Print version ISSN 0102-6720On-line version ISSN 2317-6326
ABCD, arq. bras. cir. dig. vol.29 no.2 São Paulo Apr./June 2016
https://doi.org/10.1590/0102-6720201600020006
A aplicação de produtos em anastomoses colônicas que possam prevenir o surgimento de deiscências são de grande interesse médico. O emprego do polissacarídeo de melaço de cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), que possui adequada tolerabilidade e compatibilidade in vivo, ainda não foi testado para este fim.
Analisar os parâmetros biomecânicos em suturas colônicas de ratos submetidos à colectomia esquerda após aplicação de fita ou gel do polissacarídeo do melaço da cana-de-açúcar no sítio cirúrgico.
Quarenta e cinco ratos (Rattus norvegicus albinus da linhagem Wistar) foram sorteados em três grupos de 15 submetidos a: irrigação das suturas entéricas com soro fisiológico a 0,9%; aplicação de fita de polissacarídeo do melaço da cana-de-açúcar; e aplicação do gel do mesmo melaço. Os ratos foram submetidos à colectomia esquerda com anastomose primária, e tratados segundo os respectivos grupos. Cinco ratos de cada grupo foram avaliados em diferentes tempos após o procedimento: 30º, 90º e 180º dias de pós-operatório. Foram avaliadas as variáveis de força máxima de ruptura, módulo de elasticidade e deformação específica da força máxima.
As variáveis biomecânicas entre os tempos de coleta da pesquisa e os grupos de tratamento foram analisados estatisticamente. As características biomecânicas de força máxima de ruptura e o módulo de elasticidade do corpo de prova permaneceram idênticas, independente do tratamento com soro, fita ou gel de polissacarídeo, e do tempo de tratamento. No entanto, foi evidenciada maior deformação específica da força máxima da parede intestinal, aos 180 dias nos ratos tratados com gel de polissacarídeo de cana-de-açúcar. (p=0,09).
Em relação ao controle, foi detectada maior elasticidade da parede intestinal nos ratos tratados com gel de polissacarídeo de cana-de-açúcar, sem alteração de outras características biomecânicas, independente do tipo ou tempo de tratamento.
DESCRITORES: Deiscência da ferida operatória; Prevenção & controle; Cana-de-açucar, química; Biomateriais, uso terapêutico; Ratos; Anastomose cirúrgica
The use of measures in colonic anastomoses to prevent dehiscences is of great medical interest. Sugarcane molasses, which has adequate tolerability and compatibility in vivo, has not yet been tested for this purpose.
To analyze the biomechanical parameters of colonic suture in rats undergoing colectomy, using sugarcane molasses polysaccharide as tape or gel.
45 Wistar rats (Rattus norvegicus albinus) were randomized into three groups of 15 animals: irrigation of enteric sutures with 0.9% saline solution; application of sugarcane molasses polysaccharide as tape; and sugarcane molasses polysaccharide as gel. The rats underwent colon ressection, with subsequent reanastomosis using polypropylene suture; they were treated according to their respective groups. Five rats from each group were evaluated at different times after the procedure: 30, 90 and 180 days postoperatively. The following variables were evaluated: maximum rupture force, modulus of elasticity and specific deformation of maximum force.
The biomechanical variables among the scheduled times and treatment groups were statistically calculated. The characteristics of maximum rupture force and modulus of elasticity of the specimens remained identical, regardless of treatment with saline, polysaccharide gel or tape, and treatment time. However, it was found that the specific deformation of maximum force of the intestinal wall was higher after 180 days in the group treated with sugarcane polysaccharide gel (p=0.09).
Compared to control, it was detected greater elasticity of the intestinal wall in mice treated with sugarcane polysaccharide gel, without changing other biomechanical characteristics, regardless of type or time of treatment.
HEADINGS: Surgical Wound Dehiscence; Prevention & Control; Saccharum, chemistry; Biocompatible materials, therapeutic use; Rats; Anastomosis, surgical
A deiscência de anastomose entérica é complicação pós-operatória com incidência que pode chegar a 5% em operações eletivas e 15% cirurgias de emergência. Sua ocorrência pode resultar em desequilíbrio hidroeletrolítico, desnutrição, infecção, sepse e óbito6. Assim, torna-se criticamente importante o estudo da prevenção e das propriedades locais que levam a ela.
A investigação da cicatrização das anastomoses intestinais com intuito de melhorar seus resultados necessita de quantificação2. Em 1853 Paget introduziu a medida de força tênsil de tecidos ao seccionar e reparar cirurgicamente tendões de coelhos; mediante tecnologia rudimentar observou que o segmento reparado ganhava força ao longo do período pós-operatório. Em 1929 Howes et al sistematizaram a técnica de medida da força tênsil através de dispositivo mecânico (tensiômetro) que apresentava resultados reprodutíveis8. Mais recentemente foi desenvolvido um método mecânico computadorizado de alta precisão para a determinação das análises biomecânicas. Quando aplicadas à parede intestinal, a correlação entre este método e o de pressão de ruptura, já consagrado na literatura, demonstrou que as medidas de ruptura seriam as mais adequadas nas pesquisas de integridade e da avaliação biológica das anastomoses15.
Com o objetivo de diminuir a incidência de deiscência de anastomose entérica, foram pesquisadas novas opções de materiais para anastomoses. Estudos citam o uso de adesivos, grampeadores e anéis biofragmentáveis como causadores de menores reações locais7, constituindo possíveis fatores de proteção à anastomose. Existem trabalhos experimentais sobre a utilização de adesivos tissulares nas anastomoses colônicas, porém ainda controversos, e estudos clínicos prospectivos randomizados ainda são poucos18.
Seguindo essa tendência, o Núcleo de Cirurgia Experimental da Universidade Federal de Pernambuco realizou uma série de ensaios químicos com o objetivo de adequar o polissacarídeo do melaço da cana-de-açúcar (PCA), em estado de pureza, às diversas aplicações cirúrgicas. Teorizou-se que, em virtude dos achados promissores de biocompatibilidade4,11 e propriedades inerentes do material11, o emprego do PCA poderia reduzir a incidência de deiscência de anastomose entérica após ressecções ou rafias intestinais.
Observa-se, contudo, que não há na literatura qualquer relato do emprego do PCA como protetor de deiscência de anastomose entérica. Assim, este estudo foi conduzido com o objetivo de analisar e comparar os parâmetros biomecânicos da anastomose colônica tratada com soro fisiológico a 0,9%, fita de polissacarídeo e gel de polissacarídeo.
Esta pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética no Uso de Animais da Universidade Federal de Pernambuco sob n ͦ 23076.056559/2012-58.
Foram utilizados ratos adultos (Rattus norvegicus albinus) da linhagem Wistar com idade média de 207 dias (mínima 150 e máxima 245). Foi conduzido estudo do tipo ensaio biológico, prospectivo, randomizado. Um total de 45 ratos foram sorteados em três grupos de 15. Os animais dos três grupos foram submetidos à colectomia de 2 cm do cólon esquerdo e os cotos anastomosados com sutura de fio de polipropileno 4.0 em pontos separados e tratados segundo os grupos. No Grupo A (controle) a sutura foi irrigada com 5 ml de soro fisiológico a 0,9%; no Grupo B (fita) com uma fita de PCA circundando a anastomose; no Grupo C (gel) com 5 ml de gel a 1% de PCA. Cinco ratos de cada grupo foram avaliados em 30, 90 e 180 dias do pós-operatório
Foram utilizadas as seguintes variáveis: 1) força máxima de ruptura (F Máx) aplicada imediatamente antes da ruptura do corpo de prova, expressa em Newtons (N); 2) módulo de elasticidade (Mod elast), que é a razão entre a tensão aplicada e a deformação resultante dentro do limite elástico no qual a deformação é totalmente reversível e proporcional à tensão, medido em Megapascals (MPa); 3) deformação específica da força máxima (Def esp F Máx), que é a relação entre a mudança da altura que sofre o corpo de prova pela aplicação da força máxima antes da ruptura e a sua altura inicial, avaliada em porcentagem (%).
Os animais foram pesados antes do procedimento cirúrgico e adequadamente identificados. Inicialmente eles receberam via intramuscular sulfato de atropina na dose de 0,44 mg/Kg de peso corporal. Cerca de 10 minutos após receberam cloridrato de cetamina (75 mg/kg) e xilazina (20 mg/kg), ambos também administrados por via intramuscular. O plano anestésico para os procedimentos foi avaliado pela frequência respiratória regular e ausência de reflexos a estímulos. Durante os procedimentos cirúrgicos era administrada 0,5 ml/min de oxigênio por meio de máscara nasal.
O acesso cirúrgico foi obtido através de incisão mediana longitudinal de aproximadamente 4 cm de extensão com abertura da pele, tecido subcutâneo, aponeurose e peritônio. Após identificação do cólon esquerdo, local do procedimento, uma colectomia de 2 cm de extensão foi realizada, seguida por confecção de anastomose com pontos separados de fio de polipropileno número 4-0.
Nos animais do Grupo A (controle) a linha de sutura foi irrigada com 5 ml de soro fisiológico a 0,9%; nos do grupo B (fita) ela foi revestida com uma fita de 0,5 cm de largura e 3 cm de comprimento de um filme de polissacarídeo, medido com a ajuda de paquímetro, circundando e fixando no local da anastomose também com fio de polipropileno 4-0 (Figura 1); nos do grupo C (gel) ela revestida com 5 ml de gel de polissacarídeo a 1% em uma camada circundando toda a anastomose.
FIGURA 1 Animal do Grupo B monstrando polissacarídeo de 0,5 cm de largura e 3 cm de comprimento em torno da anastomose
Os animais foram reoperados de acordo com o período pós-operatório em que se encontravam, ou seja, aos 30, 90 e 180 dias. Foram novamente pesados e anestesiados, conforme descrito anteriormente. Procedeu-se então a abertura da cavidade abdominal e retirada de um segmento de cólon descendente de 3 cm para estudo biomecânico. Após esse procedimento, os animais foram sacrificados com uma dose letal de tiopental sódico intracardíaco (75 mg/Kg de peso corporal).
Os testes biomecânicos foram realizados no Laboratório de Polímeros, no Departamento de Química da Universidade Federal de Pernambuco, em máquina universal de testes EMIC (r) DL500 com sistema eletrônico para aquisição de dados, software Mtest, versão 3.
Utilizando-se um paquímetro, seguiu-se o preparo do segmento intestinal para o estudo biomecânico e histológico, inicialmente fazendo-se retirada manual das fezes. O corpo de prova foi constituído pelo fragmento que englobasse todas as camadas do cólon entre a anastomose. Ele foi então colocado na máquina fixado em presilhas, e aplicada força tênsil progressiva de até 100N em velocidade constante de 30 mm/min até a ruptura do corpo de prova.
Foi construído um banco de dados utilizando-se planilha eletrônica Microsoft Excel e exportado para o software Statistical Package For Social Sciences (SPSS), versão 18. As variáveis biomecânicas entre os tempos de coleta da pesquisa e os grupos de tratamento foram calculadas utilizando-se o teste ANOVA; o teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado inicialmente para se confirmar a normalidade dos dados.
Todos os espécimes foram avaliados pela força máxima de ruptura (F max), deformação específica da força máxima (Def esp F max) e módulo de elasticidade (Mod elast).
Observou-se que embora houvesse pequena variação entre os grupos tratados, todas as características biomecânicas de força máxima de ruptura e o módulo de elasticidade do corpo de prova permaneceram idênticas, independente do tipo e do tempo de tratamento. No entanto, ficou claramente evidenciado que a característica biomecânica de deformação específica da força máxima foi alterada no grupo tratado com o gel, ao longo dos diferentes tempos (p=0,009).
TABELA 1 Características biomecânicas do corpo de prova
Fator avaliado | Tipo de tratamento | p-valor | ||
Soro | Fita | Gel | ||
F max | ||||
30 dias | 3,73 ± 0,88 | 3,88 ± 0,97 | 4,65 ± 1,30 | 0,386 |
90 dias | 4,00 ± 0,41 | 4,02 ± 1,57 | 4,98 ± 1,05 | 0,241 |
180 dias | 3,90 ± 0,96 | 3,94 ± 0,47 | 4,13 ± 0,71 | 0,898 |
p-valor | 0,854 | 0,987 | 0,449 | - |
Def Esp F max | ||||
30 dias | 43,31 ± 13,02 | 64,49 ± 22,43 | 60,49 ± 25,53 | 0,295 |
90 dias | 63,99 ± 15,91 | 60,28 ± 25,19 | 48,68 ± 9,27 | 0,299 |
180 dias | 69,54 ± 30,64 | 62,73 ± 2,37 | 99,81 ± 27,87 | 0,137 |
p-valor | 0,159 | 0,967 | 0,009 | - |
Mod Elast | ||||
30 dias | 0,43 ± 0,27 | 0,14 ± 0,08 | 0,27 ± 0,18 | 0,139 |
90 dias | 0,34 ± 0,26 | 0,20 ± 0,18 | 0,33 ± 0,12 | 0,698 |
180 dias | 0,33 ± 0,17 | 0,25 ± 0,27 | 0,28 ± 0,05 | 0,822 |
p-valor | 0,771 | 0,712 | 0,729 | - |
F max=força máxima de ruptura; Def Esp F max=deformação específica da força máxima; Mod elast=módulo de elasticidade; valores=média ± desvio-padrão; p-valor por ANOVA.
O gel e a fita do PCA são um exopolissacarídeo constituído à base de água, é biocompatível e de baixa toxicidade11. O polissacarídeo da cana-de-açúcar tem sido utilizado em diversas áreas da cirurgia experimental e em vários segmentos orgânicos16,17,1,29,13,10,14,1. Este é o primeiro estudo investigando o efeito do gel e da fita do PCA sobre suas ações nas alterações biomecânicas do cólon. Trabalhos experimentais já mostram alterações do comportamento mecânico do cólon após realização de uma anastomose2; no entanto, sua relação com o uso de polissacarídeo de melaço de cana-de-açúcar ainda não era conhecido.
Um aumento na elasticidade da estrutura, significa que a alça intestinal sofrerá maior distensão antes de se romper. Também contribui para diminuição da pressão intracolônica. Essa alteração pode ter papel importante como fator protetor após procedimentos cirúrgicos anastomóticos em algumas circunstâncias em que há grande distensão intestinal, com risco de ruptura das anastomoses.
Os testes biomecânicos analisam a resistência mecânica das anastomoses, sua evolução desde o momento da lesão e ao longo do processo de cicatrização. A força máxima de ruptura, a deformidade específica da força máxima e o módulo de elasticidade de uma anastomose analisam parcialmente as propriedades da parede intestinal, pelo fato da complexidade dessas estruturas serem consideradas viscoelásticas não lineares2.
A força máxima de ruptura corresponde melhor forma de avaliação biológica da cicatrização das anastomoses2. Verificou-se que apesar da média da força máxima de ruptura ser maior no tratamento com gel, o teste de comparação das médias não foi significativo, comprovando que não houve influência do uso do PCA nos estados de gel e fita em aumento da força para que houvesse ruptura.
O módulo de elasticidade constitui parâmetro fundamental, pois está associado com a descrição de várias outras propriedades mecânicas, exemplo a tensão de ruptura. Vários pesquisadores optam por esse método porque demonstrou ser o mais preciso em relação aos demais para medição da resistência tecidual ao refletir exatamente a integridade da anastomose3. Tal método não apresenta utilidade no período inicial da cicatrização, porque até o quarto dia do pós-operatório não se registram mudanças na resistência da anastomose. Apenas após 14 dias a resistência é atribuída à cicatrização, e não à sutura5. Com relação ao módulo de elasticidade observou-se que a maior média encontrada nos grupos de tratamentos foi aos 30 dias para o soro (média=0,43), aos 90 dias para o Gel (média=0,33) e aos 180 dias para a fita (média=0,25). Ainda, mesmo sendo verificada maior média do módulo de elasticidade nas fases de estudo descritas, o teste de comparação de médias não foi significativo em nenhum grupo de tratamento, significando que a aposição de PCA nas anastomose colônicas em ratos não difere em relação à resistência tecidual.
A deformação específica de força máxima do corpo de prova é a relação entre a mudança da altura que ele sofre pela aplicação da força máxima antes da ruptura e a sua altura inicial. Maior deformação específica da força máxima significa que a alça colônica sofrerá maior distensão antes de se romper.
Na comparação da deformação específica com a força máxima em cada grupo de tratamento, observou-se que o teste de comparação de média foi significativo em apenas um grupo de tratamento (p=0,009 para o gel), indicando que o deformação específica traz aumento significativo aos 180 dias no grupo que utiliza o gel no tratamento.
Em relação ao controle, foi detectada maior elasticidade da parede intestinal nos ratos tratados com gel de polissacarídeo de cana-de-açúcar, sem alteração de outras características biomecânicas, independente do tipo ou tempo de tratamento.