versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.23 supl.1 Botucatu 2019 Epub 18-Abr-2019
http://dx.doi.org/10.1590/interface.170896
As discussões em torno do currículo médico ganharam grande impulso no último século, especialmente após o relatório Flexner, de 1910, que influenciou a reformulação do ensino médico em boa parte do mundo1. Esse modelo serviu de base para a organização dos currículos, principalmente com a criação de disciplinas e já com um olhar voltado para a necessidade de conhecimentos preventivos e coletivos2. Flexner reconheceu que a educação médica tem de configurar-se em resposta às mudanças científicas, circunstâncias sociais e econômicas. A flexibilidade e liberdade de mudar os currículos, adaptando-se às demandas sociais locais, também faziam parte de sua mensagem3.
A formação e o perfil dos egressos no Brasil até os anos 2000 foram voltados predominantemente a um modelo hospitalocêntrico e curativo4. Em resposta a isso, ocorreu a articulação entre Ministério da Saúde, Ministério da Educação e algumas entidades médicas para discutir a reformulação da formação médica. Esses debates levaram, em 2001, à criação de documentos como as DCN5. Desde então, diversos esforços foram realizados para tornar os cursos de Medicina mais voltados às necessidades da população e ao ensino na APS6. No entanto, a pouca valorização das atividades de ensino fora dos espaços da universidade ou hospitalares e o ainda insuficiente conhecimento do corpo docente sobre as atividades na APS representaram desafios para uma mudança curricular significativa6.
As DCN do curso de Medicina do ano de 20014 já representaram um passo importante para estabelecer um perfil de egresso mais adequado às necessidades da população e, no ano de 2014, após as discussões em torno da Lei do Mais Médicos7, foram divulgadas as novas DCN para o curso de Medicina8. Entre as mudanças, ressaltou-se a necessidade de uma formação generalista e com ênfase nos serviços de APS e urgência/emergência. Reforçou-se também que os conteúdos fundamentais do curso estivessem relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade8.
A APS é a porta preferencial de entrada do sistema de saúde e países com uma orientação mais forte para este nível de atenção possuem melhores indicadores de saúde9,10. No entanto, para o pleno funcionamento desta, esperam-se profissionais que saibam atender às pessoas ao longo do tempo, com conhecimento das diversas condições, alta resolutividade e que coordenem as atenções sofridas nos diversos níveis11.
Nesse contexto, analisamos a Faculdade de Medicina (FM) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Esta iniciou suas atividades no ano de 1960 e já graduou mais de 5.000 médicos; a maioria deles exercendo suas atividades na própria região, inclusive nas áreas de gestão pública e privada12. Realizou diversos esforços para adequar o ensino à população e, já na década de 1970, implementou um estágio rural para o ensino de uma medicina comunitária. No ano de 2002, a FM da UFG realizou uma reforma curricular para se adequar às DCN do ano de 2001 e, além disso, em 2002, aderiu ao Programa de Incentivos às Mudanças Curriculares dos Cursos de Medicina (Promed), em 2005, ao Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde I e II), e, em 2008, ao Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Com a adesão a esses projetos, a instituição passou a ter um enfoque maior em atividades de ensino da saúde na comunidade13.
No ano de 2014, buscando nova adequação às DCN do curso de Medicina, publicou seu novo PPC, ainda em fase de implementação e avaliação. Este determina os princípios norteadores e as expectativas em torno da formação médica na instituição12.
Considerando a necessidade de revisão e adequações curriculares de todas as escolas médicas nacionais com base nas DCN de 2014, o objetivo deste estudo foi, então, analisar e comparar o PPC do curso de Medicina da FM da UFG segundo as determinações das DCN de 2014 e do documento Diretrizes para o Ensino na Atenção Primária à Saúde na Graduação em Medicina14.
Trata-se de uma pesquisa do tipo estudo de caso, de abordagem qualitativa, com dados produzidos por meio de análise documental. Esta, conforme Bardin15, é uma operação ou conjunto de operações que visam representar o conteúdo de um documento em uma forma diferente da original, a fim de facilitar, em um período posterior, a sua consulta e referenciação.
Conforme ilustrado na Figura 1, três documentos foram analisados e dois foram comparados: o “Projeto pedagógico do curso de Medicina da FM da UFG”, publicado no fim de 2014, foi comparado às “Diretrizes curriculares do curso de Medicina”, publicada em 2014.
O documento “Diretrizes para o ensino na Atenção Primária à Saúde na graduação em Medicina”13 também foi analisado para subsidiar e estabelecer as especificações do ensino da APS na graduação. Esse documento foi escolhido por ser considerado uma referência na área; por ter sido construído em conjunto pela Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC); e por haver participação coletiva de diversos especialistas do país nas áreas de educação médica e APS. Foi elaborado com o intuito de apoiar as escolas médicas na estruturação de projetos pedagógicos no contexto da APS.
Em um primeiro momento, foi feita a leitura exploratória das “Diretrizes para o ensino na Atenção Primária à Saúde na graduação em Medicina” e extraídos os temas relacionados ao “o que ensinar” nesse nível de atenção. Após essa etapa, selecionaram-se os 12 temas que tinham correspondência nas DCN de 2014:
Competência para trabalhar em equipe
Capacidade para atuar na atenção primária e conhecer os diversos níveis de atenção à saúde
Conhecimento de ações de gestão e dos serviços de saúde
Competência para trabalhar com educação popular e permanente da equipe
Respeito à autonomia
Capacidade de tomar decisão compartilhada
Utilização de evidências científicas
Decisão baseada em prevalência e incidência
Perfil generalista
Liderança no trabalho multidisciplinar
Responsabilidade social
Integralidade
Realizou-se, então, uma primeira leitura exploratória do PPC, estabelecendo-se, assim, contato e conhecimento do texto12. Nesse documento, encontram-se os princípios e estratégias de avaliação de aprendizagem, duração do curso e estrutura curricular, incluindo a matriz curricular, o elenco dos módulos e os conteúdos de aprendizagem, com as respectivas ementas e cargas horárias10. Todos esses tópicos foram avaliados nesta pesquisa.
Por fim, por meio da análise temática de conteúdo15, buscou-se no PPC os temas previamente escolhidos para posterior descrição e correlação, apresentados nos quadros em resultados (Figura 1).
O estudo foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital das Clínicas da UFG e iniciado após a sua aprovação - Parecer 1.523.208 - em 2016, conforme resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 46, de 12 de dezembro de 2012.
Os quatro temas que resultaram da análise documental são apresentados em quadros, com a descrição e a comparação entre os documentos. O Quadro 1 compara os documentos segundo o perfil do egresso, o Quadro 2 trata da área de atenção à saúde, o Quadro 3 refere-se a aspectos da Gestão em Saúde e o Quadro 4, sobre a Educação em Saúde.
O perfil do profissional descrito no PPC, um médico generalista e adequado às necessidades da sociedade, está em acordo com as DCN. A formação na Atenção Primária e a responsabilidade social são destacadas em ambos (Quadro 1).
Quadro 1 Descrição da análise documental comparativa entre os documentos referentes ao perfil esperado do egresso do curso de Medicina da UFG. Goiânia, 2017.
Diretrizes do ensino na APS | DCN do curso de Medicina de 2014 | Projeto pedagógico curricular de 2014 da FM da UFG |
Perfil generalista | “O graduado em Medicina terá formação geral, humanista, ...” (p. 1) | “A proposta curricular visa à formação de um profissional generalista e mais adequado aos desafios da sociedade moderna.” (p. 12) “O Curso de Medicina da UFG tem como objetivo geral a formação de um profissional generalista [...].” (p. 12) |
Capacidade para atuar na Atenção Primária e conhecer os diversos níveis de atenção à saúde. | “[...] com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo [...]” (p. 1) “Valorização da vida, com a abordagem dos problemas de saúde recorrentes na atenção básica [...]” (p. 3) |
“Estabelecer a inserção do estudante, desde o primeiro ano do curso, em atividades de campo oportunas à formação das habilidades e competências, nos diferentes níveis de atendimento, bem como no gerenciamento administrativo, nos diversos cenários de ensino-aprendizagem necessários ao exercício da prática médica.” (p. 13) “Atuar nos diferentes níveis de atendimento à saúde, com ênfase nos atendimentos primário e secundário [...]” (p. 16) |
Responsabilidade social | “O graduado em Medicina terá formação geral [...] com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano [...].” (p. 1) | “[...] o eixo do desenvolvimento curricular foi construído de acordo com as necessidades de saúde dos indivíduos e das populações, identificadas [...]” (p. 16) “[...] objetivo é tornar a educação do egresso relevante em relação às necessidades da sociedade [...]” (p. 16) |
A formação de um estudante de Medicina com perfil generalista, com conhecimento dos diferentes níveis de atenção à saúde e com responsabilidade social se alinha aos princípios do Sistema Único de Saúde16. Embora as DCN do curso de Medicina de 20015 já contemplassem essas orientações, as escolas médicas avançaram lentamente nesse sentido. O ensino médico no país apresentou dificuldade em transformar as tradições e espaços de atuação4. Com a publicação da Lei do Mais Médicos, em 20137, instituiu-se a obrigatoriedade de os cursos de Medicina acompanharem as DCN. Em função disso, espera-se agora mais transformações no ensino médico brasileiro e na universidade analisada.
Para corroborar essas orientações e buscando experiências e olhares de outros países, é importante citar também que a Organização Mundial de Saúde recomenda que cerca de 80% das demandas em saúde sejam resolvidas na APS17 e que, no clássico estudo “Ecologia dos Serviços de Saúde”, de White, de 196118, replicado e confirmado em 2001 por Green19, observou-se que menos de 5% das pessoas que procuram atendimento médico necessitam de cuidados hospitalares. Esses dados reforçam a necessidade de uma formação com maior enfoque em serviços ambulatoriais, em especial, na APS.
No Quadro 2, foram abordados temas relacionados à área Atenção à Saúde, como o cuidado centrado na pessoa, família e comunidade; prevenção e promoção de saúde; utilização de evidências científicas e competências para trabalhar em equipe; desenvolvimento de atividades de educação popular; e tomada de decisões compartilhadas.
Quadro 2 Descrição da análise documental comparativa entre os documentos referentes à área de Atenção à Saúde do curso de Medicina da UFG. Goiânia, 2017.
Diretrizes do ensino na APS | DCN do curso de Medicina de 2014 | Projeto pedagógico curricular de 2014 da FM da UFG |
Abordagem centrada na pessoa, família e comunidade | “[...] integralidade e humanização do cuidado por meio de prática médica contínua e integrada com as demais ações e instâncias de saúde, [...], estimulando o autocuidado e a autonomia das pessoas, famílias, grupos e comunidades” (p. 2) “Cuidado centrado na pessoa sob cuidado, na família e na comunidade [...]” (p. 2) “[...] incluir a perspectiva dos usuários, família e comunidade, favorecendo sua maior autonomia na decisão do plano terapêutico.” (p. 8) |
“A primeira aproximação deve se dar entre o estudante e o indivíduo inserido em seu contexto social mais próximo (a família, seu grupo de vizinhança e os focos sociais em que se desenvolvem suas relações sociais).” (p. 15) “Eixo Indivíduo, Família, Comunidade, Sociedade: visa o desenvolvimento de uma prática de ação comunitária, integrada [...], onde o estudante entra em estreita relação com o indivíduo, a família, a comunidade e a sociedade ou em ambientes e estruturas a elas pertencentes” (p. 46) |
Atuação na prevenção e promoção de saúde | “[...] participação na discussão e construção de projetos de intervenção em grupos sociais, orientando-se para melhoria dos indicadores de saúde, considerando sempre sua autonomia e aspectos culturais” (p. 7) “[...] estímulo à inserção de ações de promoção e educação em saúde em todos os níveis de atenção, com ênfase na atenção básica” (p. 7) |
“[...] atuar na proteção, na promoção da saúde e na prevenção de doenças, bem como no tratamento e reabilitação dos problemas de saúde” (p. 24) |
Competência para trabalhar com educação popular e permanente da equipe | “[...] estímulo à inserção de ações de promoção e educação em saúde em todos os níveis de atenção, com ênfase na atenção básica” (p. 7) | NÃO CONSTA EDUCAÇÃO POPULAR “[...] veiculação do conhecimento da área da saúde, cujo alcance envolve a formação do acadêmico, e a troca contínua entre os profissionais integrantes dos órgãos prestadores de serviços, principalmente nas Unidades Básicas de Saúde, alcançando, ainda, a própria comunidade, em um processo de educação e conscientização permanente.” (p. 16) |
Respeito à autonomia do paciente | “[...] estimulando o autocuidado e a autonomia das pessoas, famílias, grupos e comunidades” (p. 2) | NÃO CONSTA |
Capacidade de tomar decisão compartilhada | “[...] incluir a perspectiva dos usuários, família e comunidade, favorecendo sua maior autonomia na decisão do plano terapêutico” (p. 8) | NÃO CONSTA |
Utilização de evidências científicas | “Tomada de decisões, com base na análise crítica e contextualizada das evidências científicas” (p. 3) | “[...] capacidade de tomar decisões [...] baseadas em evidências científicas” (p. 22) |
Decisão baseada em prevalência e incidência | “Análise das necessidades de saúde de grupos de pessoas e as condições de vida e de saúde de comunidades, a partir de dados demográficos, epidemiológicos, sanitários e ambientais, considerando dimensões de risco, vulnerabilidade, incidência e prevalência das condições de saúde [...]” (p. 7) | “[...] diagnosticar e tratar corretamente as principais doenças do ser humano em todas as fases do ciclo biológico, tendo como critérios a prevalência e o potencial mórbido das doenças” (p. 24) |
A necessidade de se considerar a pessoa em sua totalidade, incluindo a família e comunidade, é citada nos dois documentos. No entanto, não se observa no PPC menção ao método clínico centrado na pessoa. Essa abordagem apresenta diversas vantagens sobre o modelo biomédico tradicional, centrado no médico. Ambos os documentos incluem maior satisfação do paciente; maior adesão ao tratamento e melhor resposta à terapêutica; maior satisfação do médico; menor número de processos por erro médico; cuidado mais eficiente; e e menor número de exames complementares e de encaminhamentos a especialistas focais, com redução dos custos para o sistema de saúde e para o paciente20,21.
Prevenção, promoção de saúde e competência para trabalhar com educação popular e da equipe são colocadas como ações esperadas do estudante. A expressão “promoção da saúde” foi utilizada pela primeira vez na década de 1970, pelo ministro da saúde canadense Mark Lalonde em um documento chamado The New Perspectives on the Health of Canadians.22 A influência de fatores ambientais, comportamentos individuais e modos de vida na ocorrência de doenças e na morte foram bastante destacados nesse documento. A Carta de Otawa, publicada pela Organização Mundial de Saúde na primeira conferência internacional de promoção à saúde, reforça essa tese e acrescenta que os indivíduos deverão ser orientados para ter maior controle sobre a própria saúde17,22.
Embora o PPC aborde o conceito de educação permanente e envolva a população nesse sentido, não consta menção ao aprendizado sobre Educação Popular em Saúde (EPS) de forma clara e específica. A EPS reconhece e enfrenta os problemas de saúde dialogando com as classes populares e respeitando a cultura e os saberes trazidos por estas. A atual concepção da EPS, influenciada principalmente pelas publicações de Paulo Freire, rompe com as anteriores práticas hegemônicas de educação em saúde. Estas eram instituídas predominantemente de forma unilateral pelos profissionais de saúde, pouco dialógicas e com caráter essencialmente biomédico23. Torna-se, portanto, de fundamental relevância o ensino desses conceitos no curso de Medicina24.
As DCN colocam a necessidade do estímulo ao autocuidado pelos pacientes, do respeito à autonomia destes e de tomada de decisões compartilhadas. No entanto, merece destaque a ausência no PPC de qualquer termo que remeta ao respeito da autonomia ou decisão compartilhada. Conforme mostrado a seguir, diversas publicações reforçam a orientação das DCN sobre estes assuntos. O Código de Ética Médica, de 200925, em seu artigo XXI, diz que no processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.
A mudança de predomínio de doenças agudas para doenças crônico-degenerativas tornará obrigatória a reincorporação da arte da Medicina, segundo Sullivan, 200326. O objetivo exclusivo de cura e de evitar a morte dá lugar ao objetivo de cuidado das pessoas, considerando a perspectiva destas. O respeito à autonomia do paciente e a valorização de seu ponto de vista em relação à saúde e ao seu cuidado são peças fundamentais do agir médico. O paciente-sujeito está sendo reintroduzido na Medicina26,27.
A tomada de decisões baseada em evidências, considerando a prevalência e incidência dos diversos agravos, aparece nos dois documentos. Essa forma de atuação garante maior resolutividade e efetividade aos tratamentos; atenção à prevenção quaternária; uso racional de recursos e medicamentos; e diminuição dos casos de iatrogenia28,29.
Este tópico trata de assuntos como trabalho em equipe, liderança no trabalho multidisciplinar e conhecimento de ações de gestão. Todas essas competências são recomendadas pelas DCN e pelo PPC (Quadro 3).
Quadro 3 Descrição da análise documental comparativa entre os documentos referentes à área de Gestão em Saúde do curso de Medicina da UFG. Goiânia, 2017.
Diretrizes do ensino na APS | DCN do curso de Medicina de 2014 | Projeto pedagógico curricular de 2014 da FM da UFG |
Competência para trabalhar em equipe | “Trabalho em Equipe, de modo a desenvolver parcerias e constituição de redes, estimulando e ampliando a aproximação entre instituições, serviços e outros setores envolvidos na atenção integral e promoção da saúde. (p. 3) | “Inserção do estudante desde o primeiro ano do curso em atividades práticas, em trabalho em equipe, com interação e atuação multiprofissional, tendo como beneficiários os indivíduos e a comunidade.” (p. 12) “Promover a formação das competências necessárias para trabalho em equipes multiprofissionais, bem como o relacionamento interpessoal e ético em todos os níveis da atuação profissional, [...]” (p. 14) |
Liderança no trabalho multidisciplinar | “Liderança exercitada na horizontalidade das relações interpessoais [...], tendo em vista o bem-estar da comunidade [...]” (p. 3) | “[...] no trabalho em equipe multiprofissional, deverão estar aptos a assumir posições de liderança, sempre tendo em vista o bem-estar da comunidade.” (p. 22) |
Conhecimento de ações de gestão e dos serviços de saúde | “[...] participar de ações de gerenciamento e administração para promover o bem-estar da comunidade, [...]” (p. 2) “Participação social e articulada nos campos de ensino e aprendizagem das redes de atenção à saúde, colaborando para promover a integração de ações e serviços de saúde, provendo atenção contínua, integral, de qualidade...” (p. 3) |
“[...] ter visão do papel social do médico e disposição para atuar em atividades de política e de planejamento em saúde.” (p. 24) “[...] deve estar apto a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho quanto dos recursos físicos e materiais e de informação” (p. 22) |
Integralidade | “[...] promoção da integralidade da atenção à saúde individual e coletiva [...]” (p. 8) | “[...] reconhecer a saúde como direito e atuar de forma a garantir a integralidade da assistência [...]” (p. 24) |
Com o envelhecimento da população e o aumento de condições crônicas, expandiu-se significativamente a complexidade do cuidado30-32. Portanto, torna-se fundamental a formação de profissionais que tenham competência para enfrentar esse novo perfil epidemiológico. Trabalho em equipe e liderança, de forma colaborativa, não hierárquica e coordenada, são competências imprescindíveis neste processo30,33,34.
A liderança, apesar do seu caráter subjetivo, é uma competência que pode ser ensinada. Envolve boa comunicação, saber trabalhar em equipe, planejamento estratégico e tomada de decisões. Espera-se também que o estudante seja capaz de identificar necessidades, traçar objetivos e atuar em equipe, buscando envolver e partilhar o cuidado com outros profissionais35.
O desenvolvimento e conhecimento de ações de gestão - outra competência desejada - envolve a organização de sistemas de saúde e atenção em Saúde Pública. Qualificar o estudante para gerir e conhecer tanto a macroestrutura quanto os serviços e políticas públicas é uma medida que trará profissionais e gestores mais capacitados e envolvidos com a melhoria dos dispositivos da rede de atenção à saúde36.
Uma atuação que busque a integralidade é etapa fundamental do atendimento médico na APS. Ao utilizar a abordagem clínica centrada na pessoa integral, complexa, garante-se que o indivíduo seja visto em sua totalidade, sendo uma estratégia para a concretização de uma assistência voltada para as reais necessidades da população37.
Na parte das DCN referente à área Educação em Saúde, um ponto com interface na APS é destacado: a interdisciplinaridade. Esta encontra-se contemplada no PPC (Quadro 4).
Quadro 4 Descrição da análise documental comparativa entre os documentos referentes à área de Educação em Saúde do curso de Medicina da UFG. Goiânia, 2017.
Diretrizes do ensino na APS | DCN do curso de Medicina de 2014 | Projeto pedagógico curricular de 2014 da FM da UFG |
Interdisciplinaridade | “Promover a integração e a interdisciplinaridade em coerência com o eixo de desenvolvimento curricular, buscando integrar as dimensões biológicas, psicológicas, étnico-raciais, socioeconômicas, culturais, ambientais e educacionais” (p. 12) | “Aspectos éticos, morais, sociais e fisiopatológicos na prática médica com ênfase na interdisciplinaridade. ” (p. 97) |
A interdisciplinaridade, que significa a interação entre diferentes teorias e saberes nos processos de ensino-aprendizagem33, é peça essencial para a formação de um profissional que trabalhe de forma integrada, interprofissional e resolutiva34.
Conforme Frenk et al.30, a interdisciplinaridade e a interprofissionalidade são pilares da última grande geração de reformas no ensino médico que tratam da aquisição de competências para formação de um profissional mais alinhado às necessidades da população.
O novo projeto pedagógico curricular foi construído em um contexto de transformações na formação médica e no modelo assistencial (pós Lei do Mais Médicos) e acompanhou as DCN de 2014 na maioria dos pontos relacionados ao ensino da APS na graduação.
Ambos determinam a formação de um profissional generalista, que atenda às necessidades de saúde da população e que possua grande conhecimento da APS. Também é descrita a necessidade de se buscar um egresso que tenha abordagem integral, habilidades para trabalhar em equipe e conhecimentos dos processos de gestão.
Merece destaque, no entanto, a ausência no PPC de temas fundamentais na prática médica e na relação médico-paciente. Não há referências ao ensino do método clínico centrado na pessoa, da educação popular em saúde, do respeito à autonomia do paciente e da tomada de decisão compartilhada.
Espera-se, assim, que os gestores do curso analisado e de outras instituições com contextos semelhantes, em um processo de avaliação e atualização continuada do currículo, possam incluir essas recomendações, que são previstas nas DCN de 2014 e são peças fundamentais para o exercício de uma Medicina mais humanizada, efetiva e centrada nas necessidades das pessoas e da população.