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Análise de concordância entre o bicarbonato sérico dosado e o calculado pela gasometria em pacientes renais crônicos

Análise de concordância entre o bicarbonato sérico dosado e o calculado pela gasometria em pacientes renais crônicos

Autores:

Luis Gustavo Modelli de Andrade,
Ananda Barbosa Muniz,
Alessandro Lia Mondelli,
Daniela Ponce

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 11-Maio-2020

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0236

Introdução

A acidose metabólica é altamente prevalente em pacientes em diálise e associa-se a alterações no metabolismo das proteínas e da glicose, doenças ósseas e musculares, enfermidades cardiovasculares e aumento da mortalidade. A real prevalência desse problema no Brasil é desconhecida, uma vez que, em 1996, a agência reguladora dos procedimentos de diálise publicou uma portaria suspendendo a medição obrigatória de bicarbonato em pacientes em terapia renal substitutiva (TRS). As diretrizes públicas mais recentes recomendam que o bicarbonato seja medido a cada seis meses nos pacientes com DRC estádio 4 ou trimestralmente naqueles com estádio 5 e em tratamento conservador, mantendo a medição desse parâmetro como não obrigatória para pacientes em TRS.1-4

Atualmente, o controle da acidose metabólica nos pacientes dialíticos está voltado, principalmente, para o suprimento de bicarbonato durante a sessão de diálise, porém mais estudos são necessários para definir o bicarbonato sérico alvo e a melhor concentração de bicarbonato do banho.

O bicarbonato expresso na gasometria é considerado o padrão mais sensível de análise e não é medido diretamente, mas calculado pela equação de Henderson-Hasselbalch, usando os valores de pH e pressão parcial de gás carbônico (PaCO2) medidos.5 O método direto de análise bioquímica mostra resultados concordantes em alguns estudos6,7 e discordantes em outros.5,8 O impacto econômico da análise do bicarbonato sérico favorece a realização do procedimento com um custo até 100 vezes inferior comparado à do bicarbonato calculado pela gasometria. Não há estudos de concordância entre as duas metodologias analíticas para a população de renais crônicos.

O objetivo deste estudo é analisar a concordância entre o bicarbonato sérico medido e o calculado pela gasometria e discutir quais os melhores métodos para avaliar a concordância entre os diferentes testes.

Materiais e métodos

Foram analisadas amostras de sangue de pacientes renais crônicos em hemodiálise sendo feito na mesma amostra de análise do bicarbonato pela bioquímica e análise pela gasometria. Os pacientes renais crônicos referidos para o transplante renal no momento da coleta dos exames bioquímicos de compatibilidade foram convidados a participar do estudo com uma coleta adicional de gasometria e análise bioquímica. A coleta foi realizada no período fora de hemodiálise, às quartas ou quintas-feiras, para evitar o período de maior intervalo sem diálise.

O tempo até o processamento dos exames foi anotado desde a coleta até o processamento do exame. O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, sob o número CAE: 23889019.4.0000.5411

A dosagem do bicarbonato sérico medido foi realizada por meio do equipamento VITROS® 5.1| FS da Ortho Clinical Diagnostics, que utiliza a tecnologia de química seca MicroSlide VITROS®. O Slide ECO2 VITROS é composto por cinco camadas, revestido por um suporte de poliéster. Uma gota do material biológico é adicionada ao slide, onde uniformemente é distribuída para as camadas adjacentes. Ocorrem na reação final a oxidação de NADH e a redução de oxalacetato, produzindo NAD+ e malato. O slide necessita ser incubado à temperatura de 37ºC e a concentração de CO2 na amostra é estabelecida medindo a absorbância do NADH que não participou da reação através da espectrofotometria de reflectância.9 As amostras em tubo seco com gel contendo o soro dos pacientes foram colocadas no equipamento assim que chegaram ao laboratório, e seus respectivos resultados e o horário de coleta foram anotados.

A dosagem do bicarbonato calculado foi realizada por meio da gasometria, utilizando o equipamento Start Profile Prime da Nova Biomedical. Esse equipamento associa a microeletrônica com o MicroSensor Card TM em um analisador de gases no sangue.10 As amostras em seringas de 1 mL com heparina foram homogeneizadas e colocadas no equipamento assim que chegaram ao laboratório. Seus respectivos resultados e horário de coleta foram anotados.

Análise estatística

Para o cálculo do número amostral, foi utilizado o método proposto por Lu MJ et al.11 Consideramos uma amostra inicial piloto com 10 casos. Nesses casos, obtemos uma diferença média entre os métodos dividida pelo desvio-padrão de 2,9. Considerando uma alfa de 0,05 e beta de 0,80, temos uma amostra de 48 casos.

A análise foi realizada por correlação de Pearson entre as duas dosagens. Para avaliar a concordância, foi utilizada o método de Bland-Altman,12 que se baseia na diferença média entre as duas dosagens, que deve ficar na faixa de 2 vezes o desvio-padrão (limite superior e limite inferior). Foi utilizado o software R versão 3.4.2.

Resultados

Foi analisado um total de 51 amostras. A análise de correlação revelou alta correlação (r = 0.73, p < 0.001) e a diferença média (bias) de 1.15 ± 3 mmol/L (Tabela 1, Figura 1).

Tabela 1 Concordância e correlação entre os dados da bioquímica e da gasometria 

Total de amostras 51
Diferença média (Bias) 1.15
Limite superior de concordância (+1.96 x dp) 7.07
Limite inferior de concordância (-1.96 x dp) -4.75
Diferença crítica 5.91
Correlação Pearson (r) 0.728
P da correlação < 0.001

Figura 1 Correlação entre o bicarbonato sérico e o bicarbonato da gasometria. Regressão linear com r = 0.73. Diagrama de Bland-Altman mostrando a diferença média no eixo y pela média dos dois grupos. A linha vermelha representa a diferença média (Bias) e as linhas azuis, o limite de concordância superior e inferior. 

O tempo mediano entre a realização da coleta e do exame foi de 241 minutos. Não houve correlação entre o tempo de coleta e a diferença média do bicarbonato (r = 0,14 e p = 0,32); entretanto, os casos que apresentaram maior diferença média (bias) foram aqueles analisados após o período mediano de 241 minutos (Figura 2).

Figura 2 Diagrama de Bland-Altman mostrando a diferença média no eixo y pela média dos dois grupos. A linha vermelha representa a diferença média (Bias) e as linhas azuis, o limite de concordância superior e inferior. As cores dos pontos representam o tempo mediano de coleta: maior ou menor que 241 minutos. 

Discussão

Neste trabalho, avaliamos a concordância entre os valores de bicarbonato calculados pela gasometria e os aferidos pela bioquímica em pacientes renais crônicos estádio 5. Observamos uma correlação mediana entre as dosagens com uma concordância relativa entre as medidas. A diferença média (bias) foi de 1.15 mmol/litro, e quando avaliamos o diagrama de Bland-Altman, a maioria dos casos encontrava-se entre 1.98 desvio-padrão.12 As maiores diferenças (maiores que 7 mmol/litro) foram encontradas nos casos em que o intervalo entre a coleta e a realização do exame foi superior a 240 minutos. Ao analisar apenas as amostras em que o período entre coleta e dosagem foi inferior a 4 horas, a diferença média entre os métodos foi de 1.15 mmol/litro, o que é considerada aceitável clínica e estatisticamente, pois a maioria das diferenças situa-se no intervalo de confiança.

Considerando a rotina de uma unidade de hemodiálise, o tempo de quatro horas entre coleta e realização dos exames é considerado aceitável. Nesse contexto, a concordância entre os valores de bicarbonato calculados pela gasometria e os dosados pela bioquímica avaliada pela diagrama de Bland-Altman está no intervalo desejável de até dois desvios-padrão.

O uso da correlação isoladamente não é um bom parâmetro para avaliar a concordância entre dois exames, como previamente discutido por Bland e Altman,12 que propuseram um método baseado na diferença média entre as duas medidas. Considerando que a diferença média segue uma distribuição normal, a diferença entre os dois métodos (bicarbonato calculado da gasometria e dosado pela bioquímica) deve estar compreendida entre 1.98 desvio-padrão no limite inferior e superior. Colocando os dados num gráfico, observamos a diferença média (eixo y) pela média dos resultados (média do bicarbonato da gasometria e da bioquímica) no eixo x. São traçadas mais duas linhas com os intervalos de confiança. A linha superior compreende o valor da média somada a 1.98 vez o desvio-padrão e a linha inferior, a média menos 1,98 vez o desvio-padrão. Espera-se que as diferenças médias estejam situadas próximas da linha de referência do zero e entre as duas linhas de limites dos desvios-padrão.13 Dessa forma, pode-se avaliar a concordância entre os dois testes de forma mais apropriada pela inspeção visual do gráfico de Bland-Altman.

Possíveis limitações deste estudo residem na sua natureza unicêntrica limitando sua reprodutibilidade onde diferentes técnicas de análise bioquímica ou de gasometria forem utilizadas. Foram feitas medidas em pacientes de hemodiálise, limitando sua extrapolação para pacientes da pré-diálise ou de diálise peritoneal.

Podemos concluir que a realização da dosagem bioquímica do bicarbonato comparada com a calculada a partir da gasometria em pacientes renais crônicos são concordantes. No HC UNESP, após essa análise de concordância, foi possível realizar economia de custos nas dosagens do bicarbonato, principalmente na rotina dos pacientes em terapia de hemodiálise crônica, o que pode ser estendido a todo o país. Considerando uma diálise com 200 pacientes e um custo médio de R$ 20,00 reais para a gasometria e R$ 0,30 centavos para o bicarbonato sérico, o custo mensal da dosagem do bicarbonato pela gasometria é de R$ 4.000,00 comparado a R$ 60,00 reais pela bioquímica. Para a maior concordância entre os dados, é importante que o tempo entre a coleta das amostras e o encaminhamento ao laboratório para a realização das dosagens não exceda quatro horas.

REFERÊNCIAS

1 Yamamoto T, Shoji S, Yamakawa T, Wada A, Suzuki K, Iseki K, et al. Predialysis and Postdialysis pH and Bicarbonate and Risk of All-Cause and Cardiovascular Mortality in Long-term Hemodialysis Patients. Am J Kidney Dis. 2015;66:469-78. PMID: 26015276.
2 Tentori F, Karaboyas A, Robinson BM, Morgenstern H, Zhang J, Sen A, et al. Association of dialysate bicarbonate concentration with mortality in the Dialysis Outcomes and Practice Patterns Study (DOPPS). Am J Kidney Dis. 2013;62:738-46.
3 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.042, de 11 de outubro de 1996. Estabelece o Regulamento Téc-nico para o funcionamento dos Serviços de Terapia Renal Substitutiva e as normas para cadastramento des-ses estabelecimentos junto ao Sistema Único de Saúde. Ministério da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 1996.
4 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes Clínicas Para o Cuidado ao Paciente com Doença Renal Crônica - DRC no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
5 Mohd Nasir N, Sthaneshwar P, Megat Yunus PJ, Yap SF. Comparing measured total carbon dioxide and calculated bicarbonate. Malays J Pathol. 2010;32(1):21-6.
6 Kumar V KB. Comparison of measured and calculated bicarbonate values. Clin Chem. 2008;54(9):1587-7.
7 Chittamma A, Vanavanan S. Comparative study of calculated and measured total carbon dioxide. Clin Chem Lab Med. 2008;46(1):15-7.
8 Story DA, Poustie S. Agreement between two plasma bicarbonate assays in critically ill patients. Anaesth Intensive Care. 2000;28(4):399-402.
9 ORTHOCLINICALDIAGNOSTICS Disponível em: <>. Acesso em: 17 set. 2019.
10 NOVABIO. Disponível em: <>. Acesso em: 18 set.2019
11 Lu MJ, Zhong WH, Liu YX, Miao HZ, Li YC, Ji MH. Sample Size for Assessing Agreement between Two Methods of Measurement by Bland-Altman Method. Int J Biostat. 2016;12(2):/j/ijb.2016.12.issue-2/ijb-2015-0039/ijb-2015-0039.xml.
12 Bland JM AD. Statistical methods for assessing agreement between two methods of clinical measurement. Lancet. 1986;8(1):307-10.
13 Nawarathna LS, Choudhary PK. Measuring agreement in method comparison studies with heteroscedas-tic measurements. Stat Med. 2013;32(29):5156-71.