versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.4 São Paulo abr. 2019 Epub 15-Abr-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190014
Estudos mostram o benefício da terapia de reperfusão rápida no infarto agudo do miocárdio. No entanto, ainda ocorrem atrasos durante o transporte de pacientes para angioplastia primária.
Definir se existe uma diferença no tempo total de isquemia entre pacientes transferidos de outro hospital comparados aos que procuram o serviço espontaneamente.
Estudo de coorte histórico, incluindo pacientes atendidos com infarto entre abril de 2014 e setembro de 2015. Os pacientes foram divididos em pacientes transferidos (grupo A) e por demanda espontânea (grupo B). As características clínicas dos pacientes foram retiradas do banco de dados de infarto e o tempo de transferência foi estimado tendo como base o correio eletrônico de acordo com o horário de contato. O nível de significância adotado foi um p < 0,05%.
A amostra incluiu 621 pacientes, 215 no grupo A e 406 no grupo B. As características populacionais foram semelhantes nos dois grupos. O delta T foi significativamente maior no grupo de pacientes transferidos (385 minutos vs. 307 minutos para o grupo B, p < 0,001) com um atraso decorrente do transporte de 147 minutos. Houve relação significativa da distância de transferência e aumento do tempo de transporte (R = 0,55; p < 0,001). Entretanto, não houve diferença na mortalidade entre os grupos.
Pacientes transferidos de outras cidades para tratamento de infarto tem Delta T de transferência acima do recomendado, com tempo ainda mais longo quanto maior a distância a ser percorrida.
Palavras-chave Infarto do Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST/complicações; Angioplastia Coronária com Balão/métodos; Reperfusão Miocárdica/métodos; Fibrinolíticos; Unidades de Terapia Intensiva
Studies have shown the benefits of rapid reperfusion therapy in acute myocardial infarction. However, there are still delays during transport of patients to primary angioplasty.
To evaluate whether there is a difference in total ischemic time between patients transferred from other hospitals compared to self-referred patients in our institution.
Historical cohort study including patients with acute myocardial infarction treated between April 2014 and September 2015. Patients were divided into transferred patients (group A) and self-referred patients (group B). Clinical characteristics of the patients were obtained from our electronic database and the transfer time was estimated based on the time the e-mail requesting patient's transference was received by the emergency department.
The sample included 621 patients, 215 in group A and 406 in group B. Population characteristics were similar in both groups. Time from symptom onset to arrival at the emergency department was significantly longer in group A (385 minutes vs. 307 minutes for group B, p < 0.001) with a transfer delay of 147 minutes. There was a significant relationship between the travel distance and increased transport time (R = 0.55, p < 0.001). However, no difference in mortality was found between the groups.
In patients transferred from other cities for treatment of infarction, transfer time was longer than that recommended, especially in longer travel distances.
Keywords ST Elevation Myocardial Infarction/complications; Angioplasty, Balloon, Coronary/methods; Myocardial Reperfusion/methods; Fibrinolytic Agents; Intensive Care Units
Para pacientes se apresentando em até 12 horas do Infarto Agudo do Miocárdio com Supra do Segmento ST (IAMCSST), a terapia de reperfusão, com trombolítico ou angioplastia coronária transluminal percutânea (ACTP), deve ser oferecida tão cedo quanto possível.1 Um tempo menor até a abertura do vaso culpado está relacionado com a quantidade de miocárdio salvo e tem repercussão na função ventricular e mortalidade.2,3
A ACTP constitui-se na opção preferencial para a obtenção da reperfusão coronária, se iniciada até 90 minutos após a confirmação do diagnóstico do IAM ou até 120 minutos em caso de necessidade de transferência para um centro capaz de realizar o procedimento.4,5 No entanto, alguns fatores interferem para o aumento destes tempos: a) o não reconhecimento por parte dos pacientes dos sinais e sintomas relacionados ao IAM; b) o desconhecimento dos benefícios da rápida terapia de reperfusão; c) a falta de estrutura dos serviços médicos de saúde para a identificação precoce do paciente com IAMCSST; d) o atraso na definição da terapia de reperfusão mais apropriada e na transferência do paciente.6
Por exemplo, em hospitais de menor complexidade, a ACTP não é um procedimento disponível. Com isso, nestes hospitais, há a necessidade de gerar um atraso no tratamento do IAM transferindo o paciente para uma instituição de maior complexidade ou uso de terapia trombolítica.
Um sistema de atendimento de saúde integrado que atende pacientes com IAMCSST já existe em diversos países.7 Estratégias que tem como objetivo agilizar e reduzir o tempo para o diagnóstico e tratamento do IAMCSST são necessárias. No entanto, são escassos os dados sobre o tempo de transferência entre as instituições de saúde no Brasil. O presente estudo visa definir se existe uma diferença no tempo total de isquemia quando considerado o tempo recomendado pelas diretrizes,8-10 entre pacientes transferidos de outro hospital comparados aos que procuram o serviço espontaneamente.
Estudo de coorte histórica.
O procedimento normal de aceitar um paciente para transferência e tratamento de IAMCSST envolve o recebimento de um eletrocardiograma (ECG) comprovando o diagnóstico - antigamente por Fax e nos dias atuais por correio eletrônico. Tal exigência se justifica por evitar onerar o sistema de saúde com diagnósticos incorretos e encaminhamentos de urgência desnecessários.
Os pacientes com diagnóstico de IAMCSST do banco de dados de infarto do Instituto de Cardiologia - Fundação Universitária de Cardiologia (IC-FUC) foram avaliados e divididos em 2 grupos: Grupo A - Pacientes cujo nome e ECG constavam no correio eletrônico da emergência, comprovando o horário aproximado de contato e o local de origem e Grupo B - demanda espontânea (todos os outros).
O tempo de transferência foi calculado subtraindo a hora e dia da chegada do e-mail com o ECG anexo da hora e dia da abertura da ficha no setor de emergência, em minutos (min).
O estudo foi cadastrado na unidade de pesquisa do IC-FUC e aprovado para realização pelo comitê de ética em pesquisa de nossa instituição.
As variáveis contínuas foram expressas em média ± desvio padrão ou mediana e intervalo interquartil quando apropriado. As variáveis categóricas foram apresentadas como número absoluto e percentual com comparações feitas com χ2 e teste-Z. Variáveis contínuas foram analisadas com teste t de Student para amostras independentes ou Wilcoxon-Mann-Whitney conforme apropriado. O teste de normalidade utilizado foi o de D'Agostino-Pearson. Correlação entre variáveis contínuas foi realizada com utilizando o coeficiente de Pearson. O banco de dados foi elaborado no programa Microsoft Office Excel 2010 para Windows® e posteriormente transferido para o programa IBM Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 19.0.0. O pacote estatístico SPSS, versão 18.0 foi utilizado para as análises. Um valor de p bicaudal menor que 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.
Foram revisados os dados do correio eletrônico do serviço de emergência do IC-FUC de abril de 2014 até setembro de 2015. Todos os ECGs com demonstração de supra desnivelamento do segmento ST e as variáveis de identificação dos pacientes foram cruzadas com as informações do banco de dados de IAM do hospital.
No período do estudo, foram excluídas 2532 informações do correio eletrônico, correspondendo a: 68 mensagens sem possibilidade de identificação do paciente; 869 mensagens com ECGs sem supra desnivelamento do segmento ST; 381 mensagens duplicadas; 23 avisos do sistema; 491 laudos de tomografias; 408 mensagens internas do serviço e 292 ECGs com supra desnivelamento do segmento ST, mas que não vieram transferidos ou não constavam no banco de dados.
A amostra final analisada foi de 621 pacientes, sendo que 215 com transferência comprovada (grupo A), e 406 correspondentes à demanda espontânea (grupo B).
Na Tabela 1, são apresentados os resultados dos grupos A e B. Observa-se que ambos os grupos apresentaram características de fatores de risco semelhantes.
Tabela 1 Características dos pacientes transferidos de outros centros (grupo A) e pacientes de demanda espontânea (grupo B). Porto Alegre, RS
Variável | Grupo A (n = 215) | Grupo B (n = 406) | p |
---|---|---|---|
Idade, anos* | 58 (28-87) | 60 (18-98) | 0,50 |
Sexo, masculino† | 145 (67) | 283 (69) | 0,67 |
Fatores de Risco† | |||
Hipertensão | 128 (59) | 251 (61) | 0,69 |
Tabagismo | 148 (68) | 249 (61) | 0,10 |
Dislipidemia | 67 (31) | 132 (32) | 0,86 |
Diabetes | 55 (25) | 96 (23) | 0,64 |
História Familiar | 45 (20) | 109 (26) | 0,11 |
*Dados apresentados em mediana e intervalo interquartílico;
†Frequência absoluta e relativa.
A Figura 1 ilustra a variação média do tempo entre o início dos sintomas e a apresentação na emergência (delta T) dos pacientes e as distâncias percorridas, dependendo da cidade de origem.
Figura 1 Mapa da região metropolitana de Porto Alegre, correspondendo aos dados do tempo médio de deslocamento dos pacientes até o IC-FUC.
O tempo médio de delta T para todos os pacientes do estudo foi 334 minutos. O delta T médio dos pacientes transferidos com contato médico de emergência via secretaria de saúde (grupo A) foi de 385 minutos com um atraso decorrente do transporte de 147 minutos. Já o delta T médio dos pacientes do grupo B foi de 307 minutos (Figura 2).
A Figura 3 demonstra um gráfico de dispersão entre o delta T e a distância percorrida, observando-se um bom coeficiente de correlação entre estas duas variáveis (R = 0,55 e p < 0,001). No entanto, observa-se que existem cidades com distâncias menores do que a mediana e tempos de transferência maiores do que a mediana (pontos acima da reta), e o inverso, cidades com distâncias maiores do que a mediana e tempos de transferência menores do que a mediana (pontos abaixo da reta).
Apesar da diferença estatística no tempo de transporte entre os grupos, não houve diferença na mortalidade.
O tratamento do IAMCSST é considerado uma emergência médica, com mortalidade significativa mesmo em centros de referência.11 Seu principal objetivo é o reestabelecimento de fluxo sanguíneo no vaso culpado. Essa meta pode ser alcançada com o uso de fibrinolíticos para dissolver o trombo intracoronariano, ou com ACTP, realizando a recanalização percutânea da artéria culpada com ou sem implante de stent. Neste estudo, demonstramos a diferença no delta T no IAMCSST entre os pacientes encaminhados para ACTP de outra instituição e os que buscam o serviço da emergência do IC-FUC por demanda espontânea.
A observação de que pacientes encaminhados têm tempo aumentado de isquemia e atraso no início do tratamento de reperfusão coronariana não surpreende, pois para o contato médico, acionamento do serviço de transporte, autorização do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência - SAMU e deslocamento do paciente haverá atraso. Segundo as diretrizes brasileiras, a ACTP constitui-se na opção preferencial para a obtenção da reperfusão coronária, se iniciada até 90 minutos após a confirmação do diagnóstico do IAMCSST ou até 120 minutos em caso de necessidade de transferência para centro capaz de realizar o procedimento.8 Destacamos que em pacientes tratados com ACTP, a cada 30 minutos de atraso o risco relativo de mortalidade aumenta em 7,5%.12
A ACTP primária, quando comparada aos trombolíticos em um tempo de até 2h, teve benefício superior em relação à ocorrência de eventos adversos graves (morte, acidente vascular cerebral e reinfarto.13 Taxa de eventos 8,5% vs. 14,2%, p = 0,002).
O benefício da transferência de pacientes com IAMCSST para ACTP primária sobre a mortalidade hospitalar, em comparação à realização de fibrinólise no hospital de origem, diminuiu em função do atraso no transporte. A mortalidade hospitalar foi de 2,7%, 3,6% e 5,7% no grupo ACTP e de 7,4%, 5,5% e 6,1% no grupo fibrinólise para atrasos de 0 a 60 minutos, de 60 a 90 minutos e maior que 90 minutos, respectivamente.14
O tempo médio gasto com transporte no nosso estudo foi de 141 minutos, com grande variação dependendo do local de procedência do paciente. Nas cidades de Porto Alegre, Viamão e São Leopoldo, esses tempos foram menores do que 120 minutos. Contudo, em todas as outras localidades o tempo de transferência não é adequado, perdendo-se, assim, as vantagens da transferência de urgência para angioplastia primária.
Observando-se a Figura 1, pode-se notar de forma mais clara a relação da distância com tempo de transferência prolongado. As localidades em branco no mapa não encaminharam pacientes para angioplastia primária de forma que pudessem ser adicionados no estudo ou no gráfico, mas é provável que os tempos de transferência fossem similares às localidades vizinhas e acima do previsto.
Um braço do estudo GRACE com 3959 pacientes, comparando tratamento com fibrinolítico versus angioplastia primária, demonstrou tempo porta-agulha de 35 minutos e tempo porta-balão de 78 minutos. Atrasos no tratamento foram associados com aumento de mortalidade em 6 meses para as duas terapias. Houve um aumento na mortalidade de 0,3% a cada 10 minutos no grupo trombolítico e de 0,18% a cada 10 minutos no grupo da ACTP primária.15
Em pacientes com dor torácica que receberam tratamento em menos de 3 horas do início do sintoma, não houve diferença na mortalidade entre ACTP e fibrinólise (7,3% vs. 7,4%). Contudo, para os pacientes que receberam tratamento entre 3 e 12 horas, houve aumento significativo de mortalidade no grupo fibrinólise comparado ao ACTP (6,0% vs. 15,3%, p = 0,02).16
Em um local onde haja a necessidade de se transferir um paciente para realizar cateterismo, a trombólise deve ser realizada, considerando-se que, nas primeiras 3 horas do IAMCSST, o benefício da angioplastia e da terapia trombolítica sobre mortalidade é o mesmo. Além disso, fora desse período, mas ainda antes de 12 horas do início da dor, em localidade onde o tempo de transferência sabidamente será maior que o ideal, a trombólise deve ser fortemente considerada.
No cálculo do tempo total de isquemia cardíaca, deve-se contabilizar a demora da procura de atendimento pelo paciente, o tempo até o diagnóstico do IAM, os atrasos com a transferência até local adequado para a ACTP e, também o atraso interno no serviço de referência desde a abertura da ficha até a abertura do vaso culpado. Em estudo feito no próprio IC-FUC demonstrou-se um Delta T interno do serviço médio de 90 minutos em horário comercial e de 133 minutos fora deste período.17
O delta T é uma variável quantitativa, no entanto muitas vezes é de difícil avaliação podendo ocorrer erros na sua medida. Outro fato que deve ser considerado é que este estudo é uma revisão de banco de dados, com vieses potenciais inerentes a esse tipo de análise.
Este estudo demonstra que pacientes com IAM transferidos de outras instituições têm um tempo de isquemia prolongado, em excesso aquele recomendado pelas diretrizes brasileiras. No entanto, observamos uma grande variação conforme a cidade, mas de modo diretamente proporcional à distância a ser percorrida. Esses resultados podem servir de auxílio aos gestores do sistema de saúde para identificar oportunidades para melhorar o sistema de transferência destes pacientes, com consequente administração mais precoce da terapia de reperfusão e diminuição da mortalidade.