biópsia renal pré-implante (realizada na extração), os parâmetros da máquina de perfusão(11) e os escores de risco, nos quais estão incluídas variáveis clínicas e morfológicas do doador relacionadas à qualidade do órgão e ao prognóstico renal.(12,13)
Em relação aos achados histológicos das biópsias pré-implante, aqueles que se associam à pior prognóstico renal são a fibrose intersticial/atrofia tubular, glomeruloesclerose, espessamento intimal dos vasos e hialinose arteriolar. A variável histológica mais utilizada para o descarte do órgão ainda é a presença de glomeruloesclerose em mais de 20% dos glomérulos, porém essa característica não pode ser considerada exclusivamente, uma vez que alguns estudos não confirmaram sua associação com o prognóstico renal.(14–16) Dados mais recentes mostram que as alterações vasculares, principalmente a hialinose arteriolar, têm um efeito mais importante na sobrevida do enxerto do que outras alterações histológicas.(15,17,18) Nos Estados Unidos, 75% dos DCE realizam biópsia pré-implante, e alguns dados mostraram que os achados das biópsias contribuíram para um maior aproveitamento de órgãos, os quais teriam sido descartados, caso tivessem sido selecionados apenas por parâmetros clínicos.(16)
Quanto à máquina de perfusão, que vem sendo utilizada como método de preservação do órgão em vários centros transplantadores, pois além de melhorar a qualidade do órgão e protegê-lo da lesão de isquemia-reperfusão,(19,20) quando comparada à preservação estática em gelo, em pares de rins do mesmo doador (qualquer tipo de doador, padrão ou DCE), receptores que utilizaram a máquina de perfusão tiveram menor risco de função retardada do enxerto (FRE) e melhor sobrevida do enxerto em um ano (94% versus 90%) e em 3 anos (91% versus 87%).(21,22) No caso de DCE especificamente, uma metanálise recente mostrou que o uso da máquina de perfusão esteve associado a menor taxa de FRE e melhor sobrevida do enxerto em 1 ano, em relação à preservação estática em gelo.(23)
A máquina de perfusão, por meio de alguns de seus parâmetros, fluxo intrarrenal e resistência intrarrenal, permite que sejam selecionados órgãos com maior chance de evoluírem com resultados favoráveis. Alguns centros adotam os seguintes critérios para descarte do órgão: fluxo intrarrenal <80mL/min e resistência intrarrenal >0,40mm Hg/mL/min após 6 horas de máquina.(20,24) Do mesmo modo que as biópsias pré-implante, com a utilização da máquina de perfusão e análise de seus parâmetros, mais órgãos foram aproveitados para transplante.(16)
Uma das características dos DCE que pode estar presente é a disfunção renal aguda (DRA), que é considerada uma contraindicação para se aceitar um órgão em muitos centros e importante causa de descarte de órgãos. A elevação da creatinina no doador pode ser consequente à uma doença renal preexistente ou secundária a insultos isquêmicos, nefrotóxicos, imunológicos e/ou inflamatórios, que ocorreram antes da extração do órgão, como aqueles relacionados, por exemplo, a hipotensão/choque, uso de drogas nefrotóxicas, infecção, rabdomiólise e/ou liberação de citocinas relacionada à morte encefálica, entre outros. Esses insultos causam mais frequentemente uma lesão denominada “necrose tubular aguda”, que é uma lesão renal em geral de caráter reversível. Com o transplante, espera-se o mesmo, que fora do ambiente de insultos, esse rim se recupere das lesões que ocorreram no período pré-implante.(1,6)
Embora essa lesão seja em geral de caráter reversível, rins de doadores com DRA são mais suscetíveis à lesão de isquemia (resultantes da isquemia quente, fria e isquemia-reperfusão), o que pode levar a maiores taxas de disfunção primária do enxerto, FRE e rejeição aguda após o transplante.(6) Além disso, alguns trabalhos mostraram associação com menor sobrevida do enxerto, o que representa um dos principais motivos para descarte de órgãos, além dos achados morfológicos crônicos.(1,6,16,25)
Por outro lado, vários outros estudos mostraram resultados satisfatórios com a utilização de doadores com DRA e, que quando avaliados criteriosamente dentro de um contexto clínico, histológico e funcional (parâmetros da máquina), é mais uma oportunidade para se ampliar o número de órgãos.(1,6,19,26–30)
Farney et al. publicaram sua experiência com o uso de 84 doadores falecidos com DRA (avaliada pela creatinina terminal do doador) ao longo de 5 anos. A definição de DRA no doador considerada neste estudo foi creatinina terminal (antes da extração do órgão) duas vezes ou mais o valor da creatinina da admissão ou valores de creatinina sérica terminal >2,0mg/dL. Os valores médios de creatinina do doador na admissão e terminal nesse estudo foram 1,25 e 3,2mg/dL, respectivamente. Os transplantes com doadores com DRA apresentaram sobrevida do paciente e enxerto após 5 anos semelhantes às de transplantes com doadores sem DRA; transplantes com doadores com DRA tiveram mais FRE (40% versus 27%), porém isso não teve impacto na sobrevida do enxerto. A função renal ao longo de 2 anos também não foi diferente em ambos grupos. Com esses resultados, o grupo concluiu que a utilização de doadores falecidos com DRA representou uma estratégia segura de aumento do pool de doadores e que pode ser considerada para pacientes bem selecionados.(1)
Klein et al., em um grupo brasileiro, avaliaram 1.518 transplantados de rim, divididos em quatro grupos − 253 DCE (sendo 116 com DRA e 137 sem DRA) e 1.265 doadores padrão (sendo 369 com DRA e 896 sem DRA), e analisaram os seguintes desfechos: FRE, função renal, sobrevida do enxerto, do paciente e livre de rejeição em 1 ano. A utilização de doadores com DRA levou a maior taxa de FRE tanto no grupo que utilizou DCE (68% versus 58%) como no grupo com doador padrão (69,9% versus 50,6%) e quando se utilizou DCE (com e sem DRA), a função renal em 1 ano foi pior em cerca de 10mL/min nos dois grupos e havia mais alterações crônicas nas biópsias pré-implante, comparadas ao doador padrão. Em 1 ano, a sobrevida do paciente, do enxerto e livre de rejeição não foi estatisticamente diferente nos quatro grupos, sugerindo que a utilização desses doadores esteve relacionada a resultados satisfatórios.(27)
Lin et al. reportaram seus resultados de cerca de 3 anos após a utilização de 25 doadores falecidos, cuja creatinina sérica terminal era >2,0mg/dL, com média de 3,37mg/dL. Esse grupo apoiou-se nos resultados crônicos das biópsias pré-implante para decidir quanto à aceitação ou não de um órgão de doador com DRA. Com essa estratégia, apenas dois rins com creatinina elevada foram descartados, e o grupo reduziu o tempo de espera para o transplante. Do mesmo modo que o estudo anterior, observou-se maior taxa de FRE (80% versus 30%) no grupo que utilizou doadores com creatinina terminal elevada. No entanto, também foram observadas taxas de sobrevida do paciente e do enxerto, assim como de rejeição aguda, comparáveis às do grupo controle.(19)
Deroure et al. mostraram seus resultados de 3 anos com a utilização de 52 doadores falecidos com DRA. Foram obtidos resultados semelhantes aos anteriores: maior taxa de FRE e ótimos resultados de sobrevida do enxerto e paciente. Porém, após 3 meses, observou-se função renal reduzida (clearance de creatinina <50mL/ min), que sofreu influência de variáveis como idade do doador, AVC como causa da morte do doador, FRE com duração maior que 1 semana e rejeição. Após esses resultados, os autores recomendaram evitar a utilização de rins de doadores com DRA com mais de 60 anos e com história de doenças cardiovasculares crônicas (HAS, diabetes etc.).(26)
Zuckerman et al. avaliaram retrospectivamente 17 transplantes de doadores com DRA e compararam a 83 transplantes com doadores sem DRA realizados no mesmo período. DRA foi definida como creatinina terminal (antes da extração do órgão) duas vezes ou mais o valor da creatinina da admissão ou valores de creatinina sérica terminal >2,0mg/dL. A média da creatinina terminal e do clearance de creatinina foi 3,1mg/dL versus 1,3mg/dL e 44mL/min versus 98mL/min, respectivamente. Foi utilizada a máquina de perfusão em 92% e 41% dos casos, respectivamente. Não houve diferença entre os dois grupos em relação aos desfechos analisados: FRE (32% versus 22%), sobrevida do enxerto e paciente em 1 ano, taxa de rejeição aguda, dias de internação e função renal no 6 mês.(24)
Greenstein et al. descreveram a experiência de 3 anos com a utilização de 22 rins de doadores padrão, mas com creatinina terminal elevada (média de creatinina sérica de 3,2mg/dL). A maioria dos rins foi preservada em máquina de perfusão. A incidência de FRE foi de 28% e todas as biópsias revelaram apenas achados compatíveis com necrose tubular aguda. No final de 1 ano após o transplante, tanto a sobrevida do enxerto como a do paciente foram de 100%, e a creatinina sérica média foi de 1,7mg/dL.(28)
Uma revisão dos resultados do UNOS relativos a transplantes, tanto de doadores padrão como de DCE, estratificados em três grupos de acordo os valores da creatinina terminal (≤1,5mg/dL; 1,6 a 2,0mg/dL; e >2,0mg/dL), mostrou que, no grupo de doadores padrão, a taxa de perda do enxerto foi semelhante nos três grupos, porém houve maior descarte de órgãos no grupo com maior valor de creatinina. Nos grupos que utilizaram DCE, tanto a taxa de perda de enxerto como o descarte de órgãos foi maior no grupo com níveis mais elevados de creatinina. Nos dois grupos de doadores, a taxa de FRE foi maior quanto maior o nível de creatinina. O uso da máquina de perfusão fez com que menos órgãos de doadores com creatinina elevada (>2,0 mg/dL) fossem descartados. Esse estudo mostrou que a presença DRA no doador padrão não impactou na sobrevida do enxerto, em contrapartida, em DCE, o risco de perda do enxerto aumentou com o aumento da creatinina.(25)
Lee et al. publicaram recentemente seus resultados retrospectivos relacionados à utilização de doadores com DRA, classificada de acordo com os critérios de Acute Kidney Injury Network Criteria (AKIN). Os desfechos analisados foram FRE, função renal no curto e longo prazo − sendo esse um dos estudos com maior tempo de acompanhamento. Nesse estudo, 28% dos receptores receberam órgãos com DRA. O grupo com DRA apresentou mais FRE (42,1% versus 12,2%) e pior função renal ao longo dos primeiros 6 meses após o transplante. Porém, no médio e no longo prazo, a função renal aos 12 meses e a sobrevida do enxerto aos 5 e 10 anos foram semelhantes nos dois grupos. O grau de DRA, de acordo com a classificação de AKIN, não interferiu nos resultados.(31)
Em 2013, foram documentados os primeiros transplantes de rim com sucesso que utilizaram órgãos de um doador com DRA em diálise. O doador tinha 20 anos, sofreu um acidente automobilístico e evoluiu com oligúria, DRA e necessidade de diálise contínua. A biópsia pré-implante revelou achados compatíveis com necrose tubular aguda, e os dois rins foram implantados em pacientes com 55 e 59 anos, com tempos de isquemia fria de cerca de 12 e 18 horas, respectivamente. Foi optado por um esquema imunossupressor inicial me-nos nefrotóxico, com ciclosporina, o que geralmente se recomenda quando se utilizam órgãos com creatinina elevada. O primeiro paciente evoluiu sem FRE e a última creatinina do acompanhamento foi de 0,95mg/dL; o segundo evoluiu com FRE e dois episódios de rejeição aguda, e a última creatinina foi de 1,38mg/dL.(30) Esse relato de caso demonstra que existe mais uma oportunidade de ampliação do pool de doadores.
Com o objetivo de analisar o impacto da creatinina terminal do doador sobre a FRE, dias de FRE, dias de internação, função renal do receptor, e sobrevida do paciente e do enxerto renal ao final de 1 ano, uma coorte de 150 pacientes transplantados de doadores falecidos de rim entre janeiro de 2008 e dezembro de 2011 foi retrospectivamente analisada. Os pacientes foram categorizados de acordo com o valor da creatinina terminal do doador: um grupo apresentava creatinina terminal ≤1,5mg/dL e outro creatinina >1,5mg/dL. A imunossupressão nesse grupo consistiu em indução com timoglobulina e manutenção composta por tacrolimo, prednisona e micofenolato de sódio. Toda a análise também foi reproduzida considerando quartis da creatinina do doador, e todos os resultados foram semelhantes.
A idade média dos doadores foi de 40,6±14,7 anos. Do total de 150 pacientes da amostra, 90 doadores (60%) apresentavam nível de creatinina sérica ≤1,5mg/dL e 60 (40%) apresentavam níveis de creatinina sérica >1,5mg/dL. A média da creatinina terminal do doador foi de 1,6±1,1mg/dL e a mediana de 1,3mg/dL (mínimo de 0,37 e máximo de 8,8mg/dL). Foram encontrados os resultados apresentados a seguir.
Nessa casuística, 114/150 (76%) pacientes apresentaram FRE. Entre os pacientes que apresentavam creatinina terminal do doador >1,5mg/dL, 81,7% (49/60) apresentaram FRE, enquanto que, no grupo que apresentava creatinina terminal do doador <1,5mg/dL, 72,2% (65/90) dos pacientes apresentaram FRE. Essa diferença não foi estatisticamente significante, com p=0,184 (Figura 1).
A média de dias de FRE foi de 13,8±11,8 (mediana de 12 dias; mínimo de 2; máximo de 87 dias). Considerando apenas os pacientes que apresentaram FRE, não houve diferença na mediana do tempo em FRE quando comparados os grupos com creatinina terminal do doador maior ou menor que 1,5mg/dL, encontrando-se uma mediana de 12 dias (mínimo de 3 e máximo de 87 para creatinina >1,5mg/dL; e mínimo de 2 e máximo de 56 para creatinina <1,5mg/dL) para ambos os grupos, com p=0,612.
A média de dias de internação após o transplante foi de 24,2±16,9 dias (mediana de 20 dias; mínimo de 5 dias; máximo de 107). No grupo com creatinina terminal do doador ≤1,5mg/dL, a mediana de dias de internação foi de 18,5 dias (mínimo de 5 e máximo de 86 dias) e no grupo com creatinina terminal do doador >1,5mg/dL foi de 21 dias (mínimo de 7 e máximo de 107 dias), não sendo encontrada diferença estatística entre os dois grupos, com p=0,191.
A creatinina terminal do doador não se associou com os valores de creatinina do receptor ao longo do primeiro ano (análise feita considerando a creatinina do doador tanto como variável contínua e como categórica), com p<0,05 (Figura 2).
No grupo com creatinina terminal do doador ≤1,5mg/dL, ocorreram 3/90 (3,3%) óbitos, resultando em uma sobrevida do paciente de 96,6% ao final de 1 ano. No grupo com creatinina terminal do doador >1,5mg/dL, ocorreram 2/60 óbitos (3,3%), resultando em uma sobrevida do paciente de 96,6% ao final de um ano. Não houve diferença estatisticamente significante entre os dois grupos em relação à sobrevida do paciente (p=0,970) (Figura 3).
No grupo com creatinina terminal do doador ≤1,5mg/dL, ocorreu 1/90 (1,1%) perda do enxerto, resultando em uma sobrevida do enxerto de 98,9% ao final de um ano. No grupo com creatinina terminal do doador >1,5mg/dL, ocorreram 2/60 (3,3%) perdas do enxerto, resultando em uma sobrevida de 96,6% ao final de um ano. Não houve diferença estatisticamente significante entre os dois grupos em relação à sobrevida do enxerto (p=0,327) (Figura 4).
Nesta coorte do Hospital Israelita Albert Einstein com uma amostra de 150 pacientes, não foram observados prejuízos em relação aos desfechos dos receptores com a utilização de doadores com creatinina terminal >1,5mg/dL. Embora tenha sido uma análise univariada, e não terem sido analisadas outras características do doador (padrão ou DCE) e nem dados da captação e do receptor − que poderiam ter influenciado o resultado, foi possível demonstrar com esses dados que a creatinina terminal do doador >1,5mg/dL não impactou na taxa de FRE, nos dias de FRE, nos dias de internação, na função do enxerto, na sobrevida do enxerto e na sobrevida do paciente. Esses dados sugerem que a creatinina terminal do doador elevada não pode ser um critério único para seleção do doador, pois essa elevação pode ser o resultado de algum evento agudo, isquêmico ou de outra natureza ao longo do processo de captação, de caráter reversível.(6)
Considerando todos os estudos aqui mencionados, a maioria deles mostrou resultados favoráveis no médio prazo quando se utilizaram rins de doadores padrão com creatinina terminal elevada. Embora a disfunção renal aguda no doador esteja associada a maior taxa de função retardada do enxerto, as sobrevidas do enxerto/ paciente foram semelhantes a de doadores padrão sem disfunção renal aguda no médio e longo prazo. Órgãos de doadores com creatinina terminal elevada, sejam padrão ou doadores com critérios expandidos, têm maior chance de serem descartados.(1,6,25,26,31–34)
Recomenda-se que a seleção desses doadores seja bastante rigorosa, ou seja, que sejam selecionados preferencialmente doadores jovens, sem história de hipertensão, diabetes, doença renal preexistente ou que a morte não tenha sido por causa cardiovascular. No doador padrão, a disfunção renal aguda representa, na maioria das vezes, um quadro agudo reversível, enquanto nos doadores com critérios expandidos, a disfunção renal aguda pode representar uma doença crônica do parênquima renal; por isso a importância da biópsia e dos parâmetros da máquina para tomada de decisão, no momento da oferta do órgão.(25)
Na presença de creatinina terminal elevada, a creatinina e o clearance de creatinina da admissão do doador também devem ser investigados, pois são mais importantes do que a creatinina terminal (antes da extração), porque possuem maior relação com a função renal basal desse indivíduo do que a creatinina terminal. A evolução da creatinina deve ser avaliada, pois evidências de melhora da função renal sugerem que o órgão é viável e que essa recuperação vai continuar após o transplante. Algumas vezes, a creatinina da admissão pode estar elevada e dificultar a interpretação da função renal basal − daí a importância de se reunirem outros dados clínicos e histológicos, assim como, quando possível, os parâmetros da máquina de perfusão, como o fluxo intrarrenal e a resistência intrarrenal.(25)
Achados histológicos crônicos (fibrose intersticial, vasculopatia e glomeruloesclerose) no doador, quando acompanhados de valores elevados de creatinina, mesmo em doadores padrão, estão associados a piores desfechos(33) e a parâmetros da máquina de perfusão, principalmente a resistência intrarrenal associa-se ao pior prognóstico, devendo, portanto, serem levados em consideração no momento da seleção de um doador com critérios não ideais.(33)
Embora, a maioria dos estudos tenha demonstrado que há uma maior taxa de função retardada do enxerto com a utilização desses órgãos, os resultados de sobrevida do enxerto e do paciente após o transplante são muito semelhantes aos resultados obtidos da utilização de doadores padrão. Os achados clínicos e morfológicos do doador, a utilização da máquina de perfusão e a análise de seus parâmetros, principalmente a resistência intrarrenal, são importantes ferramentas de apoio para tomada de decisão no momento da oferta de órgãos com disfunção renal.