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Análise da expressão do gene da proteína beta-traço na urina de pacientes com diabetes mellitus tipo 2

Análise da expressão do gene da proteína beta-traço na urina de pacientes com diabetes mellitus tipo 2

Autores:

Marcelo Rodrigues Bacci,
Beatriz da Costa Aguiar Alves,
Marina Romera Cavallari,
Ligia Ajaime Azzalis,
Ross Martin de Rozier-Alves,
Matheus Moreira Perez,
Ethel Zimberg Chehter,
Edimar Cristiano Pereira,
Fernando Luiz Affonso Fonseca

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.15 no.4 São Paulo out./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082017ao4012

INTRODUÇÃO

A prostaglandina D-sintase, também conhecida como proteína beta-traço (BTP - beta-trace protein) do tipo lipocalina, é uma proteína de baixo peso molecular, com 168 aminoácidos, codificada no cromossomo 9. A BTP é amplamente encontrada em uma variedade de tecidos e fluidos corporais. O peso molecular da BTP varia entre suas diferentes isoformas, sendo de 23 a 29kDa. Estas isoformas são produzidas por um processo de N-glicosilação pós-tradução, sendo as isoformas de menor peso molecular encontradas principalmente no liquor, e as de maior peso, no sangue e na urina.(1,2)

As duas principais medidas séricas utilizadas no diagnóstico de diabetes são a glicemia e a hemoglobina glicada. Tal como acontece em outras doenças crônicas, a busca por biomarcadores mais sensíveis e específicos para o diabetes é importante, para permitir intervenções mais precoces e minimizar a progressão da doença e suas complicações em possíveis órgãos-alvo, como rins, coração e cérebro.

Um dos desafios na descoberta de novos biomarcadores é a dosagem, que deve ser simples e prática, para facilitar o uso clínico, mas pode interferir na determinação das quantidades do biomarcador. Isso ocorre especialmente no caso da BTP, já que a concentração de BTP é alta em locais que sofrem processos inflamatórios ou, no caso do cérebro, que sofrem trauma. Assim, os estudos da BTP como possível marcador de disfunção renal, por enquanto, têm se concentrado nos casos em que níveis elevados da BTP foram encontrados no sangue e na urina. Nos casos em que se verificam altos níveis urinários de BTP, é razoável considerar a possibilidade de lesão renal.(3) Como preditores de disfunção renal inicial, os níveis urinários de BTP mostraram valor preditivo para doença renal superior ao de outros biomarcadores tradicionais.(4)

OBJETIVO

Avaliar a expressão do gene da proteína beta-traço na urina de pacientes com diabetes que não apresentavam redução da taxa de filtração glomerular, definida como abaixo de 60mL/min/1,73m2.

MÉTODOS

Os pacientes com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 (DM2) e histórico de, pelo menos, 5 anos de doença, determinada de acordo com os critérios estabelecidos pela American Diabetes Association, foram recrutados entre 2013 e 2014, dentre pacientes ambulatoriais de nefrologia e endocrinologia, na região metropolitana de São Paulo. Os critérios de exclusão foram existência de infecção, neoplasia maligna ativa no momento da inclusão, presença de síndrome de imunodeficiência adquirida e diagnóstico de doença renal terminal, com tratamento conservador ou em diálise.

Este estudo transversal foi desenhado para avaliar a expressão de BTP durante o diabetes e não envolveu alterações no esquema de tratamento dos participantes. Os dois grupos estudados foram classificados pela presença ou ausência de DM2.

Os critérios de inclusão do Grupo Controle foram a ausência de diagnóstico de diabetes e doença renal crônica, bem como sem história familiar de diabetes e doença renal crônica.

Amostras de sangue e urina foram coletadas no momento do recrutamento para análise dos níveis de glicemia de jejum, hemoglobina glicada, creatinina sérica e BTP urinária.

A expressão do gene da BTP na urina foi medida por meio do isolamento do RNA urinário (1μg, inicialmente), que foi, então, convertido em cDNA de primeira cadeia, com o auxílio do SSIII First Strand qPCR Supermix (Invitrogen, no. de catálogo 11752050), de acordo com o protocolo do fabricante.

A expressão do gene específico da BTP foi avaliada por reação em cadeia da polimerase quantitativa em tempo real (RT-qPCR - real-time-quantitative polymerase chain reaction). Para padronizar e determinar a expressão relativa do gene alvo, o gene de referência gliceraldeído 3-fosfato desidrogenase (GAPDH) também foi expresso. Os iniciadores específicos dos genes alvo e de referência foram desenvolvidos com a ajuda do programa Primer3 Input 0.4.0, e a especificidade deles foi verificada pelo programa Primer-BLAST.

Para o RT-qPCR, foi utilizado um termociclador Applied Biosystems 7500 Real Time PCR Systems (Applied Biosystems, Foster City, EUA). Cada amostra teve um volume final de 15μL, contendo 1 x SYBR Green mix (kit Quantitec SYBR Green PCR, QIAGEN no. catálogo 204 054), 10pmol de cada iniciador específico e 2μL de cDNA diluído 10x. Os parâmetros de amplificação incluíram um hot start inicial a 95°C durante 15 segundos e a 60°C para a sequência iniciadora.

Para verificar as diferenças na expressão do gene da BTP na urina entre os grupos, a média e o desvio padrão foram analisados usando o teste t de Student para amostras independentes. A mediana, e o primeiro e o terceiro quartis foram analisados utilizando o teste de Mann-Whitney.

Para verificar a expressão do gene da BTP na urina acima e abaixo do ponto de corte de 6,34, conforme estabelecido na literatura, utilizou-se a frequência relativa. A verificação de possível associação entre as quantidades expressas entre os dois grupos foi realizada com o teste χ2.

Para determinar a sensibilidade e especificidade da BTP como preditor do diabetes, utilizou-se curva receiver operating characteristic (ROC). A chance de resultados positivos ou negativos em pacientes diabéticos com base na expressão da BTP foi avaliada, respectivamente, pelas razões de verossimilhança positiva e negativa. O nível de significância foi de 95%. As análises estatísticas foram realizadas usando o software Stata®, versão 11.0 (EUA).

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina do ABC, sob o número 295.177, CAAE: 16235413.0.0000.0082.

RESULTADOS

No total, 110 pacientes foram recrutados para este estudo, sendo 90 indivíduos com DM2 e 20 não diabéticos no Grupo Controle. O objetivo do Grupo Controle foi validar a análise da expressão gênica de BTP.

O Grupo Diabético apresentou hemoglobina glicada média de 8,38% e eGFR média de 79,1mL/min/1,73m2. Dos 90 pacientes, 48,8% eram homens e a média de idade foi 61,3 anos. Dos 20 pacientes no Grupo Controle, 25% eram homens e a média de idade foi 38,3 anos.

A tabela 1 mostra a média e a mediana da expressão de BTP observada. Tanto a média (p=0,08) como a mediana (p=0,70) foram mais altas no Grupo Diabético, em comparação ao controle, mas não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos.

Tabela 1 Análise da expressão de proteína beta-traço entre grupos 

Grupo Média (DP) CV Mediana (p,25;p,75) Valor de p* Valor de p
Controle 1,07 (5,27) 4,93 2,01 (-2,66; 4,15) 0,158 0,080
DM2 3,57 (5,21) 1,46 2,80 (0,13; 5,42)

*teste t de Student;

teste de Mann-Whitney.

DP: desvio padrão; CV: coeficiente de variabilidade; p.25-p.75: percentil 25 e 75%; DM2: diabetes mellitus tipo 2.

A figura 1 mostra a capacidade diagnóstica da BTP como preditor de lesão renal em pessoas com diabetes, usando a curva ROC. Próximo ao ponto de corte estabelecido na literatura (6,34), a BTP como preditor de lesão renal teve sensibilidade de 20%, especificidade de 89,47%, acurácia de 39,13%, razão de verossimilhança positiva de 1,90 e razão de verossimilhança negativa de 0,89, com uma área sob a curva ROC de 0,610.

Figura 1 Curva ROC da expressão gênica da proteína beta-traço na urina entre pacientes com e sem diabetes mellitus tipo 2 

DISCUSSÃO

A metodologia utilizada neste estudo não tem precedentes na literatura, porque, ao invés de investigar a concentração de BTP, foi medida a variação com base na expressão gênica da BTP. Foi verificada possível relação entre presença ou ausência de função renal anormal em diabéticos e a expressão da BTP.(5,6)

A BTP é amplamente encontrada nos tecidos e fluidos corporais, e o aumento na concentração da BTP foi estudado como possível biomarcador de redução da taxa de filtração glomerular. No entanto, tal como outros marcadores, a concentração de BTP encontrada demonstrou grande variabilidade, dependendo do método de medição utilizado, além de flutuações intraindividuais. Selvin et al.,(7) avaliaram o coeficiente de variabilidade entre os diferentes marcadores de taxa de filtração glomerular, como cistatina C, beta-2-microglobulina e BTP. De todos os marcadores avaliados, a BTP, quando medida em termos de massa e concentração, foi o que apresentou maior variabilidade intraindividual.

Essa variabilidade é, no mínimo, parcialmente causada pela existência de vários isômeros da BTP. As medidas díspares são resultado das mudanças nas concentrações relativas de cada isômero. Além disto, as diferenças na glicosilação de cadeia lateral, bem como as diferenças de clearance, dependem do fluido específico (sangue, urina ou liquor) em que se encontra a BTP.(8,9) A BTP no liquor, com glicosilação relativamente baixa, é excretada pelo fígado, enquanto os isômeros com altas taxas de glicosilação são eliminados pelos rins.(8) A medição da BTP com base na expressão gênica, em vez da concentração, elimina as variações decorrentes dos isômeros.

Dada esta vantagem metodológica, a análise da curva ROC mostrou resultados satisfatórios, considerando-se que o valor 0,7 é geralmente considerado como o limite inferior para um bom marcador, e valores acima de 0,9 são considerados excelentes. É promissor o fato de esta análise, usando a expressão gênica, ter atingido um valor de 0,61.

Vários estudos verificaram aumento na concentração de BTP em pacientes diabéticos que já apresentaram outros sinais de função renal reduzida.(10,11) Um aumento no BTP também foi verificado em pacientes com síndrome metabólica e pacientes que apresentaram eventos cardiovasculares, sugerindo que a BTP também pode ser usada como preditor de diabetes.(12) No entanto, nenhum destes estudos correlacionou a presença de diabetes sem doença renal ou outras alterações patológicas, como infecções ou alterações no liquor, com aumentos na BTP.

CONCLUSÃO

A expressão do gene da proteína beta-traço em pacientes diabéticos apresentou boas sensibilidade e especificidade. Estes resultados são promissores, apesar de a área sob a curva alcançada não ter sido tão alta.

REFERÊNCIAS

1. Orenes-Piñero E, Manzano-Fernández S, López-Cuenca A, Marin F, Valdés M, Januzzi JL. β-Trace protein: from GFR marker to cardiovascular risk predictor. Clin J Am Soc Nephrol. 2013:8(5):873-81. Review.
2. White CA, Ghazan-Shahi S, Adams MA. β-Trace protein: a marker of GFR and other biological pathways. Am J Kidney Dis. 2015:65(1):131-46. Review.
3. Kobata M, Shimizu A, Rinno H, Hamada C, Maeda K, Fuhui M, et al. Beta- trace protein, a new marker of GFR, may predict the early prognostic stages of patients with type 2 diabetic nephropathy. J Clin Lab Anal. 2004; 18(4) :237-9.
4. Bacci MR, Cavallari MR, de Rozier-Alves RM, Alves Bda C, Fonseca FL. The impact of lipocalin-type-prostaglandin-D-synthase as a predictor of kidney disease In patients with type 2 diabetes. Drug Des Devel Ther. 2015:9:3179-82. Review.
5. Filler G, Kusserow C, Lopes L, Kobrzyński M. Beta-trace protein as a marker of GFR—history. Indications, and future research. Clin Biochem. 2014:47(13-14): 1188-94. Review.
6. Vynckier LL, Floré KM, Delanghe SE, Delanghe JR. Urinary beta-trace protein as a new renal tubular marker. Clin Chem. 2009:55(6): 1241-3.
7. Selvin E, Juraschek SR Eckfeldt J, Levey AS, Inker LA, Coresh J. Within-person variability in kidney measures. Am J Kidney Dis. 2013;61 (5):716-22.
8. Hoffmann A, Nimtz M, Conradt HS. Molecular characterization of beta-trace protein in human serum and urine: a potential diagnostic marker for renal diseases. Glycobiology 1997:7(4):499-506.
9. Tin A, Astor BC, Boerwinkle E, Hoogeveen RC, Coresh J, Kao WH. Genomewide significant locus of beta-trace protein, a novel kidney function biomarker, Identified In European and African Americans. Nephrol Dial Transplant. 2013; 28(6):1497-504.
10. Uehara Y, Makino H, Seiki K, Urade Y; L-PGDS Clinical Research Group of Kidney. Urinary excretions of lipocalin-type prostaglandin D synthase predict renal injury in type-2 diabetes: a cross-sectional and prospective multicentre study. Nephrol Dial Transplant 2009;24(2):475-82.
11. Yoshikawa R, Wada J, Seiki K, Matsuoka T, Miyamoto S, Takahashi K, et al. Urinary PGDS levels are associated with vascular injury In type 2 diabetes patients. Diabetes Res Clin Pract. 2007;76(3):358-67.
12. Cheung CL, Cheung TT, Lam KS, Cheung BM. Reduced serum beta-trace protein Is associated with metabolic syndrome. Atherosclerosis. 2013; 227(2) :404-7.