versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.3 São Paulo jul./set. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170052
No Brasil, o número estimado de pacientes em diálise no ano de 2014 foi de 112.004, sendo 91,4% submetidos à hemodiálise (HD).1 Estes pacientes, em média, ficam em tratamento por 3 anos,2 chegando a 22 anos em HD.3
A mortalidade da população com doença renal crônica (DRC) em HD é elevada e a desnutrição energético-proteica (DEP) destaca-se como uma das consequências mais comuns.4 A maioria dos pacientes possui ingestão inadequada de energia, proteínas e nutrientes, o que compromete o seu estado nutricional.3,5 Ademais, o risco de DEP é inerente ao processo de hemodiálise e pode se agravar à medida que o tempo de HD aumenta.2,6
Considerando a prevalência de distúrbios nutricionais nessa população e sua correlação com o prognóstico clínico, o diagnóstico nutricional faz-se necessário.5 É importante se estudar a relação entre o tempo do tratamento em HD e o impacto sobre o estado nutricional, uma vez que pode impulsionar a realização de intervenções mais eficazes para melhoria da qualidade de vida.7
Portanto, o objetivo deste estudo foi avaliar a associação entre tempo de HD e parâmetros nutricionais desses pacientes.
Trata-se de um estudo transversal, realizado no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU/UFJF). Foram analisados nos prontuários de 36 pacientes, cujos critérios de inclusão foram: prontuários de indivíduos com idade maior ou igual a 18 anos e tempo de HD igual ou maior que seis meses. Foram excluídos prontuários de pacientes portadores de doenças infecciosas, hepatopatias e cardiopatias. Estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (nº 1.233.142).
A avaliação antropométrica é realizada mensalmente pela Equipe de Nutrição, pós HD. Foram coletados o peso corporal seco, estatura, Índice de Massa Corporal (IMC); área muscular do braço (AMB); circunferência muscular do braço (CMB); dobra cutânea tricipital (PCT); circunferência do braço (CB) e circunferência da cintura (CC). A classificação do IMC foi realizada para adultos e idosos, de acordo com a recomendação preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS)8 e Lipschitz,9 respectivamente.
Utilizou-se a CC para classificação do risco para doenças cardiovasculares (DCV), de acordo com os pontos de corte da OMS (1997) - homens ≥ 90 cm e mulheres ≥ 80 cm. Para classificação das dobras cutâneas e CB, foram utilizadas as tabelas de Frisancho.10
Para a análise do consumo alimentar, foram coletados dados de Recordatório Alimentar de 24h. O consumo energético, de macronutrientes e micronutrientes foram calculados pelo software DietWin®. A adequação do consumo alimentar foi avaliada segundo padrões específicos para pacientes com DRC.4
Os exames laboratoriais foram avaliados segundo Diretrizes Clínicas para o paciente com DRC:11 albumina (≥ 4 mg/dL), fósforo- P (3,5 a 5,5 mg/dL), potássio- K (3,5 a 5,5 mEq/L), cálcio- Ca (8,4 a 10,2 mg/dLmg) e kt/v (≥ 1,2).
As análises estatísticas foram feitas no SPSS 23.0. Dividiu-se a amostra em dois grupos: tempo em HD < 3 anos; e ≥ 3 anos. Para a verificar a normalidade, utilizou-se teste de Shapiro Wilk, e para comparações das variáveis entre os dois grupos, teste T de Student. O nível de significância foi fixado em menor que 5% (p < 0,05).
A amostra de 36 pessoas foi constituída por uma população predominantemente masculina (55,6%), com idade média de 59,57 ± 13,68 anos, sendo 44,4% idosos. O tempo médio de HD foi de 6,64 ± 5,85 anos.
Em relação ao estado nutricional, segundo o IMC, observa-se média de 25,2 ± 4,28 kg/m2 (adulto 24,57 ± 5,09 kg/m2; idoso 25,71 ± 3,57 kg/m2), sendo que 38,9% apresentam excesso de peso e 11,1% baixo peso. Ao analisar os resultados da AMB, PCT e CB, verifica-se que 22,3% apresentaram depleção de tecido adiposo subcutâneo e 58,4% depleção de massa proteica somática. A média da CC foi de 87,23 ± 12,27 cm, sendo que 44,4% dos participantes apresentaram grau elevado ou muito elevado de risco DCV.
A média de albumina sérica foi de 3,83 ± 0,28 g/dL e 6,7% dos sujeitos apresentavam depleção leve deste marcador. A média do kt/v foi de 1,55 ± 0,43, sendo que 16,7% estavam abaixo do valor de referência. Em relação aos valores de K, P e Ca, as médias foram de 5,57 ± 0,7 mEq/L, 5,16 ± 1,54 mg/dL e 8,89 ± 0,82 mg/dL, respectivamente, indicando valores acima da recomendação quanto ao K.
O consumo calórico médio foi de 1280,37 ± 556,16 Kcal/dia (20,52 ± 11,74 Kcal/kg/dia). A análise de macro e micronutrientes aponta um consumo reduzido de proteínas, com média de 0,87 ± 0,50 g/kg. P 647,42 ± 357,20 mg; K 1433,47 ± 565,66 mg e Ca 269,3 ± 309,95 mg.
A Tabela 1 apresenta a relação entre as médias de marcadores antropométricos, bioquímicos e dietéticos segundo o tempo de HD, considerando dois grupos: tempo de HD < 3 anos e ≥ 3 anos. Considerando o tempo em HD, houve diminuição da massa proteica somática com o aumento do tempo em HD. Quanto às características dietéticas, notou-se que no grupo de pacientes com maior tempo em HD houve um aumento da média do consumo de proteínas/kg de peso, calorias, P e K, com p = 0,04 em relação à média do consumo de proteínas/kg de peso e fósforo p = 0,045.
Tabela 1 Média e Desvio Padrão de marcadores antropométricos, bioquímicos e dietéticos, segundo o tempo em diálise, de 36 pacientes hemodialíticos, atendidos no Centro de Hemodiálise do Hospital Universitário de Juiz de Fora (MG)
Variáveis | Médias Tempo em HD < 3 anos (n = 11) | Médias Tempo em HD > 3 anos (n = 25) | p |
---|---|---|---|
Avaliação Antropométrica | |||
IMC | 26,89 ± 4,12kg/m2 | 24,46 ± 4,22 kg/m2 | 0,121 |
CB | 27,90 ± 3,53 cm | 25,52 ± 3,05 cm | 0,069 |
DCT | 22,91 ± 10,62 mm | 21,88 ± 10,26 mm | 0,790 |
CMB | 20,71 ± 2,13 cm | 18,64 ± 2,73 cm | 0,022* |
AMB | 34,49 ± 7,17 cm2 | 28,26 ± 8,64 cm2 | 0,034* |
CC | 92,09 ± 12,44 cm | 85,10 ± 11,81 cm | 0,132 |
Recordatorio 24 horas | |||
Kcal Totais | 1118,22 ± 643,48 kcal | 1351,75 ±511,16 kcal | 0,303 |
PTN/kg | 0,64 ± 0,36 g/kg | 0,98 ± 0,53 g/kg | 0,040* |
Fósforo | 7,32 ± 5,23 mg | 11,63 ± 6,43 mg | 0,045* |
Potássio | 1332,39 ± 764,88 mg | 1477,95 ±464,89 mg | 0,568 |
Cálcio | 388,12 ± 401,44 mg | 376,25 ± 270,01 mg | 0,930 |
Exames Bioquímicos* | |||
Albúmina | 3,82 ± 0,14 mg/dL | 3,83 ± 0,32 mg/dL | 0,899 |
Fósforo | 4,92 ± 1,43 mg/dL | 5,26 ± 1,61 mg/dL | 0,569 |
Potássio | 5,38 ± 0,84 mEq/L | 5,65 ± 0,65 mEq/L | 0,419 |
Cálcio | 8,65 ± 0,65 mg/dL | 8,99 ± 0,87 mg/dL | 0,257 |
Kt/v | 1,32 ± 0,41 | 1,65 ± 0,41 | 0,061 |
*p < 0,05. IMC: índice de Massa Corporal. CB: Circunferência do Braço. DCT: Dobra Cutânea Tricipital. CMB: Circunferência Muscular do Braço. AMB: Área Muscular do Braço. CC: Circunferência da cintura. # 6 não realizaram avaliação bioquímica, 2 indivíduos pertencentes ao grupo "Tempo em HD < 3 anos".
As medidas de composição corporal tendem a diminuir com o aumento do tempo em HD, concluindo que a HD prolongada está associada a um significativo declínio de parâmetros nutricionais.6
No presente estudo, o baixo peso, segundo o IMC, foi observado em 11,10% dos pacientes, semelhante ao estudo realizado em Maringá (PR), 2008,4 com 12,90% (p < 0,05). As médias percentuais de CMB e AMB estão abaixo da faixa de normalidade, sugerindo redução da massa magra e piora do estado nutricional após 3 anos de tratamento.
Os pacientes em HD são susceptíveis a DEP, devido a vários fatores, incluindo ingestão alimentar insuficiente.3 Na população deste estudo, a ingestão alimentar calórica e proteica esteve abaixo das recomendações nutricionais, incluindo esses indivíduos em grupos de risco para DEP. Resultado semelhante foi encontrado em um estudo realizado em Porto Alegre (RS),12 no qual a ingestão energética e proteica diária estava abaixo do recomendado, em torno de 28 ± 10 kcal/kg/dia e 1,1 ± 0,4 g ptn/kg, respectivamente.
Em um estudo realizado no município de Guarulhos (SP), em 2013,13 a partir de registro alimentar de 3 dias, foram identificados consumo médio de energia, proteína, fósforo e potássio inferiores às recomendações estabelecidas, assim como no presente estudo. Entretanto, em relação ao estado nutricional, este estudo indicou, pelo IMC, que a maioria dos pacientes apresentou peso corporal adequado,13 diferentemente dos dados aqui encontrados.
Os parâmetros bioquímicos são utilizados na avaliação do estado nutricional como uma avaliação complementar.13 Em relação a estes, o presente estudo não revelou alterações significativas entre os dois grupos comparados. Observou-se albumina sérica abaixo do valor de referência nos dois grupos de pacientes, podendo indicar estado nutricional debilitado.
A albumina sérica tem sido o parâmetro mais comumente utilizado como marcador do estado nutricional de pacientes em HD, pelo fato da DEP causar diminuição na síntese de albumina. No entanto, esta proteína plasmática não deve ser utilizada como critério único para este propósito, já que vários fatores como idade, comorbidades, hipervolemia e perdas corpóreas podem influenciar em suas concentrações séricas.14
O Kt/V é um método para analisar a eficiência da diálise. Quando esse marcador se encontra em valores menores que o esperado, é preciso ficar atento ao aumento do risco nutricional e de mortalidade.6 Neste trabalho, os valores de Kt/V estavam adequados nos dois grupos, apresentando-se melhor no grupo após 3 anos de HD. No entanto, essa melhora não revelou significância estatística entre os grupos, se relacionando, entretanto, a uma maior expectativa de vida do paciente.
Os parâmetros antropométricos se modificam mais rápido que os bioquímicos e alimentares. Devido ao fato da HD ser um evento catabólico, resultante da inflamação, hiperparatiroidismo secundário, acidose metabólica e das perdas de nutrientes para o banho de diálise,10 é comum pacientes em HD apresentarem modificações nas medidas antropométricas, principalmente se o consumo alimentar não atender o recomendado para o paciente. Talvez os resultados bioquímicos e alimentares precisem de mais tempo para expressar modificações estatisticamente significativas.
Em relação aos métodos de análise antropométrica, o estudo, além de usar as medidas de IMC, usou outras variáveis antropométricas, mostrando-se mais preciso para esta análise, já que o IMC não expõe o nível de perda de massa muscular.
Na literatura, a discussão sobre a relação do tempo de HD e a alteração do estado nutricional ainda é incipiente, tornando-se importantes os dados apresentados no presente artigo. A HD contribui para a depleção nutricional do paciente ao longo do tempo, portanto, o acompanhamento nutricional faz-se necessário.
O presente estudo apresentou limitações, em relação à não aplicação do Registro Alimentar de 3 dias, já que este tipo de inquérito alimentar pode representar melhor a ingestão habitual da população, quando comparado ao Recordatório Alimentar de 24 horas, apesar desse último ser adotado pelo hospital e ser um bom instrumento na prática clínica.13
Conclui-se que os pacientes em HD são um grupo de risco para DEP, uma vez que apresentaram uma alimentação inadequada em relação às recomendações nutricionais. O aumento do tempo em HD contribuiu para a depleção da massa muscular, o que indica piora do estado nutricional.
Diante disso, pode-se ressaltar que o acompanhamento nutricional é indispensável para a manutenção de um bom estado nutricional, considerando o tempo em HD.