versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2019 Epub 23-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190016
Historicamente, o rastreamento do câncer do colo uterino baseia-se no exame citológico do esfregaço cervical, também conhecido como exame de Papanicolaou, utilizado há mais de 50 anos como método preventivo para essa doença(1,2). Nos países onde há programas eficientes de rastreamento, a identificação de lesões pré-malignas através desse exame reduz comprovadamente sua incidência e previne o câncer nos estágios mais agressivos(3).
Apesar dos programas de rastreamento existentes, o câncer de colo do útero ainda é a terceira neoplasia mais comum entre as mulheres, seguido por câncer da mama e câncer de pele não melanoma. Cerca de 80% dos casos novos desse câncer ocorrem em países em desenvolvimento(4). No Brasil, em 2015, ocorreu um aumento de 14% na incidência do câncer do colo do útero e de 16% na mortalidade por esse câncer, sendo notificados 5.727 óbitos. Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a estimativa para 2018 foi de 16.370 novos casos da doença(5).
Nesse sentido, a avaliação citopatológica cervical é um importante instrumento diagnóstico na prevenção do câncer do colo do útero, pois através desse exame é possível detectar as lesões pré-neoplásicas antes do surgimento do carcinoma(2,6).
A atrofia cervicovaginal, uma condição que afeta mulheres após a menopausa(7,8), ocorre devido à diminuição dos níveis circulantes de estrogênio - associada ao processo natural de envelhecimento e à transição da menopausa -, que causa rompimento das fibras de colágeno e elastina da vagina. Como resultado, o epitélio torna-se pálido e fino(9). A síndrome clínica associada a essa condição inclui sintomas como ressecamento e perda da elasticidade vaginal, irritação, dispareunia e infecções urinárias recorrentes. Sintomas vasomotores, irritabilidade, diminuição da memória e fadiga são as principais manifestações clínicas e acometem cerca de 60% das mulheres idosas(7,8,10,11). Além disso, o esfregaço cervical frequentemente mostra sinais de menor maturação celular com o aumento da quantidade de células parabasais e a redução das células intermediárias, superficiais e cariopicnose(12).
Considerando a escassez de relatos sobre este tema no meio científico, os objetivos deste estudo foram abordar alguns aspectos referentes ao perfil citopatológico cervical de mulheres com idade superior a 60 anos, a fim de auxiliar os citologistas na redução dos exames falso-positivos em mulheres nessa faixa etária, bem como enfatizar a importância do rastreamento dessas mulheres, especialmente aquelas que apresentam risco para a doença cervical.
Realizou-se um estudo transversal, retrospectivo e observacional, no qual foram selecionados consecutivamente resultados de exames citopatológicos de 500 pacientes com idade superior a 60 anos, em um centro de saúde do estado do Rio Grande do Sul, localizado na região Norte, que atende pacientes provenientes do serviço público e privado.
Os esfregaços cervicais foram coletados rotineiramente, utilizando espátula de Ayre e escova endocervical, sendo fixados em lâmina de vidro e corados pelo método de Papanicolaou(1). Os resultados foram classificados segundo o sistema de Bethesda(13).
Os critérios de inclusão foram pacientes com idade superior a 60 anos, atendidas na rotina para rastreamento citopatológico cervical com esfregaços classificados como satisfatórios. Foram excluídas do estudo pacientes com lâminas insatisfatórias para avaliação segundo os critérios de Bethesda(13).
Os dados clínicos contidos nas fichas das pacientes como local de coleta do material, idade, histórico de lesões e câncer, radioterapia e uso de terapia de reposição hormonal (TRH) foram avaliados.
Esta pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), em Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil, por meio do protocolo 053/PGH/11 e foi conduzida de acordo com a declaração de Helsinki. A análise estatística foi realizada com o uso do software SPSS 18.0 (IBM Company, Chicago, IL, USA). Os níveis de significância foram determinados pelo teste Chiquadrado de Pearson, sendo considerados significativos índices inferiores a p ≤ 0,05.
As pacientes incluídas foram estratificadas em três faixas etárias: 302 mulheres (60,4%) com idade entre 60-70 anos; 179 (35,8%) entre 70 e 80 anos; e 19 (3,8%) com idade superior a 80 anos. A média de idade das pacientes foi de 69,6 ± 7,27 (média ± desvio padrão). Entre os esfregaços analisados, 95,6% (n = 478) apresentaram características de atrofia, com citologia mostrando predomínio de células parabasais. Verificou-se relação estatisticamente significativa entre atrofia e idade das pacientes, com p = 0,045. A JEC esteve representada em 114 (22,8%) pacientes, e 41 (8,2%) faziam uso de TRH no momento da coleta. A presença da JEC diminuiu progressivamente com a idade (p < 0,001): 64% (n = 73) tinham entre 60 e 70 anos; 24,6% (n = 26), entre 70 e 80 anos; e 4,4% (n = 5), mais de 80 anos. A presença de células metaplásicas foi verificada em 17 casos (3,4%).
A flora predominante foi a cocoide, porém verificou-se a presença de outros agentes cujas frequências estão descritas na Tabela 1. Das 22 pacientes não atróficas, a maioria apresentou flora lactobacilar (p < 0,01) e em apenas quatro (18%) a flora era de cocos e bacilos.
Tabela 1 Distribuição da flora microbiológica dos esfregaços citológicos
Microbiologia | n (%) | Pacientes atróficas | Pacientes não atróficas |
---|---|---|---|
Cocos | 236 (47,2%) | 228 (47,7%) | 8 (36,4%) |
Cocos e bacilos | 178 (35,6%) | 174 (36,4%) | 4 (18,2%) |
Flora lactobacilar | 58(11,6%) | 49 (10,3%) | 9 (40,9%) |
Candida sp | 4 (0,8%) | 4 (0,8%) | 0 (0%) |
Vaginose bacteriana (Gardenerella vaginallis)* | 24 (4,8%) | 23 (4,8%) | 1 (4,5%) |
Total | 500 (100%) | 478 (100%) | 22 (100%) |
*flora sugestiva de vaginose bacteriana: presença de clue cells no esfregaço citológico.
Do total de 20 casos alterados (4%) das amostras avaliadas (Figuras 1 e 2), quatro (20%) faziam uso de hormônios: dois casos foram classificados como células atípicas, não podendo excluir lesão intraepitelial escamosa de alto grau [(ASC-H) - 10%] e dois, como células atípicas de significado indeterminado [(ASC-US) - 10%]. Não houve diferença estatisticamente significativa entre os graus de lesão e a idade das pacientes (Tabela 2).
Figura 1 Esfregaço citológico de vaginite atrófica (atrofia com inflamação) de paciente com 71 anos. As células imaturas (parabasais) e os leucócitos polimorfonucleares estão presentes em um fundo de exsudato inflamatório granular que se assemelha a diátese tumoral (Papanicolaou, 400×)
Figura 2 Esfregaço citológico com discariose de paciente de 67 anos Células escamosas discarióticas presentes em um esfregaço atrófico. Presença de leucócitos polimorfonucleares e fundo da lâmina com material granular que se assemelha a diátese tumoral (Papanicolaou, 400×).
Tabela 2 Frequência das lesões pré-malignas encontradas nos esfregaços citológicos
Diagnóstico citopatológico | n (%) | Média de Idade (anos) | Atrofia (sim/não) | JEC representada (sim/não) |
---|---|---|---|---|
Dentro dos limites da normalidade | 480 (96%) | 69,7 | 464/16 | 110/370 |
Lesões pré-malignas | 20 (4%) | 68,5 | 14/6 | 4/16 |
ASC-US | 8 (40%)* | 69 | 6/2 | 1/7 |
ASC-H | 5 (25%)* | 69 | VI | 0/5 |
LSIL | 2 (10%) | 63,5 | 2/0 | 1/1 |
HSIL | 3(15%) | 69,5 | 2/1 | 0/3 |
AIS | 2 (10%) | 71,5 | 0/2 | 2/0 |
ASC-US: células atípicas de significado indeterminado; ASC-H: células atípicas, não podendo excluir lesão intraepitelial escamosa de alto grau; LSIL: lesão intraepitelial escamosa de baixo grau; HSIL: lesão intraepitelial escamosa de alto grau; AIS: adenocarcinoma in situ;
*p < 0,05. Nos casos diagnosticados como ASC-H e ASC-US, as pacientes receberam tratamento hormonal.
Avaliou-se também a realização prévia de radioterapia e histerectomia. Vinte e uma pacientes já haviam sido submetidas ao tratamento radioterápico e destas, somente uma tinha lesão classificada como ASC-US. Foram encontradas 40 pacientes histerectomizadas (0,8%), sendo 32 (6,45%) com histerectomia total e sete (1,4%) com histerectomia parcial; nenhuma delas estava com lesão no momento da coleta.
As variações no estado hormonal que ocorrem com o avanço da idade nas mulheres estão associadas a alterações epiteliais e à flora bacteriana vaginal. A atrofia do epitélio ocorre devido à transição do perfil hormonal, comum após os 60 anos, especialmente naquelas que não fazem uso de reposição hormonal. Em mulheres na pré-menopausa, os estrogênios estimulam a proliferação de células epiteliais vaginais, que produzem altos níveis de glicogênio, o qual é metabolizado pelos lactobacilos, resultando em um aumento no ácido láctico e em outros ácidos orgânicos que mantêm o pH vaginal entre 4,0 a 4,5(8,10,14,15).
Após a menopausa, a atrofia do aparelho urogenital é acompanhada por um declínio na secreção de estrogênio, o que leva à depleção de lactobacilos e ao aumento da colonização por microrganismos patogênicos e infecções do trato urinário(11). Com a redução progressiva dos níveis de estrogênio, a maturação do epitélio escamoso superficial diminui, o epitélio deixa de produzir células epiteliais superficiais e intermediárias, restando apenas uma fina camada de células parabasais e basais(14).
No presente trabalho, a JEC foi encontrada em apenas 22,8% das pacientes estudadas. Isso pode ser justificado pela posição da JEC, que varia de acordo com a anatomia cervical. No período pós-menopausa, por conta do déficit hormonal e do estreitamento do canal endocervical, a coleta do exame Papanicolaou é dificultada e, em muitos casos, as células representativas da JEC podem não ser obtidas. Esses fatos explicam a progressiva diminuição da presença da JEC com o avanço da idade, dado encontrado em nosso estudo. Um trabalho realizado por Nai et al. (2011)(16) demonstrou um elevado percentual de amostras sem representatividade da JEC em pacientes atróficas, o que corrobora os dados obtidos em nossa pesquisa.
Estudos demonstram que os esfregaços com a presença de células endocervicais têm uma frequência significativamente mais alta de anormalidades detectadas quando comparados com aqueles com falta de tais células, pois é na JEC que se originam a maioria das lesões precursoras do câncer cervical. A presença de um componente endocervical garante, portanto, uma amostra adequada dessa região, aumentando a probabilidade da detecção de anormalidades cervicais(17-19). A presença de células endocervicais na amostra é importante principalmente para a detecção de casos de adenocarcinomas endocervicais, que, embora menos frequentes, também podem ocorrer, sobretudo em mulheres com mais de 50 anos(17,20). Nossos resultados confirmam esses estudos, uma vez que os dois casos de adenocarcinoma in situ relatados no presente trabalho poderiam não ser identificados se não estivessem presentes células representativas da JEC.
A flora cocoide, encontrada com maior frequência nas pacientes avaliadas, é característica dessa faixa etária. Apesar de infecções por agentes como Candida spp. e Gardnerella vaginalis se mostrarem presentes, a prevalência dessa afecção varia de acordo com a população estudada e não está relacionada com a faixa etária, visto que estudos anteriormente publicados mostram que não há diferença significativa na prevalência de infecção por esses agentes, quando se faz a comparação com mulheres de outras faixas etárias(21,22).
Esses dados corroboram os encontrados por Cardoso et al. (2000)(23), em que as pacientes nessa faixa etária também apresentaram suscetibilidade a vaginites inespecíficas e à Candida spp. Os autores argumentam que essa suscetibilidade ocorre provavelmente em decorrência do declínio da concentração estrogênica por deficiência ovariana, que culmina com a diminuição da defesa do epitélio pavimentoso estratificado.
O hipoestrogenismo promove atrofia do epitélio vaginal, decréscimo da elasticidade, perda da rugosidade, diminuição do fluxo sanguíneo vaginal e, ocasionalmente, perda da habilidade de lubrificação em resposta à estimulação sexual. Com isso, prurido e irritação locais tornam-se frequentes(24,25). A síndrome clínica, que ocorre em uma a cada três mulheres na menopausa, está associada à atrofia vulvovaginal, cujos sintomas são ressecamento vaginal, irritação, dispareunia e ocorrência de infecções urinárias(11). O uso da TRH pode ser um fator favorável aos sintomas vulvovaginais decorrentes desse hipoestrogenismo, já que as manifestações clínicas são prevalentes e causam desconforto a muitas mulheres(12,14).
Quando associada à vaginite, a identificação das alterações no epitélio atrófico apresenta dificuldades diagnósticas, já que as células parabasais podem degenerar, resultando em um padrão de autólise, lembrando células tumorais. O material granular no fundo da lâmina resultante dessa degeneração pode também causar confusão com a diátese tumoral(8,12).
Embora o papel dos hormônios esteroides na gênese das lesões pré-neoplásicas e neoplásicas do colo do útero não esteja ainda bem definido, o fato de o citologista ter a informação sobre o uso de TRH facilita a análise das alterações morfológicas celulares, reduzindo, dessa forma, os diagnósticos equivocados nos esfregaços cervicovaginais(26).
A incidência de anormalidades citológicas em mulheres menopausadas é de aproximadamente 3%(14). O presente estudo corrobora os dados anteriormente publicados, uma vez que descreve apenas 4% de atipias nas mulheres avaliadas. Essa pequena variação pode ser atribuída às diferenças regionais, ao nível socioeconômico das pacientes, bem como à variação interestudo.
Além disso, há estudos que descrevem uma associação entre a deficiência estrogênica e a atipia escamosa(10,14). No presente trabalho, um pequeno percentual de mulheres fazia uso da TRH no momento do exame. Os casos de atipias em usuárias de TRH necessita ser avaliado em estudos com maior número de amostras e com seguimento posterior ao exame, para verificar se os casos de células escamosas atípicas (ASC) nessas pacientes são achados acidentais ou estão relacionados com os efeitos da TRH.
Nesta pesquisa, verificou-se apenas um caso de citologia alterada em paciente pós-radioterapia. Ademais, o tratamento radioterápico prévio pode induzir mudanças importantes na morfologia celular que geram formas celulares bizarras, além de persistirem por vários anos. Essas alterações morfológicas favorecem a categorização citológica da incerteza(27).
O aumento da expectativa de vida reflete um aumento da população feminina na faixa de mulheres menopausadas. Faz-se necessário o seguimento dessas pacientes, visto que apesar da baixa frequência de lesões, muitas mulheres possuem fatores de risco, especialmente por continuarem sexualmente ativas. O entendimento dos padrões citológicos nessa faixa de idade auxilia no diagnóstico das vaginites atróficas, sobretudo das lesões silenciosas, que podem impactar profundamente a qualidade de vida dessas pacientes.