versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170005
As glomerulopatias são doenças renais com diferentes subtipos histopatológicos. Além de crucial para o diagnóstico, a avaliação microscópica pode oferecer dados prognósticos e proporcionar orientação para o tratamento.1 Após a coleta e análise dos dados, as biópsias podem fornecer informações epidemiológicas tais como etiologia, prevalência e incidência, manifestações clínicas e outras informações relevantes sobre as patologias renais.2 No entanto, as glomerulopatias são incomuns e muitas vezes assintomáticas, descobertas acidentalmente através de testes de rotina. Assim, de forma geral, os registros desses distúrbios são escassos.3
No Brasil, as glomerulopatias encontram-se entre as principais causas de doença renal terminal, representando 11% dos pacientes em diálise. De acordo com o Censo da Diálise de 2014 da Sociedade Brasileira de Nefrologia, a glomerulonefrite crônica é a terceira principal causa de doença renal crônica em pacientes em diálise, após hipertensão e diabetes mellitus.4 Contudo, esse diagnóstico é frequentemente presumido, uma vez que é fundamentado em manifestações clínicas e laboratoriais não acompanhadas de biópsia renal, especialmente quando os pacientes apresentam doença renal terminal em sua primeira consulta.
Os dados mais representativos sobre glomerulopatias no Brasil encontram-se no Registro Paulista de Glomerulopatias e no registro de biópsias do Hospital do Rim e Hipertensão de São Paulo.2,5 O primeiro estudo avaliou pacientes do estado de São Paulo, enquanto o segundo incluiu biópsias realizadas em todo o Brasil encaminhadas para análise em um único centro na região sudeste do país. Há ainda estudos locais que avaliam populações específicas, por cidade ou faixa etária, com números menores de biópsias.6-8 Devido à ampla diversidade étnica e socioeconômica do Brasil, é de grande interesse adquirir conhecimento sobre as peculiaridades regionais das patologias glomerulares.
Localizado no nordeste brasileiro, Pernambuco é o sétimo estado mais populoso do país, com mais de nove milhões de habitantes. A incidência de pobreza é de 52% e o rendimento familiar médio US$ 210.9 Há uma distinção perceptível entre a realidade socioeconômica deste estado e aquela dos países europeus e asiáticos, onde a maior parte dos grandes registros de glomerulopatias estão situados.3,10-13 Contudo, tal realidade é um pouco mais próxima daquela observada em outros países da América Latina.14,15
Este é o primeiro estudo sobre glomerulopatias realizado em Pernambuco. O objetivo deste estudo retrospectivo foi descrever os principais achados clínicos patológicos no momento da biópsia e comparar esses dados com outros disponíveis na literatura. Uma análise comparativa também foi realizada entre glomerulopatias primárias (GP) e secundárias (GS) no tocante a características epidemiológicas e apresentação clínica.
Foram avaliados e reunidos dados de pacientes acompanhados nos ambulatórios de referência em glomerulopatia de dois hospitais públicos de ensino de fevereiro de 1998 a janeiro de 2016, utilizados para a formação do Registro Pernambucano de Glomerulopatias (REPEG). Os dois centros, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE) e o Instituto de Medicina Integral Fernando Figueira (IMIP), estão localizados em Recife, capital de Pernambuco.
Foram reunidos os seguintes dados dos pacientes: nome, idade, sexo, apresentação clínica e laboratorial, indicação de biópsia renal e diagnóstico histopatológico e etiológico. O registro incluiu resultados de microscopia óptica (MO) e imunofluorescência (IF), com ou sem microscopia eletrônica (ME), compatíveis com glomerulopatias. As biópsias renais foram avaliadas por nefropatologistas locais, do sudeste do Brasil e da Carolina do Norte (EUA). Biópsias de rins transplantados e rebiópsias não foram incluídas no estudo.
As indicações para biópsia renal foram classificadas em cinco síndromes clínicas: anomalias urinárias (AU); síndrome nefrótica (SN); síndrome nefrítica (SNef); insuficiência renal aguda (IRA); e doença renal crônica (DRC). AU foram definidas como hematúria e/ou proteinúria não nefrótica, sem outros sinais ou sintomas de doença renal.
Hematúria foi caracterizada pela presença de cinco ou mais hemácias por campo na urinálise, enquanto proteinúria não-nefrótica foi estabelecida com proteinúria < 3,5 g/dia. SN foi definida por proteinúria > 3,5 g/dia. SNef englobou glomerulonefrite rapidamente progressiva e foi definida por hematúria, hipertensão e creatinina aumentada. IRA foi definida como uma rápida deterioração da função renal, com alterações que não se enquadram na definição de SNef. DRC foi estabelecida pela redução persistente, por mais de três meses, da taxa de filtração glomerular < 60 ml/min/m2, sem outras alterações compatíveis com as definições anteriores.
Os achados histopatológicos foram classificados em duas categorias principais: (1) GP (quando os sinais e sintomas eram exclusivamente devidos a doença renal isolada e suas consequências, sem histórico familiar de glomerulopatia); (2) GS (outros casos que não satisfizeram os critérios para glomerulopatia primária).
Para GP, os achados histopatológicos foram classificados nas seguintes subcategorias: (a) glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF); (b) glomerulonefrite membranosa (GM); (c) doença por lesão mínima (DLM); (d) nefropatia por IgA (NIgA); (e) glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP); (f) glomerulonefrite mesangial não IgA (GNMes); (g) glomerulopatia colapsante (GC); (h) outras, incluindo nefropatia por IgM (predomínio de depósitos de IgM ≥ 2+ em mais de 50% da região mesangial de glomérulos não escleróticos), nefropatia por C1q (deposição glomerular de C1q ≥ 2+ na região mesangial, com correspondentes depósitos eletrodensos na ME e ausência de achados clínicos, laboratoriais ou patológicos de lúpus sistêmico eritematoso) e glomerulonefrite crônica avançada. GNMP foi definida nos casos sem etiologia secundária identificada, com a possibilidade de ser mediada por imunocomplexos ou por complemento (C3 ≥ 2+ em comparação aos outros componentes da IF) ou com IF negativa.
As seguintes subcategorias foram descritas para GS: (a) nefrite lúpica (NL); (b) relacionada a paraproteinemia (associada a amiloidose e mieloma múltiplo); (c) associada a doenças infecciosas (glomerulonefrite pós-estreptocócica e outras causas bacterianas, virais ou parasitárias); (d) relacionada a distúrbios metabólicos (nefropatia diabética e secundária a doenças de armazenamento); (e) distúrbios hereditários (síndrome de Alport, doença de membrana basal fina ou outras doenças hereditárias); (f) vasculite (poliangiíte microscópica e granulomatose com poliangiíte, ou vasculite renal isolada); (g) crioglobulinemias (h) outros (incluindo GNMP com etiologia subjacente identificada); (i) casos não classificados (sem diagnóstico definitivo mesmo com biópsia renal).
Tal como em estudos anteriores, pacientes com idade igual ou inferior a 19 anos foram considerados crianças, indivíduos com idade entre 20 e 39 anos foram classificados como adultos jovens, os com entre 40 e 59 anos como adultos e com 60 anos ou mais como idosos.5
Os dados foram armazenados em um banco de dados Microsoft Excel®, posteriormente exportado para o SPSS® 18, no qual a análise propriamente dita foi realizada. A avaliação da influência de fatores pessoais e clínicos na classificação da etiologia foi realizada pelo teste do qui-quadrado para independência, quando a variável era qualitativa. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado para avaliar a normalidade das variáveis quantitativas, através das quais se verificou a não-normalidade. O teste de Mann-Whitney foi utilizado para comparar a distribuição de variáveis quantitativas entre os grupos de etiologia primária e secundária. Valores de p inferiores a 0,05 (por teste bicaudal) foram considerados estatisticamente significativos.
Foram incluídos na análise multivariada os fatores que apresentaram valores de p inferiores a 0,20 na análise univariada. O modelo de regressão de Poisson com variância robusta foi aplicado para avaliar o risco de classificação etiológica secundária. Apenas fatores com valores de p inferiores a 0,05 foram considerados no modelo. Os intervalos de confiança para a razão de prevalência também foram calculados e o teste de Wald foi utilizado para comparar os riscos de classificação secundária da etiologia entre os níveis dos fatores avaliados.
O REPEG contém os dados de 1918 pacientes acompanhados em ambulatórios de doença glomerular no estado de Pernambuco pelos últimos 18 anos. Das 1151 biópsias renais, 481 foram descartadas do estudo por não disporem de dados de MO e/ou IF, ou por conterem apenas tecido medular renal. Das 670 biópsias avaliadas, sete com doenças extra-glomerulares foram excluídas, de modo que apenas as doenças glomerulares foram avaliadas. Exame por ME foi realizado em sete por cento de todos os casos.
Conforme exibido na Tabela 1, houve predominância de biópsias renais em adultos jovens (50%) e mulheres (59%). A principal indicação para a realização do procedimento foi SN, em mais de 50% das amostras analisadas, sem insuficiência renal (68%). Cerca de 37% dos pacientes esperaram por mais de seis meses para serem submetidos a biópsia renal.
Tabela 1 Distribuição de casos segundo idade, sexo, achados laboratoriais iniciais, síndromes clínicas, tempo até a realização da biópsia renal e hipertensão
Nº de casos | Percentual % | |
---|---|---|
Idade | ||
0-19 anos | 112 | 18% |
20-39 anos | 312 | 50% |
40-59 anos | 161 | 25% |
> 60 anos | 45 | 7% |
Desconhecido | 33 | |
Sexo | ||
Masculino | 269 | 41% |
Feminino | 394 | 59% |
Síndrome clínica (motivo para biópsia renal) | ||
AU | 124 | 19% |
SN | 407 | 63% |
SNef | 83 | 13% |
IRA | 11 | 2% |
DRC | 18 | 3% |
Desconhecido | 20 | |
Tempo entre sintomas e biópsia | ||
< 6 meses | 357 | 63% |
6-12 meses | 78 | 14% |
> 12 meses | 135 | 23% |
Desconhecido | 93 | |
Proteinúria | ||
< 1 g/dia | 40 | 7% |
1-3.5g/dia | 182 | 30% |
> 3.5g/dia | 375 | 63% |
Desconhecido | 66 | |
Creatinina | ||
≤ 1.5g/dl | 415 | 68% |
> 1.5g/dl | 194 | 32% |
Desconhecido | 54 | |
Hipertensão | ||
Sim | 294 | 51% |
Não | 280 | 49% |
Desconhecido | 89 |
AU: anomalias urinárias; SN: síndrome nefrótica; SNef: síndrome nefrítica; IRA: insuficiência renal aguda; DRC: doença renal crônica.
A Tabela 2 descreve a frequência dos diferentes achados patológicos glomerulares. As etiologias primárias foram mais frequentes (58%) com predominância de GESF (43%). Outras causas de GP foram GM (15%) e DLM (14%), seguidas por NIgA (9%) e GNMP (9%). NL representou 67% das doenças glomerulares secundárias, com predominância de patologia classe IV (29%), seguida pelas classes IV + V (22%) e V (21%).
Tabela 2 Frequência de diferentes achados patológicos glomerulares
Nº de casos |
% of subgrupo |
% do total |
|
---|---|---|---|
Glomerulopatias primárias | |||
GESF | 164 | 43% | 25% |
GM | 59 | 15% | 9% |
DLM | 52 | 14% | 8% |
NIgA | 36 | 9% | 5% |
GNMP | 34 | 9% | 5% |
GC | 12 | 3% | 2% |
GNMes | 8 | 2% | 1% |
Outras | 17 | 5% | 3% |
TOTAL | 382 | 100% | 58% |
Glomerulopatias secundárias | |||
NL | 189 | 67% | 29% |
Infecciosa | 28 | 10% | 4% |
Vasculite | 20 | 7% | 3% |
Doenças hereditárias | 10 | 4% | 2% |
Metabólica | 9 | 3% | 1% |
Paraproteinemia | 8 | 3% | 1% |
Crioglobulinemia | 5 | 2% | 1% |
Outras | 12 | 4% | 2% |
TOTAL | 281 | 100% | 42% |
GESF: glomeruloesclerose segmentar e focal; GM: glomerulonefrite membranosa; DLM: doença por lesão mínima; NIgA: nefropatia por IgA; GNMP: glomerulonefrite membranoproliferativa; GC: glomerulopatia colapsante; GNMes: glomerulonefrite mesangial não IgA; NL: nefrite lúpica.
As glomerulopatias relacionadas a doenças infecciosas foram a segunda causa mais frequente de GS, sendo a principal causa a glomerulonefrite pós-estreptocócica (50%). Seis de oito pacientes com esquistossomose hepatoesplênica apresentaram biópsias compatíveis com GNMP mediada por imunocomplexos. As seguintes associações com outras doenças infecciosas foram observadas: HIV associado a GNMP mediada por imunocomplexos, amiloidose e GESF; GM relacionada a sífilis e hepatite B; GC associada a infecção por parvovírus.
A vasculite foi responsável por sete por cento das etiologias secundárias (15 pacientes com vasculite renal isolada e cinco com vasculite associada ao ANCA). Outras causas secundárias (4%) identificadas no registro foram: doença por anticorpo antimembrana basal glomerular (2), câncer (1), vasculite induzida por metimazol (1), anemia falciforme (1) e doença de Crohn (1).
A GNMP respondeu por seis por cento de todas as biópsias. Destas, 81% eram mediadas por imunocomplexos, 12% pelo complemento e sete por cento apresentavam IF negativa. As etiologias de dez dos 35 pacientes com GNMP mediada por imunocomplexos foram identificadas: crioglobulinemia (2), HIV (1), leucemia linfoide crônica (LLC) (1) e esquistossomose hepatoesplênica (6). GC representou dois por cento de todas as biópsias. Duas etiologias foram identificadas (parvovírus e anabolizantes) e 12 foram classificadas como idiopáticas.
As três principais indicações para biópsia renal foram avaliadas com base nos achados histopatológicos (Figura 1). Dentre os pacientes submetidos a biópsia por SN, os principais achados histopatológicos foram GESF (33%) e NL (19%). Nos pacientes avaliados apenas após a manifestação de sintomas iniciais de SNef, o diagnóstico principal foi NL (44%), seguido de vasculite (19%) e NIgA (14%). Quando a apresentação inicial da doença renal foi AU, houve predomínio de NL (46%), seguido por GESF (14%) e NIgA (11%).
Figura 1 Correlações clinico-patológicas observadas nas principais doenças glomerulares primárias e secundárias. NS: síndrome nefrótica; SNef: síndrome nefrítica; AU: anormalidades urinárias; GESF: glomeruloesclerose segmentar e focal; NL: nefrite lúpica; NM: nefropatia membranosa; DLM: doença por lesão mínima; GNMP: glomerulonefrite membranoproliferativa; Vasc: vasculite; NIgA: nefropatia IgA; Infecção: infeccioso; Hered: hereditárias.
A Tabela 3 apresenta as avaliações dos perfis laboratoriais epidemiológicos e clínicos dos pacientes por etiologia da doença. Na análise univariada, há uma diferença entre os grupos primário e secundário em relação a sexo, hipertensão, duração dos sintomas, hematúria, proteinúria e creatinina sérica.
Tabela 3 Distribuição de etiologias segundo fa tores dos perfis pessoais, clínicos e laboratoriais dos pacientes avaliados
Fator avaliado | Etiologia | p-valor | |
---|---|---|---|
Primária | Secundária | ||
Idade ± DP (anos) * | 35,0 ± 15,3 | 34,0 ± 14,1 | 0,709 2 |
Sex, N (%) | |||
Male | 198 (74%) | 71 (26%) | < 0,001 1 |
Female | 184 (47%) | 210 (53%) | |
Hypertension, N (%) | |||
Yes | 167 (57%) | 127 (43%) | 0,273 1 |
No | 172 (61%) | 108 (39%) | |
Time with symptoms, N (%) | |||
< 6 months | 198 (55%) | 159 (45%) | 0,023 1 |
6 to 12 months | 56 (73%) | 21 (27%) | |
> 12 months | 83 (61%) | 53 (39%) | |
Hematuria, N (%) | |||
Yes | 190 (51%) | 182 (49%) | < 0,001 1 |
No | 144 (69%) | 64 (31%) | |
Proteinuria (Q1-Q3), (g/24h) # | 5,9 (3,5 - 9,0) | 3,4 (2,0 - 6,0) | < 0,001 2 |
Albumina (Q1-Q3), (g/dl) # | 2,0 (1,5 - 3,0) | 2,8 (2,1 - 3,4) | < 0,001 2 |
Creatinina (Q1-Q3), (mg/dl) # | 1,0 (0,7 - 1,6) | 1,2 (2,0 - 6,0) | 0,005 2 |
1p-valor do teste do qui-quadrado;
2p-valor do teste de Mann-Whitney.
*média ± desvio padrão;
#mediana (Q1-Q3).
Os resultados do modelo multivariado são apresentados na Tabela 4. As mulheres demonstraram maior chance de etiologia secundária, com OR = 1,7 (IC 95% = 1,35 a 2,19), bem como presença de hematúria, OR = 1,3 (IC 95% = 1,07 a 1,67). Cada incremento de 1 g/dia na proteinúria foi relacionado a uma chance reduzida de seis por cento de ser classificado como GS (p < 0,001). Cada incremento de 1g/dl na creatinina aumentou o risco de classificação secundária da etiologia da glomerulopatia em cerca de oito por cento (p = 0,027). A análise da etiologia por faixa etária feita pela aplicação do teste de Pearson revelou que os pacientes mais jovens apresentaram risco significativamente maior de GP (p = 0,001).
Tabela 4 Modelo de poisson para etiologia secundária
Fator avaliado | OR | IC 95% | p-valor * |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Masculino | 1,000 | - | - |
Feminino | 1,722 | 1,353 - 2,191 | < 0,001 |
Hematúria | |||
Sim | 1,337 | 1,070 - 1,670 | 0,011 |
Não | 1,000 | - | - |
Proteinúria | 0,944 | 0,916 - 0,972 | < 0,001 |
Creatinina | 1,079 | 1,009 - 1,153 | 0,027 |
OR: odds ratio;
*p-valor do teste do qui-quadrado de Wald.
A comparação dos motivos da biópsia renal (Figura 2) mostrou predomínio de SN na maioria dos pacientes. No entanto, esta apresentação foi mais comum no grupo GP do que no grupo GS (79% x 41%, p < 0,001). Manifestações de AU e SNef predominaram em pacientes com GS (p < 0,001). Em nossa casuística, IRA e DRC não foram indicações comuns para biópsia renal, e para ambas as apresentações houve predomínio de GS.
O REPEG é o primeiro registro a incluir biópsias de pacientes com doenças glomerulares de dois centros de referência no estado de Pernambuco. Como em outros estudos, o registro demonstra um predomínio de doenças glomerulares primárias, com prevalência variando de 54% a 69%.2,11 Contudo, nossa prevalência de GS (42%) foi mais elevada do que a observada em estudos nacionais anteriores, que variou de 23% a 34%, e a de estudos internacionais, situada em torno de 24%.1,2,5,16
A maior prevalência de GS em relação a outros estudos pode ter resultado da diversidade de classificações dessas glomerulopatias, exemplificada pela inclusão de alterações hereditárias e diabetes mellitus como causas secundárias no presente estudo. Mesquita et al.17) utilizaram definições para GS semelhantes às do nosso estudo, e relataram prevalência de 57%, considerando apenas biópsias renais com doenças glomerulares. Entretanto, diferenças regionais também podem ter influenciado esses resultados. Entre as GS, NL representou 67% das biópsias, como também visto em várias outras amostras.1,2,11,18
Entre as GP, houve predominância de GESF, seguida de GM, DLM, NIgA e GNMP. Vários estudos de registros de biópsias, particularmente na América Latina, relataram predominância de GESF entre 25% e 35%.2,5,7,15,19 Prevalência elevada como a encontrada no REPEG (43%) também foi observada no México, em 47% das biópsias.14 GC representou dois por cento das biópsias incluídas no presente estudo, enquanto em outras amostras os valores variaram de 0,3% a 1,8%.20,21
A indicação mais comum para biópsia foi SN, cujos principais achados foram GESF e NL. Alguns estudos relataram prevalência de GESF e DLM entre as causas de SN.5 Rivera et al.12 também encontraram essa prevalência em crianças menores de 15 anos, embora em adultos, segundo Gesualdo et al.,10 GM tenha sido mais prevalente.
No presente estudo, a prevalência de NL na SN foi mais elevada do que a encontrada em outros estudos, em que a prevalência variou de 5% a 10% de SN.5,12,13 O registro japonês demonstra que entre os casos de SN houve predominância de GP (particularmente DLM, quando NIgA foi excluída), seguida de nefropatia diabética (9%).13 Os resultados discordantes destes estudos epidemiológicos podem ser consequência das indicações individuais de biópsia renal em vigor em cada serviço.
Entre as biópsias realizadas por SNef e AU houve predomínio de NL (44% e 46%, respectivamente), diferentemente dos resultados encontrados por outros autores,5,10 que destacaram NIgA como a principal glomerulopatia relacionada a ambas as apresentações. No estudo de Rivera et al.,12 houve predominância de NIgA entre as causas de AU em todas as faixas etárias. No registro italiano, houve predominância de NIgA em GP com SNef e AU, e patologias mediadas por imunocomplexos entre GS com as mesmas apresentações.10
No REPEG, NIgA foi a terceira principal causa de SNef e AU. A menor proporção de NIgA em Pernambuco pode se dever ao fato de biópsias renais de rotina não serem realizadas em casos de hematúria isolada, ou seja, em indivíduos sem manifestações sistêmicas da doença e sem insuficiência renal ou proteinúria > 500 mg/dia.
A análise comparativa entre os principais achados laboratoriais clínicos dos pacientes com GP e GS revelou que os grupos tinham idade média semelhante. Na subanálise por idade, de acordo com um estudo brasileiro realizado por by Polito et al.,5 houve predomínio de GP em todas as faixas etárias com diferença significativa para pacientes com idade igual ou inferior a 40 anos.
A análise multivariada do presente estudo investigou a associação de fatores laboratoriais clínicos com etiologias primárias ou secundárias, e identificou predomínio de homens no grupo GP e mulheres no grupo GS. O predomínio de mulheres com GS se deve à alta prevalência de glomerulonefrite mediada por imunocomplexos, incluindo NL, patologia preferencialmente observada em mulheres. Polito et al.5 e Gesualdo et al.10 obtiveram resultados semelhantes, também por conta da alta prevalência de NL entre os indivíduos com GS.
Por outro lado, Ferraz et al.7 e Kutlugun et al.22 não encontraram diferenças de sexo entre as etiologias. Entretanto, no último estudo houve alta prevalência de amiloidose AA (43%) como causa secundária, o que pode causado tal diferença nos resultados. Os pacientes com GP incluídos no REPEG apresentaram proteinúria mais elevada e uma relação inversamente proporcional entre aumento de proteinúria e chance de ser diagnosticado com GS.
Um estudo anterior não encontrou diferenças de proteinúria média entre as etiologias.22 Piora da função renal e presença de hematúria também foram relacionadas a etiologia secundária no modelo final deste estudo. De fato, Kutlugun et al.22 demonstraram que disfunção renal (creatinina > 1,5 mg/dl) era significativamente mais relacionada a GS.
Uma vantagem que o presente estudo proporciona é a análise comparativa das manifestações clínicas e laboratoriais das etiologias primária e secundária da glomerulopatia, além da distinção de avaliar GNMP segundo sua nova classificação.23 A classificação atual, fundamentada nos achados da IF, permite uma maior compreensão da fisiopatologia da doença, o que facilita a busca dos mecanismos etiológicos envolvido. Além disso, trata-se do primeiro registro a avaliar GC como uma entidade distinta da GESF.
Como indicado por Barisoni et al.,24 esta seria uma nomenclatura mais apropriada, já que GC apresenta mais proliferação de podócitos do que depleção. No entanto, embora vantajosa, esta característica impede qualquer comparação de nossos dados com os de outros registros de glomerulopatias que ainda não tenham incorporado essas classificações.
Diferentemente de estudos anteriores, o presente estudo não descreveu raça.2,3 Um estudo genético conduzido no estado de Pernambuco demonstrou que a avaliação de raça baseada unicamente na cor da pele pode ser extremamente imprecisa em nossa população.25 As desvantagens do presente estudo incluem, entre outras, o fato de ser esta uma análise retrospectiva e de não haver imagens de ME para algumas das biópsias.
Este é o primeiro registro de glomerulopatias no nordeste brasileiro. Além de prover informações importantes sobre essas condições de acordo com as diferenças regionais, o registro também possibilita uma análise comparativa das principais alterações laboratoriais clínicas dos pacientes afetados. Os dados reunidos desde o estabelecimento do REPEG têm desempenhado um papel de fundamental importância no aprimoramento do entendimento que temos sobre essas patologias em nosso ambiente, possibilitando assim que forneçamos melhor assistência aos pacientes e alimentemos futuros estudos com as informações coletadas.