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Análise do Uso dos Critérios de Indicação de Coronariografia em Dois Serviços de Cardiologia do Sul do Brasil

Análise do Uso dos Critérios de Indicação de Coronariografia em Dois Serviços de Cardiologia do Sul do Brasil

Autores:

Luis Sérgio Carvalho Luciano,
Roberto Léo da Silva,
Ozir Miguel Londero Filho,
Leandro Waldrich,
Luciano Panata,
Ana Paula Trombetta,
Julio Cesar Preve,
Tammuz Fattah,
Luiz Carlos Giuliano,
Luiz Eduardo Koenig São Thiago

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.5 São Paulo maio 2019 Epub 14-Mar-2019

https://doi.org/10.5935/abc.20190055

Resumo

Fundamento:

Apesar de sua grande relevância, não existem trabalhos em nosso país que avaliem a aplicação das diretrizes de 2012 para uso apropriado do cateterismo cardíaco diagnóstico.

Objetivo:

Analisar a apropriação das coronariografias realizadas em dois hospitais da região sul do Brasil.

Métodos:

Estudo transversal multicêntrico, que analisou as indicações, resultados e propostas de tratamento de 737 coronariografias realizadas em um hospital terciário com múltiplas especialidades (Hospital A) e um hospital cardiológico terciário (Hospital B). Foram incluídas coronariografias eletivas ou de urgência, com exceção dos casos de infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST. O nível de significância estatística adotado foi de 5% (p < 0,05).

Resultados:

Do total de 737 coronariografias, 63,9% foram realizadas em pacientes do sexo masculino. A média de idade foi 61,6 anos. A indicação foi síndrome coronariana aguda em 57,1% e investigação de doença arterial coronariana em 42,9% dos casos. Em relação à apropriação, 80,6% foram classificadas como apropriadas, 15,1% ocasionalmente apropriadas e 4,3% raramente apropriadas. O tratamento proposto foi clínico para 62,7%, intervenção coronária percutânea para 24,6% e cirurgia de revascularização miocárdica para 12,7% dos casos. Das coronariografias classificadas como raramente apropriadas, 56,2% foram relacionadas à não realização de provas funcionais prévias e 21,9% apresentaram lesões coronarianas graves. Porém, independentemente do resultado da coronariografia, todos os pacientes nesse grupo foram indicados para tratamento clínico.

Conclusão:

Observamos baixo número de coronariografias raramente apropriadas em nossa amostra. A recomendação da diretriz nesses casos foi adequada, sendo que nenhum paciente necessitou de tratamento de revascularização. A maior parte desses casos se deve à não realização de provas funcionais.

Palavras-chave: Angiografia Coronária; Doença da Artéria Coronariana/diagnóstico por imagem; Síndrome Coronariana Aguda; Intervenção Coronária Percutânea; Estudo Multicêntrico; Epidemiologia

Abstract

Background:

Despite its great relevance, there are no studies in our country evaluating the application of the 2012 guidelines for the appropriate use of cardiac diagnostic catheterization.

Objective:

To analyze the adequacy of coronary angiography performed in two hospitals in the southern region of Brazil.

Methods:

This is a multicenter cross-sectional study, which analyzed indications, results and proposals for the treatment of 737 coronary angiograms performed in a tertiary hospital with multiple specialties (Hospital A) and a tertiary cardiology hospital (Hospital B). Elective or emergency coronary angiographies were included, except for cases of acute myocardial infarction with ST segment elevation. The level of statistical significance adopted was 5% (p < 0.05).

Results:

Of the 737 coronary angiograms, 63.9% were performed in male patients. The mean age was 61.6 years. The indication was acute coronary syndrome in 57.1%, and investigation of coronary artery disease in 42.9% of the cases. Regarding appropriation, 80.6% were classified as appropriate, 15.1% occasionally appropriate, and 4.3% rarely appropriate. The proposed treatment was clinical for 62.7%, percutaneous coronary intervention for 24.6%, and myocardial revascularization surgery for 12.7% of the cases. Of the coronary angiographies classified as rarely appropriate, 56.2% were related to non-performance of previous functional tests, and 21.9% showed severe coronary lesions. However, regardless of the outcome of coronary angiography, all patients in this group were indicated for clinical treatment.

Conclusion:

We observed a low number of rarely appropriate coronary angiograms in our sample. The guideline recommendation in these cases was adequate, and no patient required revascularization treatment. Most of these cases are due to non-performance of functional tests.

Keywords: Coronary Angiography; Coronary Artery Disease/diagnostic imaging; Acute Coronary Syndrome; Percutaneous Coronary Intervention; Multicenter Study; Epidemiology

Introdução

O manejo da doença arterial coronariana (DAC), principal causa de mortalidade do mundo desenvolvido, é baseado no uso de procedimentos diagnósticos e terapêuticos. Seis décadas após a primeira coronariografia seletiva, realizada pelo Dr. Sones em circunstâncias improváveis,1 a angiografia coronária continua sendo o padrão ouro para diagnóstico da DAC,2 embora métodos não invasivos venham ganhando espaço progressivamente.3

Avanços na tecnologia médica foram acompanhados de aumento dos custos, motivando a pesquisa sobre questões de custo-efetividade. A identificação do uso exagerado de procedimentos médicos trouxe consigo questionamentos de quando serão realmente necessários.4 Em 2011 foi observada uma queda significativa na taxa de angioplastias inapropriadas no estado americano de Nova Iorque após o governo anunciar que o pagamento seria vinculado à apropriação. Ou seja, a questão financeira influenciou a seleção dos pacientes para angioplastia. Análises de uso apropriado devem acompanhar a evolução das formas de financiamento.5

No esforço de apresentar critérios de uso racional dos serviços cardiológicos, o American College of Cardiology Foundation e outras onze entidades médicas publicaram a diretriz de 2012 para uso apropriado do cateterismo cardíaco diagnóstico. Essa recomendação tem o potencial de impactar as decisões clínicas, a qualidade da assistência médica e as políticas de saúde por meio do uso eficiente dos recursos.6

No Brasil essa questão foi previamente estudada com a diretriz de 1999. Foi publicada em 2005 a análise de 145 coronariografias em pacientes com suspeita de doença isquêmica estável. Observou-se que 34,5% das indicações foram apropriadas e 65,5% incertas ou inapropriadas.7 Também com base na diretriz de 1999, um grupo italiano estudou as indicações de 460 coronariografias, com nenhuma angiografia inapropriada em sua amostra.8 Já sob as perspectivas da diretriz de 2012 foram avaliadas as indicações de coronariografias no estado de Nova Iorque9 e em uma grande coorte canadense de pacientes com suspeita de DAC estável.10 Os resultados na literatura são discordantes quanto à validação da diretriz, gerando preocupação a respeito de sua confiabilidade para guiar a tomada de decisões.10

O objetivo desse estudo é analisar a apropriação das coronariografias realizadas em dois hospitais da região sul do Brasil de acordo com a diretriz de 2012.

Métodos

Estudo observacional, transversal e multicêntrico. Os dois centros executam juntos mais de 1.700 procedimentos por ano, sendo eles um hospital terciário com múltiplas especialidades (Hospital A) e um hospital cardiológico terciário (Hospital B). Foram incluídas todas as coronariografias eletivas ou de urgência, no período de maio a outubro de 2016. Foram excluídos os cateterismos realizados nos casos de infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST. As informações foram inseridas em um banco de dados no momento da realização do procedimento. O trabalho foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa das instituições envolvidas.

Todas as indicações foram classificadas como apropriadas, ocasionalmente apropriadas ou raramente apropriadas, de acordo com a terminologia atual11 e respeitando as diretrizes para uso apropriado do cateterismo cardíaco diagnóstico de 2012. Nessa diretriz as indicações se dividem em três grandes grupos: 1. Avaliação de DAC; 2. Avaliação por condições outras que não DAC (doenças valvares, pericárdicas ou cardiomiopatias); 3. Cateterismo cardíaco direito. A diretriz contempla ao todo 102 possíveis indicações, que foram classificadas por um escore que combina medicina baseada em evidências e experiência prática dos membros de um painel técnico. Cada indicação recebeu um escore médio de 1 a 9, sendo classificada como apropriada quando entre 7 e 9, ocasionalmente apropriada quando entre 4 e 6 e raramente apropriada quando entre 1 e 3.6

A análise também incluiu idade, sexo, quadro clínico, resultado da coronariografia quanto à presença de doença obstrutiva e a proposta de tratamento.

O quadro clínico foi simplificadamente caracterizado como síndrome coronariana aguda (SCA) ou como um quadro estável, que englobou todos os pacientes que não se enquadraram no primeiro grupo. A SCA foi caracterizada por apresentação com dor torácica típica em repouso ou progressiva, associada ou não a alteração eletrocardiográfica sugestiva de isquemia (infradesnivelamento do segmento ST e/ou alteração na onda T), podendo ou não estar associada a alterações de marcadores de necrose miocárdica.12

De modo a verificar se a recomendação da diretriz prediz adequadamente o resultado angiográfico e perspectiva terapêutica, o resultado da coronariografia foi classificado de acordo com a extensão da DAC grave e foi documentada a proposta de tratamento para cada caso.

Foi considerada grave uma redução maior ou igual a 50% no diâmetro da luz do tronco da artéria coronária esquerda (TCE) e maior ou igual a 70% para os demais vasos, por avaliação angiográfica visual ou por angiografia quantitativa, escolhendo-se a projeção em que a lesão se mostrou mais grave.11,13

Os pacientes portadores de lesão grave de TCE foram assim classificados independentemente da presença de outras lesões graves.

A proposta de tratamento foi definida pelo hemodinamicista responsável após a realização da coronariografia, podendo ser ela de tratamento clínico, angioplastia coronariana ou cirurgia de revascularização miocárdica, conforme dados clínicos disponíveis e resultado anatômico encontrado em exame.

A análise dos dados foi realizada de forma a também possibilitar a comparação entre dois serviços com diferentes perfis, sendo o Hospital A um hospital geral e o Hospital B um centro de referência para alta complexidade em cardiologia no estado, com um grande fluxo de pacientes coronariopatas em seu serviço de emergência. Os dois serviços atendem exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Análise estatística

Para análise dos dados, foi utilizado o programa IBM SPSS Statistics 23 (IBM Corp. Released 2015. IBM SPSS Statistics for Windows, Version 23.0. Armonk, NY: IBM Corp.). Os resultados foram expressos em números e proporção (absoluta e relativa), para as variáveis categóricas, e em medidas de tendência central (média) e de dispersão (desvio-padrão), para variáveis contínuas. O teste do qui-quadrado foi utilizado para estudar possíveis associações entre variáveis categóricas. Para comparação entre variáveis contínuas, foi utilizado o teste t de Student não pareado. Foi aplicado o teste Kolmogorov-Smirnov para avaliar o pressuposto de normalidade amostral. O nível de significância estatística adotado foi de 5%, considerando um intervalo de confiança de 95%.

Resultados

Do total de 737 coronariografias analisadas, 76,8% foram realizadas no Hospital B, 63,9% em pacientes do sexo masculino. A média geral de idade foi 61,6 anos. A indicação da coronariografia foi SCA em 57,1% e investigação de DAC em 42,9% dos casos. Em relação à apropriação, 80,6% das coronariografias foram classificadas como apropriadas, 15,1% ocasionalmente apropriadas e 4,3% raramente apropriadas. Observamos que 41,2% das coronariografias não evidenciaram DAC grave, 27,4% DAC grave uniarterial, 17,2% biarterial, 11,3% triarterial e 2,8% lesão grave de TCE. O tratamento proposto foi clínico para 62,7% dos pacientes, intervenção coronária percutânea para 24,6% e cirurgia de revascularização miocárdica para 12,7%.

Não houve diferença estatisticamente significativa na prevalência de pacientes dos sexos masculino ou feminino entre as duas instituições (Tabela 1). A média de idade foi 59,1 anos no Hospital A e 62,3 anos no Hospital B (p < 0,05).

Tabela 1 Distribuição dos pacientes entre as duas instituições de acordo com sexo, apresentação clínica, classificação de uso apropriado, resultado da coronariografia e tratamento 

Origem
Hospital A Hospital B
Contagem n = 171 % Contagem n = 566 %
Sexo Feminino 70 40,9% 196 34,6% p = 0,132
Masculino 101 59,1% 370 65,4%
Clínica SCA 46 26,9% 375 66,3% p < 0,001
Estável 125 73,1% 191 33,7%
Avaliação da Apropriação Raramente Apropriado 10 5,8% 22 3,9% p = 0,084
Ocasionalmente Apropriado 61 35,7% 50 8,8% p < 0,001
Apropriado 100 58,5% 494 87,3% p < 0,001
Resultado Normal 90 52,6% 214 37,8% p = 0,008
Uniarterial 38 22,2% 164 29,0% p = 0,078
Biarterial 27 15,8% 100 17,7% p = 0,568
Triarterial 12 7,0% 71 12,5% p = 0,045
TCE 4 2,3% 17 3,0% p = 0,647
Tratamento Clínico 122 71,3% 340 60,1% p < 0,001
Angioplastia 31 18,1% 150 26,5% p = 0,025
Cirúrgico 18 10,5% 76 13,4% p = 0,318

SCA: síndrome coronariana aguda; TCE: tronco da artéria coronária esquerda.

* Análises de significância estatística realizadas com aplicação do teste qui-quadrado.

Todos os pacientes com SCA têm indicação apropriada para coronariografia. Nesse grupo de pacientes não houve diferença estatisticamente significativa em relação à distribuição por sexo, resultado da coronariografia e tratamento (Tabela 2).

Tabela 2 Distribuição dos pacientes com SCA entre as duas instituições de acordo com sexo, resultado da coronariografia e tratamento 

Origem
Hospital A Hospital B
Contagem n = 46 % Contagem n = 375 %
Sexo Feminino 19 41,3% 124 33,1% p = 0,266
Masculino 27 58,7% 251 66,9%
Resultado Normal 10 21,7% 96 25,6% p = 0,569
Uniarterial 12 26,1% 126 33,6% p = 0,305
Biarterial 15 32,6% 81 21,6% p = 0,093
Triarterial 6 13,0% 57 15,2% p = 0,698
TCE 3 6,5% 15 4,0% p = 0,424
Tratamento Clínico 20 43,5% 188 50,1% p = 0,394
Angioplastia 19 41,3% 130 34,7% p = 0,374
Cirúrgico 7 15,2% 57 15,2% p = 0,997

SCA: síndrome coronariana aguda; TCE: Tronco da Artéria Coronária Esquerda.

* Análises de significância estatística realizadas com aplicação do teste qui-quadrado.

Já entre os pacientes estáveis houve menor proporção de pacientes com indicações apropriadas no Hospital A em relação ao Hospital B e maior proporção de ocasionalmente apropriados. Entre os estáveis também não foi observada diferença em relação à distribuição por sexo, resultado e tratamento. Observou-se uma maior incidência de indicação de exames pré-operatórios de cirurgia cardíaca no Hospital B quando comparado ao Hospital A, e um predomínio de investigação de DAC no Hospital A (Tabela 3).

Tabela 3 Distribuição dos pacientes em investigação de DAC entre as duas instituições de acordo com sexo, avaliação da apropriação, motivo de indicação, resultado da coronariografia e tratamento 

Origem
Hospital A Hospital B
Contagem n = 125 % Contagem n = 191 %
Sexo Feminino 51 40,8% 72 37,7% p = 0,580
Masculino 74 59,2% 119 62,3%
Avaliação da Apropriação Apropriado 54 43,2% 119 62,3% p < 0,001
Ocasionalmente Apropriado 61 48,8% 50 26,2% p < 0,001
Raramente Apropriado 10 8% 22 11,5% p = 0,317
Motivo de Indicação Diagnóstico de DAC 97 77,6% 114 59,7% p < 0,001
Reavaliação de DAC 14 11,2% 33 17,3% p = 0,146
Pré-Op. de Cirurgia Cardíaca 6 4,8% 40 20,9% p < 0,001
Pré-Op. de Cirurgia Não Cardíaca 8 6,4% 4 2,1% p = 0,049
Resultado Normal 80 64% 118 61,8% p = 0,690
Uniarterial 26 20,8% 38 19,9% p = 0,844
Biarterial 12 9,6% 19 9,9% p = 0,919
Triarterial 6 4,8% 14 7,3% p = 0,366
TCE 1 0,8% 2 1% p = 0,824
Tratamento Clínico 102 81,6% 152 79,6% p = 0,658
Angioplastia 12 9,6% 20 10,5% p = 0,801
Cirúrgico 11 8,8% 19 9,9% p = 0,733

DAC: doença arterial coronariana; TCE: tronco da artéria coronária esquerda.

* Análises de significância estatística realizadas com aplicação do teste qui-quadrado.

Dos 737 pacientes, 32 (4,3%) tiveram sua coronariografia classificada como raramente apropriada. Desses, 18 casos (56,2%) foram relacionados a não realização de provas funcionais prévias, seis (18,8%) se tratavam de pacientes submetidos a revascularização prévia assintomáticos ou com sintomas estáveis, seis (18,8%) pacientes estáveis em pré-operatório de cirurgia não cardíaca assintomáticos com capacidade funcional ≥ 4 METS, um (3,1%) com DAC conhecida em tratamento clínico e achados de baixo risco em testes não invasivos ou sintomas estáveis e um (3,1%) com estenose valvar aórtica leve ou moderada de valva nativa ou protética e assintomático no que diz respeito à doença valvar.

Dentre os classificados como raramente apropriados, sete casos (21,9%) apresentaram lesões coronarianas graves, porém, independentemente do resultado da coronariografia, todos os pacientes nesse grupo foram indicados para tratamento clínico. Dos sete pacientes, em quatro (57,1%) foram observadas lesões em vasos de fino calibre (< 2 mm), em dois (28,6%) lesões distais em vasos de fino calibre e um (14,3%) foi submetido à coronariografia por apresentar estenose valvar aórtica de grau moderado estando assintomático do ponto de vista cardiológico.

Em 13,5% dos classificados como ocasionalmente apropriados e 43,8% dos apropriados a opção foi por revascularização percutânea ou cirúrgica.

Discussão

O equilíbrio entre custo e efetividade é necessário uma vez que as fontes de financiamento estão pressionadas pelo aumento de demanda, tecnologia e, consequentemente, recursos. O uso racional desses recursos faz parte da responsabilidade social do médico.4 Ainda assim, muitos cardiologistas têm a crença de que a angioplastia é benéfica para pacientes com DAC estável e a abordagem continua sendo a busca por isquemia. Não é surpreendente que uma minoria substancial de cardiologistas acredite que angioplastia e implante de stent coronário previnam infarto do miocárdio. Essas crenças são vistas na prática com a má aplicação dos recursos: estima-se que até metade das angioplastias eletivas podem ser inapropriadas.14 Essa realidade também se aplica aos métodos diagnósticos, como a coronariografia.7,9

Historicamente há uma grande variabilidade internacional no uso apropriado do cateterismo cardíaco diagnóstico. Essa questão foi estudada em mais de dez países entre os anos de 1987 e 2006, com índices de uso apropriado entre 34,5%7 e 91%,15 com a maioria dos estudos mostrando taxas de apropriação superiores a 72%.16

Diferentemente de outros grandes estudos retrospectivos multicêntricos que analisaram a diretriz para uso apropriado do cateterismo cardíaco diagnóstico de 2012,9,10 o presente estudo valida a diretriz quando relacionamos a adequação da coronariografia e o tratamento. Outro aspecto relevante é a possibilidade de analisar as características de duas instituições com perfis diferentes (hospital terciário geral e hospital terciário cardiológico) dentro de uma mesma microrregião. Além disso, apesar da diretriz de 2012 ainda empregar a classificação em apropriado, incerto e inapropriado, optamos por utilizar a classificação mais atual entre apropriado, ocasionalmente apropriado e raramente apropriado, empregada nas diretrizes mais recentes.11

Incluímos em nossa análise os casos de SCA, não incluídos em outros trabalhos, por se tratar do subgrupo de pacientes que respondem pela principal diferença entre os centros estudados e pela relevância de documentar estas características institucionais. Os casos de SCA não estratificam qualitativamente as indicações de coronariografia, uma vez que, nesses casos, todas são classificadas como apropriadas. Observamos a predominância esperada desses casos no hospital cardiológico (Hospital B), e a maior prevalência de pacientes estáveis no hospital geral (Hospital A) (Tabela 1). Para analisar a qualidade das indicações de coronariografia foi realizada a análise do subgrupo de pacientes em investigação de DAC.

Os resultados da análise de uma grande coorte retrospectiva com 48.336 pacientes com suspeita de DAC estável da região de Ontário, Canadá, foram publicados em 2015.10 No estudo canadense foi observada uma taxa de 58,2% de casos apropriados, 31% ocasionalmente apropriados e 10,8% raramente apropriados, proporções similares às que encontramos em nossa amostra de pacientes em investigação de DAC, com 54,7% classificados como apropriados, 35,1% ocasionalmente apropriados e 10,2% raramente apropriados.

Apesar do aparente equilíbrio na proporção das indicações, enquanto 18,9% dos pacientes classificados como raramente apropriados no estudo canadense foram submetidos a procedimentos de revascularização, 100% dos pacientes assim classificados em nosso estudo foram encaminhados para tratamento clínico a despeito da presença de lesões coronarianas graves. Isso pode ser explicado pela presença de lesões distais, em vasos finos ou de menor importância que tornam o tratamento clínico a melhor opção nesse contexto. Essa informação valida a aplicação da diretriz em nossa população, na medida em que pacientes com indicação raramente apropriada para coronariografia não teriam indicação de tratamento de revascularização complementar ao medicamentoso ótimo.

Outro grande estudo retrospectivo realizado no estado de Nova Iorque analisou as indicações de 8.986 coronariografias e observou que 24,9% de seus casos foram classificados como raramente apropriados,9 número consideravelmente maior que os 10,8% e 10,2% no estudo canadense e em nossa amostra, respectivamente. Para explicar o motivo de aproximadamente um quarto dos casos ter sido classificado como raramente apropriado, argumentou-se que no momento da realização das coronariografias a diretriz para uso apropriado do cateterismo cardíaco diagnóstico de 2012 ainda não fora publicada. Porém, a situação é semelhante à da coorte canadense, que teve suas coronariografias realizadas entre 2008 e 2011, e apresentou proporções mais modestas de coronariografias raramente apropriadas. Uma parcela significativa das coronariografias raramente apropriadas é enquadrada nessa classificação devido a não realização de provas funcionais prévias,16,17 situação responsável por 56,2% desses casos em nossa amostra. A realização de provas funcionais promoveria a reclassificação destes casos, aprimorando o uso da coronariografia.6,17,18

Quando observamos as diferenças entre as duas instituições envolvidas no presente estudo, no subgrupo de pacientes em investigação de DAC, fica evidente uma maior proporção de coronariografias com indicação apropriada no Hospital B e maior proporção de ocasionalmente apropriadas no Hospital A (Tabela 3). A maior proporção de exames realizados como pré-operatório de cirurgia cardíaca no Hospital B, indicação classificada como apropriada pela diretriz,6 explica parte desta diferença. A realização de cirurgias cardíacas no Hospital B, instituição dedicada à cardiologia, aparece como o fator principal para a diferença de apropriação entre as duas instituições.

Nosso estudo apresenta como limitações o tamanho reduzido de sua amostra, impossibilitando uma análise pormenorizada de cada indicação da diretriz; e a não realização de seguimento dos pacientes para avaliação prognóstica relacionada ao resultado e tratamento. Além disso, mais de 50% de nossa amostra são casos de SCA, situação em que a estratificação invasiva é apropriada de acordo com a diretriz, limitando a análise da qualidade da indicação nesse cenário. Os resultados representam a realidade dos pacientes atendidos em dois hospitais públicos localizados na região sul do Brasil. São necessários novos estudos para avaliar as indicações das coronariografias nos demais contextos e regiões do país.

Conclusão

Concluímos que nossa amostra apresenta índices de apropriação similares aos da literatura, com uma pequena taxa de procedimentos raramente apropriados. A recomendação da diretriz em casos raramente apropriados foi adequada em nosso estudo, com nenhum paciente desse grupo necessitando de tratamento de revascularização. A maior parte desses casos se deve à não realização de provas funcionais prévias.

A diferença entre os dois hospitais, geral e cardiológico, foi inerente à população atendida, com similares índices de uso apropriado ajustados.

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