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Análise de custo da assistência de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas

Análise de custo da assistência de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas

Autores:

Márcia Pinto,
Romeu Gomes,
Roberta Falcão Tanabe,
Ana Carolina Carioca da Costa,
Martha Cristina Nunes Moreira

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.11 Rio de Janeiro nov. 2019 Epub 28-Out-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182411.08912018

Introduction

Em 2003, a Organização Mundial de Saúde associou o reconhecimento das transformações no cenário epidemiológico à necessidade de reorganização dos sistemas de saúde considerando a atenção e cuidado às pessoas com condições de saúde crônicas1. No interior desse grupo urge reconhecer as necessidades de crianças e adolescentes, cuja situação de cronicidade cursa com complexidades variadas que se caracterizam por limitações de funções físicas e/ou mentais, cuidado multiprofissional que demanda articulação entre diversas áreas da saúde, com especial destaque para a reabilitação, dependência de múltiplas medicações e de tecnologias para alimentação, respiração e excreção2-4. Esses grupos são reconhecidos na literatura por diversas definições - Crianças com Necessidades Especiais de Saúde, Crianças Dependentes de Tecnologia, Crianças com Condições Médicas Complexas2,4-6. Neste artigo, utilizamos o termo Condição Crônica Complexa de Saúde (CCC) para categorizar crianças e adolescentes e que permite uma síntese das situações que a vida com a cronicidade deflagra: duração de sintomas que supera 12 meses compromete ao mesmo tempo um ou mais sistemas orgânicos, e demanda cuidado pediátrico especializado em centros de atenção terciária.

As CCC são irreversíveis e representam um alto custo para os pacientes e suas famílias, requerendo adaptações familiares e na comunidade e um sistema de saúde eficiente3,4,7-10. No interior da categoria “condições crônicas” existe o grupo de crianças e adolescentes com CCC cuja prevalência está crescendo em virtude da redução da mortalidade infantil, do acesso às novas tecnologias e melhorias nos indicadores sociais e de saúde7,11. Em países desenvolvidos, estima-se em aproximadamente 16% na população até 18 anos de idade4. Até trinta anos atrás, crianças com essas condições não sobreviviam12, mas observa-se que atualmente existe a possibilidade de serem tratadas e sobreviverem com perfis medicamente frágeis e com necessidades de cuidados especiais de saúde3.

As crianças e adolescentes com CCC utilizam serviços de saúde intensivos em tecnologia e recursos humanos, através de internações prolongadas e processos de alta hospitalar que demandam muitas negociações com atores situados em outros setores da sociedade - família, Poder Judiciário, serviços de atenção básica e de assistência social13. Durante a hospitalização, esses pacientes se caracterizam pela dependência de tecnologia e por uma situação clínica frágil, sujeitos a instabilidades e agravamentos do seu quadro. E, ainda que representem uma parcela menor da população, esse grupo com CCC é responsável por uma significativa proporção dos gastos hospitalares4. Nesse sentido, estimar o custo da assistência médica tem sido um objeto de análise em países desenvolvidos14,15.

A emergência sanitária em virtude da epidemia pelo vírus Zika no Brasil em 2015 incrementa a importância dessa discussão, considerando que bebês nascidos com microcefalia ou com os agravos variados provocados pela Síndrome da Infecção Congênita pelo vírus Zika farão parte do grupo de crianças que crescem com CCC16. O Ministério da Saúde estima que 29% dos municípios brasileiros notificaram casos de microcefalia e alterações no sistema nervoso17.

O presente artigo contribui para sistematizar e analisar dados sobre o custo da assistência médica de crianças e adolescentes com CCC hospitalizadas e a utilização de tecnologias de saúde. Essas condições demandam uma ampla gama de serviços de saúde que representam um desafio para o Sistema Único de Saúde (SUS). Esses novos e emergentes problemas de saúde, que tocam complexidades múltiplas, convocam uma definição sobre recursos adequados para capacitação de profissionais, programação sobre demandas de tecnologias para suporte a vida, organização de redes de atenção e financiamento adequado12.

A literatura brasileira que sistematiza os padrões de utilização de tecnologias e os custos médicos ainda é pouca. Discutir sobre estes padrões no grupo de crianças e adolescentes com CCC torna-se uma questão importante dada a relevância da sua participação no orçamento do setor saúde, tanto em cenários nacionais como internacionais14,18. Este estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla que sistematizou o perfil de morbidade hospitalar das crianças e adolescentes hospitalizados e seu objetivo foi calcular o custo direto da assistência médica de uma coorte de pacientes hospitalizados com CCC.

Métodos

Trata-se de uma análise retrospectiva de uma coorte de pacientes com CCC conduzida entre maio/2014 e abril/2015. Foram incluídos todos os pacientes entre 0 e 18 anos hospitalizados durante 12 meses no Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), hospital público federal especializado em assistência pediátrica, localizado no município do Rio de Janeiro, com abrangência em todo o estado do Rio de Janeiro. A instituição também recebe casos de outras regiões do Brasil por sua qualificação como referência para doenças raras em crianças e adolescentes. Como estas doenças clinicamente podem ser identificadas como CCC, isso faz com que as pesquisas conduzidas nesse ambiente possam vir a refletir demandas nacionais que o mesmo aglutina. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

A definição da condição crônica ou não-crônica da criança foi feita no momento da internação. Se no decorrer da internação algum paciente não-crônico fosse submetido a determinados procedimentos que indicassem dependência de tecnologia como índice de cronicidade, como traqueostomia e gastrostomia, ele seria incluído no grupo de CCC. Os pacientes foram identificados a partir da classificação proposta por Feudtner et al.19 e atualizada pela Classificação Internacional de Doenças - 10ª Revisão (CID-10). Uma nova versão daquela classificação foi publicada em 2014, adaptando o diagnóstico de CCC à CID-10. Foram acrescentadas três novas categorias: diagnósticos de origem no período neonatal, transplantes e dependência de tecnologia20. Esta atualização foi confirmada neste estudo, através de consulta aos especialistas da área pediátrica com experiência na assistência médica às crianças e adolescentes com diagnóstico de CCC.

Os pacientes readmitidos e aqueles transferidos de outros setores do hospital - ambulatório de pediatria geral, ambulatórios especializados, unidades de terapia intensiva neonatal e intensiva pediátrica, enfermarias de cirurgia pediátrica e doenças infecciosas e unidades semi-intensiva e de pacientes internados - foram incluídos no período de acompanhamento da coorte. Assim, os pacientes com CCC foram divididos nos seguintes grupos conforme a CID-10: respiratório, metabólico, neuromuscular, cardiovascular, renal, gastrointestinal, doenças hematológicas, imunodeficiências, transtornos psiquiátricos, deficiências congênitas ou genéticas e câncer.

Em seguida, a partir do perfil clínico, a população do estudo foi subdividida em: i. pacientes que utilizaram tecnologias indicativas de complexidade: traqueostomia, gastrostomia, uso de drenos (tórax, peritoneal ou subgaleal) e cateteres (derivação ventrículo peritoneal, venoso profundo ou de inserção periférica), uso de oxigenioterapia, ventilação mecânica invasiva, fórmulas infantis especiais e antibioticoterapia; ii. número de diagnósticos conforme os grupos da CID-10 associados às CCC; iii. procedência dos pacientes readmitidos ou transferidos de outros setores do hospital; e iv. desfechos clínicos: alta com e sem uso de tecnologia, permanência hospitalar até o final do estudo e óbito hospitalar.

Estimou-se o custo médico direto e adotou-se a perspectiva do SUS provedor. O método aplicado foi o do custo por paciente que considera a sua trajetória pelos diferentes serviços. O sistema de custo por absorção por centro de custo hospitalar permitiu a valoração dos recursos de saúde. Foi calculado o custo direto total por paciente, considerando o valor da diária hospitalar de cada serviço pelo qual o paciente foi atendido. Os itens de custos incluídos foram: exames (laboratoriais e de imagem), materiais, medicamentos, fórmulas lácteas especiais, recursos humanos, uso de oxigenioterapia e administrativos (energia elétrica, telefone, água, limpeza, segurança, coleta de resíduos químicos e ambientais e lavanderia). O horizonte temporal foi de um ano e não considerou o período anterior e posterior ao início e término da coorte. Não foram aplicados descontos ou ajuste inflacionário devido ao curto período de tempo. O custo refere-se a reais (R$) de 2016.

Incluiu-se uma comparação do custo entre os pacientes com CCC e os pacientes não-crônicos, a partir da utilização das seguintes tecnologias médicas prescritas para ambos os grupos: fórmulas lácteas especiais, antibioticoterapia, oxigenioterapia, uso de ventilação não-invasiva e exames de imagem (raio-x, tomografia, ultrassonografia e ecocardiografia). A hipótese era que os pacientes com CCC teriam maior consumo de recursos de saúde que os não-crônicos e, portanto, maiores custos.

Para descrição do custo, foram apresentados os valores medianos, mínimos e máximos. As variáveis categóricas foram apresentadas através de frequências absolutas e percentuais. Com o objetivo de verificar o impacto da presença de comorbidades, procedência do paciente, duração das internações e realização de procedimentos sobre o custo total da internação, foram realizadas análises de regressões univariadas utilizando o modelo de equações de estimativas generalizadas (GEE, do inglês Generalized Estimating Equations). Como a variável resposta, neste caso, o custo direto total dos pacientes com CCC não possuía distribuição Normal, foi aplicada a transformação logarítmica para fins de adequação do modelo supracitado. O pressuposto de normalidade foi testado através do teste de Kolmogorov-Smirnov. A significância estatística foi mensurada com base em um nível de significância de 5%. Além do logaritmo, o custo direto total por paciente foi agregado e apresentado, em valores absolutos, como custo mediano direto total da assistência de pacientes com CCC e de pacientes não-crônicos. As análises foram realizadas nos softwares SPSS (SPSS Inc. Release VCSI. SPSS Statistics for Windows, versão 18, IL, EUA) e R (R Core Team. Foundation for Statistical Computing V, Austria, versão 3.2.2).

Resultados

Durante o período do estudo, foram incluídos 183 pacientes, dos quais 146 (79,8%) com CCC. Pacientes não-crônicos totalizaram 37 indivíduos (20,2%). Foram registradas 241 internações. O grupo com CCC registrou idade mediana de um ano e mediana de permanência hospitalar de 11 dias (média: 35 dias; desvio-padrão: 72 dias). A Tabela 1 mostra que do total de pacientes com CCC, 35,7% tinham doenças com o envolvimento de pelo menos dois sistemas orgânicos, 62,4% de três sistemas e, aproximadamente, 92% apresentaram duas internações durante um ano. As hospitalizações mais frequentes foram registradas entre os pacientes com diagnóstico de defeitos genéticos ou congênitos (78,1%), doenças respiratórias (64,4%) e neuromusculares (50%). O uso de dreno e/ou cateter (39,7%) e a gastrostomia (15,8%) foram as tecnologias mais utilizadas durante a hospitalização.

Tabela 1 Características clínicas e de utilização de tecnologias de pacientes em um hospital público federal, 2016 

Características clínicas n %
Condição crônica complexa 146 79,8
Não-crônicos 37 20,2
Utilização de tecnologias durante a internação
Traqueostomia 7 4,8
Gastrostomia 23 15,8
Dreno/cateter 58 39,7
Shunt ventricular do líquido cefalorraquidiano 8 5,5
Hospitalizações
Uma 106 72,6
Duas 28 19,2
Três 8 5,5
Quatro 3 2,1
Cinco 1 0,7
Doenças
Defeitos genéticos ou congênitos 114 78,1
Respiratórias 94 64,4
Neuromusculares 73 50,0
Gastrointestinais 62 42,5
Cardiovasculares 43 29,5
Metabólicas 27 18,5
Renais 20 13,7
Hematológicas e imunodeficiências 10 6,8
Transtornos psiquiátricos 1 0,7
Câncer 1 0,7
Diagnósticos associados com CCC (CID-10)
Um 16 11,0
Dois 36 24,7
Três 39 26,7
Quatro 38 26,0
Cinco 15 10,3
Seis 2 1,4

CID-10: Classificação Internacional de Doenças - 10ª Revisão.

A Tabela 2 apresenta a comparação entre os pacientes com CCC e os não-crônicos, e o custo mediano total do primeiro grupo foi superior, com variação entre 60% na internação para o diagnóstico de doenças respiratórias e 657% para a realização de tomografia. Para os procedimentos realizados durante o tratamento, o custo variou de 133% a 339% entre os dois grupos.

Tabela 2 Custo total mediano de pacientes com condição crônica complexa de saúde e pacientes não-crônicos hospitalizados em um hospital público federal, 2016. 

Variável Pacientes não-crônicos (R$)a Pacientes com condição crônica complexa de saúde (R$)a p-valor*
(n = 37) (n = 146)
Utilização de tecnologias
Fórmulas lácteas especiais
18.507,64 (2.022,45 - 40.449,00) 40.449,00 (2.022,45 - 792.562,68) <0,01
Antibioticoterapia 12.134,70 (2.022,45 -169.834,86) 28.314,30 (2.022,45 - 792.562,68) <0,01
Oxigenioterapia 12.134,70 (2.022,45 - 169.834,86) 31.421,19 (2.022,45 - 762.079,50) <0,01
Ventilação mecânica não invasiva 9.798,16 (8709,48 - 10.886,85) 43.009,43 (4354,74 - 762079,50) <0,01
Exames de imagem: 11.510,78 (2.022,45 - 169.834,86) 26.291,85 (2.022,45 - 792.562,68) <0,01
Raio-x 12.134,70 (2.022,45 - 169.834,86) 26.291,85 (2.022,45 - 792.562,68) <0,01
Tomografia computadorizada 8.709,48 (2.022,45 - 169.834,86) 65.953,52 (2.022,45 - 792.562,68) <0,01
Ultrassonografia 16.179,60 (6.067,35 - 169.834,86) 56.628,60 (4.044,90 - 792.562,68) <0,01
Ecocardiografia 16.799,28 (6.067,35 - 169.834,86) 55.617,38 (2.022,45 - 792.562,68) <0,01
Comorbidades associadas
Doenças respiratórias 10.499,55 (2022,45 - 169.834,86) 26.291,85 (2.022,45 - 73.6171,80) <0,01
Doenças gastrointestinais 15.241,59 (14.157,15 - 20.224,50) 28.314,30 (2.022,45 - 79.2562,68) <0,01
Diagnóstico da internação
Doenças respiratórias 10.112,25 (20.22,45 - 40.449,00) 16.179,60 (2.022,45 - 72.9418,95) <0,01

R$: reais.

a Custo apresentado em termos do valor mediano (mínimo - máximo).

*p-valor: relativo ao ajuste do modelo de equações de estimativas generalizadas, considerando o logaritmo do custo total como desfecho e a presença ou não de condição crônica complexa de saúde como variável preditora.

Em relação aos pacientes com CCC, os resultados do modelo de regressão evidenciaram que o tempo de permanência, o número de sistemas afetados, o serviço de procedência do paciente, os desfechos e a necessidade de tecnologias na alta hospitalar aumentaram significativamente o custo. O custo mediano total foi diretamente proporcional à duração da internação hospitalar (Figura 1a) e altamente sensível ao número de doenças/sistemas orgânicos afetados (Figura 1b), sendo o maior custo verificado para os pacientes com CCC com diagnóstico de doenças respiratórias e metabólicas (Figuras 1c e 1d). As demais categorias de doenças classificadas pela CID-10 (neuromusculares, cardiovasculares, renais, gastrointestinais, hematológicas ou de deficiência imunológica, distúrbios psiquiátricos e deficiências genéticas ou congênitas e câncer) não apresentaram significância estatística para o custo mediano total.

Figura 1 Logaritmo do custo total da atenção hospitalar a paciente com condição crônica complexa de saúde em relação ao tempo de permanência, quantidade de sistemas afetados ou doenças e presença de doenças respiratórias e metabólicas em um hospital público, 2016.R$: reais 

O custo dos pacientes com CCC oriundos de duas unidades de internação pediátrica - semi-intensiva e de pacientes internados - foi superior ao estimado para os outros setores do hospital. O menor custo foi associado aos pacientes dos ambulatórios especializados quando comparados com aqueles provenientes das unidades de internação (Figura 2a). Os pacientes que permaneceram internados ao final do período do estudo registraram o maior custo mediano total dentre os desfechos estudados, seguidos pelos que foram a óbito e pelos que receberam alta (Figura 2c). Isso provavelmente se deve ao tempo mediano de permanência de 77,5 dias, 21,5 dias e 10 dias para internação hospitalar, óbito e alta, respectivamente. O custo mediano total dos pacientes que necessitaram de tecnologias na alta hospitalar também foi elevado (Figura 2c).

Figura 2 Logaritmo do custo total da atenção hospitalar de pacientes com condição crônica complexa em relação à origem, desfecho e necessidade de tecnologia na alta hospitalar.R$: reais; APG: ambulatório de pediatria geral; AE: ambulatórios especializados; Neo: unidade de terapia intensiva neonatal; UPG: unidade de terapia intensiva pediátrica; CIPE: enfermaria de cirurgia pediátrica; DIPE: enfermaria de doenças infecciosas; UI: unidade semi-intensiva; UPI: unidade de pacientes internados. 

Discussão

Os resultados mostraram que a idade mediana de um ano da amostra refletiu o predomínio de condições congênitas e apontaram para a complexidade dos casos pois observou-se uma significativa carga associada às CCC, expressa pela presença de três ou mais diagnósticos, cenário também observado no programa estadunidense Medicaid14. Ressalta-se que aproximadamente a totalidade dos pacientes (97%) registrou até três internações durante o período do estudo e a literatura indica que uma das principais variáveis preditoras para hospitalizações pediátricas, readmissões e despesas hospitalares são as admissões com duas ou mais CCC7,15.

O custo da assistência médica dos pacientes com CCC foi elevado quando comparado com os pacientes não-crônicos e, proporcionalmente, aumentou em relação à duração da internação hospitalar como esperado. As doenças respiratórias e metabólicas foram as CCC que geraram os maiores custos. Em nosso estudo, a fibrose cística, uma doença progressiva que afeta muitos sistemas, representou o maior grupo de doenças metabólicas, o que poderia explicar a maior proporção dos custos como já observado em outros países21. Pacientes com fibrose cística e outras condições complexas, incluindo aqueles com dependência tecnológica, sobrevivem mais do que no passado e têm necessidades especiais de cuidados de saúde que exigem significativos recursos financeiros, hospitalares e comunitários12,21.

Neste estudo, o custo mediano total dos pacientes que morreram foi superior ao observado por aqueles que receberam alta hospitalar, sugerindo padrões diferenciados de cronicidade e complexidade e utilização mais intensiva de recursos de saúde. O estudo de Miller et al.22 corrobora este resultado ao mostrar que o tempo de estadia de pacientes foi inversamente proporcional à gravidade clínica quando comparados aos pacientes extremamente graves e de gravidade moderada, resultando em maior custo total para os primeiros. Embora nosso objetivo principal não tenha sido estimar o “custo da morte”, cabe refletir sobre os desafios e limites que a complexidade clínica impõe e os recursos necessários para enfrentá-los no cenário cotidiano. A expressão “a morte tem um custo” aponta duas questões: os custos para as famílias relacionados às exigências de cuidados abrangentes e permanentes e a obstinação terapêutica dos profissionais de saúde apoiados pelos avanços tecnológicos e terapêuticos. O prolongamento da vida pode requerer medidas às vezes necessárias para atender às necessidades de alguns pacientes, mas extraordinárias para os outros23.

Em relação ao resultado do custo mediano total maior entre pacientes com CCC provenientes das unidades semi-intensiva e de pacientes internados, vale discutir em estudos futuros a trajetória percorrida, que inclui um nascimento em situações adversas que leva à dependência tecnológica e à realização de procedimentos cirúrgicos, prolongando permanências no hospital por anos. Isso se reflete no presente estudo quando se comparou a procedência do paciente, entendida como o lugar por onde entrou na pesquisa, com o resultado do custo total da assistência médica.

O hospital analisado possui uma unidade semi-intensiva que funciona como unidade de desmame prolongado de ventilação mecânica que impede que os leitos de terapia intensiva pediátrica sejam bloqueados por pacientes com CCC dependentes de ventilação mecânica. Consequentemente, acredita-se que o custo poderia ser ainda maior se os mesmos tivessem permanecido em terapia intensiva, causando impedimento potencial ao acesso de pacientes agudos e instáveis24 que se beneficiariam mais desta atenção especializada. Este aspecto merece destaque no que toca à organização de serviços para atenção a esse grupo de pacientes com CCC dependentes de ventilação mecânica. Isso porque induz a articulação e organização da rede de serviços de saúde intra-hospitalar, ambulatorial e de emergência, que se vê confrontada com as necessidades de saúde da população pediátrica no estado do Rio de Janeiro25.

Este estudo apresenta algumas limitações. Foi realizado em um único hospital terciário, o que significa que não é possível generalizar os resultados e restringe sua comparação com outros hospitais de menor complexidade. Porém, tem-se argumentado7 que o hospital é o melhor locus para observar e analisar o número crescente de crianças e adolescentes com CCC, uma vez que este grupo tem frequentes readmissões hospitalares, como também as CCC podem ser desenvolvidas durante o curso de suas doenças. Uma segunda limitação refere-se ao horizonte temporal, pois o custo mediano total foi calculado para o período de um ano. Alguns pacientes da coorte já estavam internados antes do início do estudo e a utilização prévia de recursos não foi considerada. Ainda, os pacientes demandam recursos por toda vida e não foram incluídas as consultas ambulatoriais e o custo para as famílias. Este é um componente a ser incorporado em pesquisas futuras, pois são superiores para crianças dependentes de tecnologias15,26-28. Ressalta-se ainda que o custo mediano total aumentou de acordo com o número de doenças e sistemas afetados. O nosso objetivo não foi comparar este custo discriminando quais sistemas foram afetados, mas entender como a complexidade poderia impactar na utilização de tecnologias, no tempo de permanência e no custo. Em razão dessas limitações, os resultados podem estar subestimados e sugere-se que a pesquisa nesse campo seja ampliada no Brasil a fim de se conhecer o custo sob a perspectiva da sociedade.

Cabe apontar a importância do planejamento das ações de desospitalização na linha de cuidado para esses pacientes, considerando o custo gerado pela dependência tecnológica e as repercussões para o sistema de saúde e para as famílias. Agregue-se também outras demandas, como o acesso aos benefícios previdenciários, aos serviços de transporte para tratamento contínuo e fora do domicílio e as adaptações na residência13. A programação da desospitalização pode ser um processo complexo com abordagens multidisciplinares, organizadas em etapas que envolvem diferentes níveis de atenção em saúde, a fim de garantir que cada paciente permaneça saudável, se desenvolva e receba suporte para o cuidado contínuo em casa29. Além disso, deve-se levar em conta no planejamento da alta a sobrecarga emocional imposta às famílias quando assumem o cuidado cotidiano dos paciente com CCC em casa.

No Brasil, vem se observando ao longo das últimas décadas uma mudança do perfil pediátrico hospitalar25,27. Observa-se uma transição para uma “nova pediatria”30 que apresenta novos desafios para os profissionais de saúde. À medida que a prevalência de CCC aumenta globalmente, é importante documentar a utilização de recursos de saúde e o custo, ainda que no nível local, bem como entender os obstáculos para planejar de forma eficiente o sistema de saúde para as crianças e adolescentes com CCC.

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