versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.46 no.2 São Paulo 2020 Epub 02-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20190201
Estima-se que um quarto da população mundial tenha infecção latente por Mycobacterium tuberculosis (ILTB), o que gera potenciais novos casos de tuberculose ativa.1 A maioria dos casos que progridem para a doença ativa ocorre nos primeiros 2-5 anos após a exposição ao caso índice de tuberculose.2 Os profissionais de saúde que apresentam conversão aos testes para a ILTB - prova tuberculínica (PT) ou interferon-gamma release assay (IGRA, ensaio de liberação do interferon-gama) - estão sob esse risco de adoecimento. Diante disso, o Ministério da Saúde3 recomenda o monitoramento anual desse grupo para a ILTB e a prescrição da profilaxia para aqueles casos que apresentarem conversão a qualquer um dos testes utilizados para o diagnóstico dessa infecção.
No presente estudo foi utilizado o teste QuantiFERON-TB Gold In-Tube (QTF; Quiagen, Hilden, Alemanha), um IGRA, para avaliar a incidência da ILTB entre profissionais da atenção básica à saúde em duas cidades brasileiras: Vitória (ES) - taxa de incidência = 40/100.000 habitantes - e Manaus (AM) -taxa de incidência = 71/100.000 habitantes.
Trata-se de um estudo de coorte prospectiva, realizado entre 2011 e 2013, em profissionais da atenção básica à saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares ou técnicos em enfermagem e agentes comunitários de saúde) submetidos a QTF em dois momentos diferentes, entre 18 e 24 meses de acompanhamento.
Todos os profissionais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. A coleta das amostras de sangue para a realização de QTF e do teste rápido para HIV e demais detalhes metodológicos foram realizados conforme descrito por de Souza et al.4
Em 2013, foi realizada a segunda avaliação da coorte. Além dos critérios de inclusão anteriores, consideramos como critério de inclusão, para a segunda etapa do estudo, ter apresentado resultado negativo no primeiro QTF. Para minimizar a variabilidade, protocolos semelhantes foram utilizados para os testes basais e no acompanhamento.
Como naquela ocasião o resultado do QTF não era padronizado para o diagnóstico da ILTB no Brasil,5 os participantes com resultados positivos na primeira etapa foram avaliados por um médico infectologista, que considerou os resultados de QTF e PT. Logo, aqueles com conversão à PT foram encaminhados ao Programa de Controle de Tuberculose.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo, localizada na cidade de Vitória (ES) (Protocolo no. 007/10, março de 2010). Todas as informações foram codificadas e armazenadas anonimamente em um banco de dados criado em Microsoft Excel for Windows. Para a análise descritiva, foi utilizado o software Stata, versão 13.1 (StataCorp LP, College Station, TX, EUA), e foi incluída a estimativa do risco de conversão a QTF por meio do método atuarial Cumulative Incidence Based on the Life-Table Interval Approach (Actuarial Life Table).6,7 Nesse método, a probabilidade cumulativa do evento durante um determinado intervalo de tempo (t0 − t) é a proporção de novos eventos durante esse período, sendo o denominador a população inicial (N0) corrigida pelas perdas (W) que, como pressuposto, se distribuem homogeneamente no intervalo de tempo considerado; por isso, na média, é como se todas as perdas ocorressem no meio do período de observação (W/2), conforme a equação6,7:
onde t0 − t é o intervalo de tempo considerado (entre 18 e 24 meses); I é o número de casos novos em t0 − t (12 profissionais de saúde converteram a QTF); N0 é o número de indivíduos sob risco no início do período de seguimento (339 profissionais de saúde); e W é o número de perdas em t0 − t (276 profissionais de saúde).
Na primeira etapa do estudo, 339 profissionais de saúde foram avaliados. Entre eles, 303 (89,4%) eram mulheres, e a mediana [intervalo interquartil] da idade foi de 41 [26-63] anos.
A prevalência de ILTB de acordo com o QTF na primeira etapa foi de 23,3%. Com isso, 260 profissionais de saúde foram elegíveis para o seguimento, posto que apresentaram resultado negativo para o primeiro QTF. Devido à rotatividade desses profissionais na rede pública, acrescido da ausência dos mesmos nas unidades de saúdes no dia agendado, 63 profissionais de saúde (24,2%) estavam disponíveis para realizar a segunda avaliação.
A mediana da idade na segunda etapa foi de 46 [39-53] anos, 10 indivíduos (16,4%) afirmaram ser portadores de alguma morbidade, e apenas 7 (11,1%) referiram ter convivido com alguém com tuberculose nos últimos 2 anos. Em relação às características ocupacionais e de biossegurança, 44 indivíduos (69,8%) relataram assistência à pacientes portadores de tuberculose nos últimos 2 anos, e 40 (64,4%) referiram que nem sempre havia disponibilidade de uso da máscara N95.
Ao considerar as perdas aleatórias e a razão do cálculo proposto, a probabilidade de conversão a QTF entre 18 e 24 meses de acompanhamento foi de 7,4%.
Estudos realizados em países de baixa e média renda revelaram que a taxa de conversão a IGRA em profissionais de saúde variou de 10-30%.8 Em estudos realizados na atenção básica e secundária em países com alta taxa de incidência da tuberculose, ao se considerar o nível de atenção à saúde, a taxa de conversão a IGRA variou de 14-22%.9 Na atenção terciária, em um estudo realizado na Índia, essa taxa foi de 11,6%.10 Contudo, nenhum desses estudos considerou as perdas de seguimento no cálculo da incidência de conversão a IGRA.
Este foi o primeiro estudo a fornecer estimativas da incidência da ILTB na atenção básica no Brasil e a utilizar um IGRA como teste diagnóstico para a avaliação dessa medida de frequência. Contudo, há algumas limitações do estudo: a perda de seguimento foi alta (em torno de 75%) e, como não havia um teste de referência para o diagnóstico da ILTB, a estimativa da incidência dessa infecção pode ter sido influenciada pelo desempenho do QTF.
Entre as estratégias propostas para o alcance do controle da tuberculose pela Organização Mundial da Saúde e pela estratégia End TB, destaca-se a importância do diagnóstico e tratamento da ILTB como uma das ações capazes de imprimir as necessárias mudanças nessas ações programáticas. Por fim, avaliar, monitorar e tratar adequadamente pessoas sob o risco de ILTB, como os profissionais de saúde, são, sem dúvida, algumas das ações que podem contribuir para o fim da tuberculose como epidemia até 2035.