versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.3 Rio de Janeiro mar. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017223.33142016
A implementação da politica de saúde diz respeito à elaboração de legislação, negociação de contratos [e convênios], alocação de recursos, e desenvolvimento de programas diretos para alcançar seus objetivos e metas que, por sua vez, envolvem desenvolvimento pessoal de recursos humanos e de procedimentos operacionais1. Sendo assim, a implantação não ocorre automaticamente. Cerca de 30% das políticas desenhadas nunca são implementadas e suas chances de realização estão diretamente relacionadas às estratégias consideradas, às oportunidades e barreiras Nesse contexto, o estabelecimento de metas, a alocação de recursos e o uso de sistemas de informação pode ser facilitado pelo uso de métodos e técnicas epidemiológicas e estatísticas.
Em 2009, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro iniciou uma profunda reforma do modelo de atenção2 utilizando como principal influência o conceito de “Atenção Primária em Saúde – APS”, cunhado por Starfield3 que se baseia em quatro atributos essenciais: acesso de primeiro contato – utilização e acessibilidade, longitudinalidade, integralidade e coordenação, e três atributos derivados: orientação familiar, comunitária e competência cultural.
Obviamente toda reforma de saúde necessita de acompanhamento do seus processos e marcadores para verificar a implantação da politica. Segundo Spasoff1deve-se dar especial atenção aos sistemas de informação nas avaliações de politicas, em especial em dados individualizados, ressaltando que muitas vezes, os sistemas de informação são desenvolvidos apenas para fins administrativos, sem levar em conta seus usos potenciais para o planejamento e a avaliação ou para a investigação epidemiológica adequada. Este autor definiu quatro critérios essenciais para se ter um bom sistema de informação para avaliação de políticas públicas: (i) identificação única de todos os indivíduos na população-alvo (usuários e não usuários), juntamente com características sociodemográficas, tais como idade, sexo e dados geográficos cadastrais, como o endereço residencial, (ii) identificação dos financiadores do custo de provisão e de cada ação/procedimento, (iii) que todos os serviços prestados, incluindo a data do serviço, contenham o número de identificação único do provedor, a identificação do usuário, motivo para o encontro [problema(s) apresentado(s)], diagnóstico e serviços prestados, (iv) que seja possível dimensionar os resultados finais ou intermediários (altamente desejável, mas raramente disponíveis).
Entre estes critérios, os itens (i), (ii) e (iii) podem ser dimensionados através da utilização de registros eletrônicos que contenham aspectos administrativos dos serviços e informações clínicas e epidemiológicas. O uso de prontuários eletrônicos, por vezes, também possibilita a avaliação dos resultados, como característica mencionada por Spasoff1 no item (iv).
Em 2009, iniciou-se a partir da inauguração da primeira Clínica da Família, no bairro de Realengo, a implantação do prontuário eletrônico. Foi a primeira unidade municipal a utilizar esta tecnologia para auxiliar a coordenação do cuidado. No ano seguinte, com o desenvolvimento do eixo da Reforma que abordava a Gestão das Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (TICs), o mesmo ganhou escala para a maioria das unidades de atenção primária e foi progressivamente implantado até o ano de 2011 em todas as unidades. O ano de 2012 representa a primeira possibilidade de análise dos indicadores de acesso e desempenho considerando-se o município e suas áreas de planejamento, que tiveram período de implantação diferente em cada caso. Destaca-se que pelos requisitos definidos pela SMS-RJ, os prontuários constituem a principal ferramenta para a gestão clínica e o pagamento de recursos por desempenho trimestral (pay-for-performance) para as unidades e para os profissionais das Equipes de Saúde da Família.
Das quatro empresas que iniciaram o processo de implantação em 2009, três eram de origem europeia, com experiência na reforma dos cuidados primários em Portugal, e uma brasileira, que desenvolveu os módulos integrados para cumprir os requisitos dos contratos de gestão. Toda a agregação das bases de dados é realizada pela gestão central da SMS-Rio e disponibilizada para as áreas de planejamento sob a forma de painéis de gestão e por consulta no formato Tabnet-DATASUS (Bussiness Intelligence)
Variáveis nunca antes aferidas de maneira individual, como as vacinas que compõem o calendário nacional de imunização do PNI, a codificação de doenças em consulta ambulatorial pelo International Classification of Primary Care (ICPC) (ICPC) e CID-10, começam a vislumbrar uma nova possibilidade e análises no nível local que qualifiquem o processo de cuidado na cidade.
Em especial destaque, as ações de vigilância em saúde dos usuários no primeiro ano de vida, gestantes, mulheres em idade fértil, hipertensos, diabéticos, pacientes com tuberculose e hanseníase. Neste caso especial, um conjunto de ações clínicas realizadas no tempo oportuno determinam o pagamento por desempenho clínico dos membros da equipe. Desde 2012, a cidade do Rio de Janeiro possui prontuários eletrônicos que permitem a avaliação de desempenho organizacional e clínico. Estão implantados em mais de 95% das ESF compatíveis com o e-SUS nacional, que posteriormente foi proposto pelo Ministério da Saúde como modelo para as unidades básicas.
Nos últimos anos observa-se interesse crescente sobre pagamento por desempenho – pay-for-performance (P4P) –, principalmente nos sistemas universais como o SUS. Estes programas objetivam a melhoria da qualidade e promovem o aumento do acesso aos serviços de saúde. As experiências portuguesa de 20084-8 e britânica de 2004, 20109-14 têm sugerido conclusões positivas e indicado alguns cuidados na aplicação desta estratégia, verificando-se melhoria dos resultados iniciais das metas contratualizadas. O alerta desses autores é a necessidade de mudança dos indicadores pactuados a cada dois ou três anos, para evitar vieses éticos com aquilo que se denomina gaming, ou seja, o foco das equipes de saúde em atingir as metas contratualizadas e terem menos atenção aos demais aspectos não contratualizados.
Na Secretaria Municipal do Rio de Janeiro, um grupo de servidores públicos compõe para cada área da cidade uma Comissão Técnica de Avaliação e analisa trimestralmente os resultados desses indicadores. Podem solicitar, a qualquer momento, a memória de cálculo e realizar auditoria clínica. Nas unidades de saúde, os profissionais das equipes têm acesso a relatórios gerenciais e podem visualizar os mesmos e compará-los com outras equipes da unidade, extraindo estas informações dos próprios prontuários eletrônicos que utilizam.
O objetivo deste artigo é avaliar a tendência de indicadores do pay-for-perfomance que mensuram o processo de cuidado em saúde na APS da cidade do Rio de Janeiro.
Trata-se de estudo de painéis repetidos15 em que foram realizados estudos seccionais em momentos variados em uma mesma população, sem necessariamente repetir as observações sobre os mesmos indivíduos representados no tempo inicial (t1). Nesse caso, t1 = 1º trimestre de 2012, e, na sequência de estudos seccionais, a cada trimestre um novo painel foi realizado, em um total de 17, gerando, ao fim, t17 = 1º trimestre de 2016.
Serão considerados dados individuais dos pacientes nos prontuários eletrônicos da atenção primária em saúde, disponibilizados de forma agrupada por Área de Planejamento da Saúde, em link de domínio público16, que informam os processos de cuidado, nas diversas dimensões da organização dos serviços. Os indicadores escolhidos buscam demonstrar o avanço no processo de trabalho ao longo dos anos, tendo em vista os atributos da APS na melhoria dos resultados, e todos os dados são de domínio público e estão disponíveis em página da SMS/RJ.
Neste artigo, foram escolhidos sete indicadores a partir de um conjunto maior que representam acesso, longitudinalidade, coordenação do cuidado – atributos da APS, assim como outras características dos serviços como, desempenho assistencial e eficiência econômica. Foram escolhidos dentre aqueles que possuíam melhor registro histórico trimestral de 2012 a 2016. Optamos pela seleção das metas para os valores pactuados no ano de 2016 (alguns indicadores têm suas metas revisadas a cada dois anos). Dessa forma, analisaremos: (i) proporção de consultas pelo próprio médico de família, (ii) proporção de demanda espontânea em relação à programada, (iii) taxa de itens da carteira de serviços implementados, (iv) proporção de diabéticos com pelo menos 2 consultas registradas nos últimos 12 meses, (v) proporção de hipertensos com registro de pressão arterial nos últimos 6 meses, (vi) custo médio de medicamentos prescritos por usuário, (vii) encaminhamentos de pacientes da atenção primária à saúde para outros níveis do sistema de saúde (Quadro 1).
Quadro 1 Indicadores selecionados do pay-for-performance – Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro – 2012 – 2016.
Cod | Ação | Indicador | Fórmula para cálculo | Meta | Observação |
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A1 | Acesso/ Longitudinalidade | percentagem de consultas realizadas pelo seu próprio médico de família | (N) Nº de consultas médicas realizadas a pacientes da equipe pelo próprio médico da equipe ______________ X 100 (D) Nº de consultas médicas realizadas a pacientes da equipe na unidade | 70 a 90% | |
A2 | Acesso | percentagem demanda espontânea (*) em relação a programada (médicos, enfermeiros e dentistas) | (N) Nº consultas realizadas sem agendamento prévio (demanda espontânea) por médicos, enfermeiros e dentistas da equipe ______________ X 100 (D) Nº total de consultas realizadas (médicos, enfermeiros e dentistas) pela equipe | Mínimo 40% | (*) acolhimento da demanda não programada ou encaminhadas por outras unidades. Considera-se demanda espontânea aquela consulta que é realizada no mesmo dia, sem agendamento prévio. Não estão contemplados atendimentos coletivos, grupos ou outras atividades que não consultas. |
A5 | Acesso | taxa de itens da carteira de serviços implementados | (N) Nº de ações da carteira de serviços executadas pela equipe de SF e SB ______________ X 100 (D) Total de ações da carteira de serviços | Mínimo 80% | |
D2 | Desempenho assistencial | percentual de diabéticos com pelo menos 2 consultas registradas nos últimos 12 meses | (N) Nº de diabéticos pertencentes a área de abrangência da equipe com pelo menos duas consultas registradas nos últimos 12 meses ______________ X 100 (D) Nº total de diabéticos cadastrados na área de abrangência da equipe | Mínimo 70% | Para o cálculo do indicador, considerar como denominador (D) apenas diabéticos que tiveram diagnóstico validado pelo médico da equipe. Para fim de acompanhamento mostrar em nova coluna ao lado de (D) o no de diabéticos na área da equipe (pelo cadastro do ACS (ficha B) + aqueles que foram validados pelo médico). |
D3 | Desempenho assistencial | Percentual de hipertensos com registro de pressão arterial nos últimos 6 meses | (N) Nº de hipertensos pertencentes a área de abrangência da equipe com registro de aferição de pressão arterial nos últimos 6 meses ______________ X 100 (D) Nº total de hipertensos cadastrados na área de abrangência da equipe | Mínimo 70% | |
E1 | Eficiência | Custo médio de medicamentos prescritos por usuário | (N) Somatório do valor das prescrições pelo médico de cada equipe nos últimos 3 meses (REMUME e não REMUME) ______________ (D) no total de usuários atendidos pelos médicos de cada equipe nos últimos 3 meses (com prescrição + sem prescrição) | Max. R$ 51,78 | * Considerar como denominador (D) todos os usuários atendidos pelo médico de cada equipe (pacientes da área e atendidos fora de área pelo médico) independente de ter sido prescrita medicação ou não. * Apresentar nova coluna ao lado de (D) com o número de pacientes atendidos que tiveram medicação prescrita. * deve permitir detalhar os pacientes, a medicação que foi prescrita e o custo da prescrição a quantidade de medicamentos prescritos que foi entregue na farmácia da unidade. * todos os prontuários devem disponibilizar a opção de prescrição de medicação NÃO REMUME. |
E2 | Coordenação – integração dos cuidados (PCATool) | Percentual de pacientes encaminhados em relação ao número de pacientes atendidos | (N) Nº de pacientes atendidos pelo médico de cada equipe (pacientes da área e fora de área) nos últimos 3 meses e que foram encaminhados a algum serviço/especialidade ______________ x 100 (D) Nº total de pacientes atendidos pelo médico de cada equipe (pacientes da área e fora de área) nos últimos 3 meses | Max. 20% | * Considerar como denominador (D) todos os usuários atendidos pelo médico de cada equipe (pacientes da área e atendidos fora de área pelo médico) independente de ter sido prescrita medicação ou não. |
Fonte: SMS/RJ, 2012 a 2016.
A proporção de consultas pelo próprio médico de família é um dos principais indicadores de longitudinalidade e também de acesso na APS. Permite verificar o grau de envolvimento e o acompanhamento pelo médico de família dos indivíduos que residem nas áreas cobertas pelas equipes. A SMS-RJ estabeleceu como intervalo os limites de 70 a 90%, uma vez que espera-se obviamente a existência de intercorrências pessoais, faltas ao trabalho, saída para participação de atividades externas à unidade e período de férias. Em Portugal, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) preconiza os limites de 65 a 90%5. No Brasil, o uso desse indicador é pioneiro na cidade do Rio de Janeiro, ainda não havendo referência de parâmetro do Ministério da Saúde ou de outros estados. Os dados evidenciam uma tendência crescente, mas sempre abaixo do limite superior da meta de 90% (Gráfico 1). O ponto mais baixo observado no 1º trimestre de 2013 pode ser explicado pela ampliação da entrada e chegada de novos médicos residentes nas unidades de saúde, gerando remanejamentos entre equipes e unidades.
Gráfico 1 Proporção de consultas médicas em unidades de saúde da família pelo próprio médico de família - Município do Rio de Janeiro - 2012-2016.Fonte: Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro16.
Essa é uma das principais diferenças em uma atenção primária abrangente quando comparada a outro sistema limitado. O vínculo com o médico de família e com a equipe possibilita a resolução dos problemas de saúde ao longo do tempo, especialmente o olhar integral para o indivíduo e sua família, mantendo a possibilidade de substituição entre as equipes, garantindo o acesso mesmo quando o próprio médico não se encontra na unidade.
A SMS-RJ utilizou, ao longo do período analisado, uma triangulação de métodos para acompanhar o processo de implantação da longitudinalidade nas equipes de saúde da família, correlacionando com os dados do prontuário eletrônico. No 1º semestre de 2014, a Faculdade de Medicina da UFRGS17 elaborou uma avaliação externa e realizou um inquérito que avaliou este atributo, entrevistando 6.675 responsáveis por crianças e adultos que utilizavam os serviços de APS da cidade do Rio de Janeiro pelo instrumento validado no Brasil intitulado PCAT (Primary Care Assessment Tool). Verificou um escore médio de 6,1 para usuários e de 7,5 para profissionais de saúde18, com expressivas diferenças entre as unidades avaliadas mas com uma média próxima ao esperado pela linha de base da gestão. Esses escores estão próximo do mínimo recomendado de 6,6 para se ter uma APS forte e de qualidade, mensurada no referido instrumento.
O acesso não programado ou demanda espontânea a uma unidade de atenção primária é amplamente preconizado na literatura19,20, que tem estudado o fenômeno enquanto uma das formas de organização do processo de prestação de serviços em saúde. Este indicador na SMS considera aquela consulta que é realizada no mesmo dia, sem agendamento prévio.
A SMS-RJ estipulou um intervalo de 40% a 80% para este indicador. O Gráfico 2 descreve que a tendência de aumento substancial no período representado com proporções dentro do limite da meta a partir do 1º trimestre de 2013. Obviamente outros indicadores devem ser monitorados para aferir a adequação da atenção a grupos específicos e manter a programação de consultas, como as de pré-natal, por exemplo, e, conforme veremos mais adiante, os protocolos clínicos para a programação das doenças crônicas de hipertensão e diabetes.
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro16.
Gráfico 2 Proporção de consultas médicas por demanda não programada em relação ao total de consultas - Município do Rio de Janeiro - 2012-2016.
No atributo acesso-primeiro contato, obtiveram-se escores do PCAT abaixo da média dos demais domínios medidos nos inquéritos de 2012 e 2014: 5,2 para médicos de família, 4,7 para os usuários crianças e 4,2 para adultos17,18. Boa parte da explicação para estes valores terem sido abaixo de 6,6, se referem no caso dos usuários crianças a dois itens: C4. Quando você chega no/a “serviço de saúde”, você não tem que esperar mais de 30 minutos para que a sua criança consulte com o/a “médico/a” (sem contar triagem ou acolhimento)?; C6. Quando o/a “serviço de saúde” está aberto, você consegue aconselhamento rápido pelo telefone se precisar?. No caso de adultos são quatro itens que pontuam e impactaram no escore médio de acesso/primeiro contato; C4. Quando o/a “serviço de saúde” está aberto, você consegue aconselhamento rápido pelo telefone se precisar ?; C5. Quando o/a “serviço de saúde” está fechado, existe um número de telefone para o qual você possa ligar quando fica doente ?; C6. Quando o/a “serviço de saúde” está fechado no sábado e domingo e você fica doente, alguém deste serviço atende você no mesmo dia ?; C7. Quando o/a “serviço de saúde” está fechado e você fica doente durante a noite, alguém deste serviço atende você naquela noite ?.
Os atuais arranjos de atenção primária existentes na maioria dos países europeus ampliaram não somente o numero de equipes, mas também a capacidade de lidar com o crescente leque de serviços de nível primário, como demonstra Wienke et al.21. Desta forma, a cidade do Rio de Janeiro editou sua primeira carteira de serviços em atenção primária em 201022, realizando um rígido monitoramento da ampliação e padronização dos serviços, inicialmente monitorando a execução por unidade e posteriormente por equipe de saúde da família.
Os dados apresentados nos informam que, em média, já a partir de 2014, mais de 90% dos itens da carteira de serviços foram implantados pelas equipes avaliadas (Gráfico 3). Três foram as estratégias da SMS-RJ para o alcance da meta. A primeira foi o investimento na estrutura física das unidades de forma homogênea; a segunda nos processos de educação permanente; e a terceira, grande investimento em processos educativos formais, em especial a residência médica e de enfermagem, que iniciou em 2012 e já no ano de 2015 formavam os maiores programas entre as capitais do Brasil, conforme descreveram Justino et al.23, e também os cursos de especialização em saúde pública e mestrado multiprofissional em atenção primária, da ENSP/Fiocruz24.
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro16.
Legenda: A5 = taxa de itens da carteira de serviços implementados, D2 = proporção de diabéticos com pelo menos 2 consultas registradas nos últimos 12 meses, D3 = proporção de hipertensos com registro de pressão arterial nos últimos seis meses
Gráfico 3 Percentual de itens da carteira de serviços implementados, proporção de diabéticos com pelo menos 2 consultas registradas nos últimos 12 meses, proporção de hipertensos com registro de pressão arterial nos últimos seis meses - Município do Rio de Janeiro - 2012-2016.
Em todo o período analisado, excetuando-se o 3º trimestre 2013, em que duas áreas da cidade (zona norte-Leopoldina e zona oeste-Santa Cruz) contribuíram com valores abaixo de 80% e depois se recuperaram, a cidade do Rio de Janeiro vem realizando um conjunto de dezenas de ações e serviços em cada uma de suas equipes de saúde da família. As maiores dificuldades de implementação da carteira de serviços estavam associadas à desintoxicação alcoólica e inserção de DIU.
As doenças crônicas têm um lugar especial no cuidado na atenção primária à saúde. Diabetes e hipertensão, as mais prevalentes, destacam-se como aquelas em que historicamente, desde a concepção inicial do então “Programa de Saúde da Família” em 1994, são mensuradas e acompanhadas tanto pelos agentes comunitários em morbidades referidas, como pelos médicos e enfermeiros no que se refere a morbidade clínica. Podemos verificar a evolução da cobertura dos cuidados nas duas doenças crônicas citadas e mais prevalentes na atenção primária brasileira que teve seu inicio de acompanhamento com o manual do SIAB em 199825.
A proporção de diabéticos com pelo menos duas consultas registradas nos últimos 12 meses, permite inferir o nível de longitudinalidade da atenção e a priorização atribuída pelas equipes para esta situação de saúde. Os dados demonstram que somente a partir do 1º trimestre/2015, é atingida a meta mínima de 70% (Gráfico 3).
Já a proporção de hipertensos com registro de pressão arterial nos últimos seis meses permaneceu entre 60 e menos de 70% ao longo de 2012 e 2016, sendo ainda necessário maiores investimentos para a melhoria desse indicador básico. Em Portugal, essa meta é estabelecida sob a forma de um intervalo, entre 38 e 80%5.
Estas são metas de processo de acompanhamento de duas das doenças crônicas mais prevalentes da atenção primária em vários países do mundo que já mensuraram o impacto na redução das internações por condições sensíveis e na mortalidade por doenças cardiovasculares, um dos principais desafios da APS do RJ26.
Na APS, o município do Rio de Janeiro oferta a seus moradores medicamentos de uma lista conhecida como “Relação Municipal de Medicamentos” – REMUME, em complementação àquela ofertada pelo Ministério da Saúde (RENAME). O gasto por paciente com medicamento representa além de um processo contínuo e essencial para a gestão da clínica, também pode ser classificado do ponto de vista de eficiência econômica, gerando redução de custos do sistema como um todo.
Este é um dos indicadores mais difíceis de ser mensurado pois condiciona o registro fidedigno ao correto preenchimento no prontuário eletrônico por parte do médico com emissão da receita. Culturalmente esse é um desafio a ser vencido, na perspectiva de se conhecer os custos reais por paciente. No estudo de Silva et al.27 encontrou-se ampliação da diversidade de itens ofertados na REMUME para a APS de 57 em 2008, para 222 em 2014. Além disso, estimou em valores próximos de R$10, o custo da medicação prescrita por consulta.
Observamos uma evolução temporal crescente atingindo cerca de R$14 por consulta/paciente no 1º trimestre de 2016 (Gráfico 4), o que significa que em valores anuais alcançaríamos R$168,00 (ou cerca de 48 euros). Não há referências do Ministério da Saúde brasileiro para este indicador. Na Grande Lisboa, em Portugal, esse valor é quase três vezes superior (cerca de 140 euros no ano de 2015). Esse país possui um sistema nacional de saúde universal, porém não possui uma lista nacional de medicamentos. O acesso a estes insumos é feito mediante o copagamento pelos usuários em farmácias cadastradas fora das unidades de saúde, exceto para grupos específicos como gestantes, idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade, que não precisam pagar. Deve-se ressaltar que a Tabela utilizada para precificar os itens de medicação da REMUME não sofreu alteração no período.
Na perspectiva de Starfield3, o atributo de coordenação-integração do cuidado contemplaria, entre outros aspectos, os encaminhamentos de pacientes deste nível de complexidade para outros níveis do sistema de saúde. A SMS-RJ estabeleceu como referência o máximo de 20% de pessoas consultadas por médicos de família com esse tipo de situação. Ainda há necessidades de novos estudos para a definição dos limites mínimos para este indicador, pois pode sugerir falha no manejo clínico, falha de registro ou busca espontânea. Na análise dos dados (não apresentados), observa-se que há um bom processo de coordenação do cuidado na APS carioca, uma vez que o limite superior da meta nunca foi atingido. Esse resultado está de acordo com aquele observado por Harzheim et al.17, que, ao analisarem a APS da cidade, encontraram escore de 6,6 para usuários adultos, indicando boa qualidade de coordenação do cuidado para o conjunto de itens pesquisados no PCATool Rio-2014. Na avaliação externa desses pesquisadores foram comparados os dados das equipes com até três anos de existência com aquelas que possuíam tempo maior. Encontrou-se escore de “coordenação do cuidado” de 7,03 e de “coordenação do cuidado-sistema de informação” de 7,15, indicando que a variável, “tempo de existência das equipes” discrimina melhor qualidade nesse atributo e deve ser considerada em futuros estudos comparativos.
Vale especial destaque na reforma que definiu regras objetivas para o acesso a atenção em outros níveis, sendo somente permitido o acesso a outros especialistas após a avaliação do médico de família responsável pelo paciente. Esse papel de gatekeeper contribui muito na satisfação dos usuários, na perspectiva de Grumbach et al.28, que, em uma pesquisa na Califórnia, observaram que a maioria dos 12.707 pacientes endossou a importância de se ter identificado médicos de cuidados primários na integração e atendimento global, envolvendo-os nas decisões sobre a obtenção de cuidados de outros especialistas. A maioria dos pacientes também preferiu iniciar cuidados para novos problemas médicos com seus médicos de cuidados primários em vez de procurar atendimento diretamente de especialistas. Estas respostas indicam que os pacientes percebem um papel benéfico para os médicos de atenção primária na coordenação seus cuidados.
Os benefícios de uma boa coordenação do cuidado vão além do ganho individual, e há um ganho concreto dos sistemas de saúde em poder alocar seus recursos de modo mais equânime entre as áreas de uma determinada cidade com maior vulnerabilidade social3.
Este artigo apresenta pela primeira vez alguns indicadores dos prontuários eletrônicos, implantados na atenção primária à saúde em 2011 na cidade do Rio de Janeiro. Obtiveram-se indicadores consistentes ao longo dos trimestres avaliados, após três anos do início da implementação da Reforma dos Cuidados em Atenção Primária à Saúde na cidade, traçando-se um panorama inicial dos principais indicadores de atenção primária.
Contudo, esse desafio é permanente: com o avanço tecnológico, a necessidade de integração com outros subsistemas como o de imagens, o laboratorial e o hospitalar, por exemplo, se fazem necessário; não apenas por uma questão de redução do custo dos pedidos de exames sem evidências científicas sólidas para indicação clínica, mas também para fortalecer a coordenação do cuidado, principal domínio que marcou a Reforma carioca no período.
Um enorme desafio para governança municipal e gestão clínica no nível local foi enfrentado no período de 2009 a 2016, com a implementação em 222 unidades de atenção primária, 1.217 equipes de saúde da família em dez áreas de planejamento, com o registro e acompanhamento da situação de saúde de cerca de quatro milhões de cariocas.
Em 2016, os prontuários eletrônicos eram amplamente utilizados no dia-a-dia das equipes de saúde da família, servindo de base para a verificação da implementação da politica e principalmente para correção de rumos. A cada dois/três anos, os indicadores do pay-for-performance são revisados pela equipe central da SMS-RJ a fim de evitar o comportamento de gaming descrito na literatura.
Acompanhar os indicadores de processo é um passo fundamental para a garantia da obtenção de bons de resultados. Na APS é fundamental a utilização de sistemas de informação que permitam associar indicadores de saúde (estrutura, processo e resultados) com os atributos da atenção primária.
O pequeno conjunto de indicadores constitui uma representação limitada do processo de atenção primária à saúde desenvolvida no período de 2009 a 2016 na cidade do Rio de Janeiro, ainda mais se considerarmos a disponibilidade dos registros eletrônicos dos prontuários tiveram dados consistentes para a totalidade do município a partir de 2012, após iniciarem na primeira Clínica da Família, Olímpia Esteves, em novembro de 2009. Esperamos que este estudo estimule outros pesquisadores e gestores no desenvolvimento de pesquisas com base nos dados dos prontuários eletrônicos, e considerando os atributos da APS.
Este estudo demonstrou a relevância de se estudar elementos do processo dos sistemas de saúde para a avaliação dos resultados da APS. A descentralização da gestão para níveis mais próximos do usuário é potencialmente exitosa para o registro de dados clínicos, caso seja feito um adequado monitoramento dos indicadores, auditorias clínicas periódicas e realizado periodicamente informes aos profissionais de saúde com os dados e indicadores acompanhados.