versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.2 São Paulo abr./un. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140029
O transplante renal é um tratamento com boa relação custo/benefício, responsável por aumentar a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes com doença renal terminal. Nos Estados Unidos estima-se que o número de pessoas com insuficiência renal crônica que se beneficiariam com um transplante está crescendo a uma taxa de 7% a 8% ao ano.1 No Brasil, cerca de 80.000 pacientes com doença renal crônica estão atualmente em diálise. Apenas 1/4 destes pacientes chegam a obter um transplante.2 Isto se deve principalmente à discrepância entre o número de pacientes em lista de espera e o pequeno número de órgãos disponíveis.3
Consequentemente, os critérios para o aceite de rins para transplante foram estendidos, permitindo o uso de órgãos que, há alguns anos, teriam sido descartados. Isto levou a um aumento no número de transplantes renais com enxertos considerados como de qualidade sub-ótima, atualmente regulamentados pelos critérios da UNOS.4-6 As biópsias renais pré-implante desempenham um importante papel na definição da integridade estrutural e da reserva funcional das peças renais.7,8 Diferentes algoritmos baseados em parâmetros histológicos foram propostos para avaliar os rins a partir dos critérios expandidos de doação.8-11 Em biópsias realizadas de acordo com o protocolo, glomeruloesclerose, fibrose intersticial e arteriosclerose estão associadas a função renal inferior no longo prazo.12,13
O presente estudo tem por objetivo avaliar como as alterações histológicas observadas nas biópsias pré-implante podem interferir no desfecho clínico do transplante renal e na sobrevida do enxerto, em uma coorte retrospectiva que inclui doadores vivos, doadores falecidos considerados ideais e doadores falecidos com critérios expandidos. Os critérios clínicos que podem contribuir para o desfecho, como idade do doador, compatibilidade HLA, tempo de isquemia fria, função tardia do enxerto e episódios de rejeição também foram analisados.
Cento e dez biópsias pré-implantes de doadores foram analisadas no serviço de transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. As biópsias foram feitas de janeiro de 2006 a agosto de 2009. Vinte e sete biópsias foram de doadores vivos, 47 de doadores falecidos ideais e 36 de doadores com critérios expandidos de acordo com a UNOS.
As doenças de base observadas nos receptores foram hipertensão arterial sistêmica (15,4%), doença familiar (14,4%), glomerulopatia (13,6%), diabetes mellitus (9,0%), indeterminada (40%) e outras (7,2%).
O esquema de imunossupressão foi principalmente combinado: 43,6% dos pacientes receberam Tacrolimus, 30,9% Ciclosporina, 90,0% Micofenolato Mofetil, 0,9% Azatioprina e 10,9% m-TORi. Trinta e dois pacientes (29,1%) foram tratados com medicamentos diferentes de inibidores de calcineurina em seu esquema de imunossupressão. Outros 30,1% fizeram indução com Basiliximab (23,3%) e Daclizumab (1,8%). Episódios de rejeição aguda foram tratados com pulsoterapia com corticosteróides e os casos corticorresistentes com OKT3 ou Timoglobulina.
A taxa de filtração glomerular (TFG) ao final do primeiro ano de pós-transplante de cada receptor foi calculada usando a fórmula abreviada do MDRD (Modified Diet Renal Disease) e correlacionada com os resultados da biópsia do doador. Os doadores foram subdivididos em vivos, falecidos ideais e falecidos com critério expandido e estratificados por faixa etária em grupos de indivíduos com menos de 60 ou 60 anos ou mais de idade. A TFG também foi correlacionada com o número de incompatibilidades HLA (0-6), tempo de isquemia (> ou < 24 horas), episódios de rejeição aguda (sim ou não) e função tardia do enxerto (presente ou ausente).
O teste do qui-quadrado foi utilizado para analisar as variáveis categóricas. As médias entre dois grupos foram analisadas por meio do teste t de Student e as médias entre três grupos foram avaliadas por análise de variância (ANOVA). A sobrevida do enxerto foi estimada pelo método de Kaplan-Meier e comparada pelo teste de Log Rank. Para controlar fatores confundentes e avaliar os indicadores associados à TFG, foi aplicado um modelo de regressão linear múltipla com critério de extração backward. Significância estatística foi considerada para p < 0,05.
As biópsias de doadores com critérios expandidos foram retiradas em forma de cunha e submetidas a exame transoperatório de congelação para avaliar a viabilidade do órgão. As amostras de doadores vivos foram obtidas por biópsia de agulha sem congelação.
Todas as amostras foram fixadas em formol a 10% e submetidas a processamento histológico convencional. Biópsias sem glomérulos foram excluídas do estudo.
As biópsias foram analisadas segundo os critérios descritos por Remuzzi,14 avaliando o grau de glomeruloesclerose, atrofia tubular, fibrose intersticial e espessamento arterial e arteriolar. O escore dessas variáveis foi considerado da seguinte forma: ausência de alterações = 0 pontos; alterações leves (menos de 20%) = 1 ponto; alterações moderadas (entre 20% e 50%) = 2 pontos; e alterações acentuadas (mais de 50%) = 3 pontos. A pontuação final varia de 0 a 12, com alterações histopatológicas leves sendo aquelas com score entre 0 e 3, moderadas entre 4 e 6 e acentuadas entre 7 e 12.
A população do estudo foi constituída por 110 receptores de transplante renal subdivididos em 27 doadores vivos, 47 doadores falecidos ideais e 36 doadores falecidos com critérios expandidos. As características dos doadores e os achados histopatológicos gerais são exibidos nas Tabelas 1 e 2.
Tabela 1 Características de doadores e receptores
Todos os doadores (n = 110) | Doadores falecidos (n = 83) | Doadores vivos (n = 27) | p | |
---|---|---|---|---|
Idade média do doador/DP - (mediana) | 46,99 ± 13,14 (48,00) | 49,02 ± 13,57 (52,00) | 40,74 ± 9,43 (41,00) | 0,004 |
Sexo do doador (% homens) | 59 (53,6%) | 47 (56,6%) | 12 (44,4%) | 0,189 |
Idade média do receptor/DP - (mediana) | 46,01 ± 13,69 (50,00) | 49,37 ± 12,06 (52,00) | 35,67 ± 13,44 (33,00) | < 0,001 |
Sexo do receptor (% homens) | 72 (65,1%) | 55 (66,2%) | 17 (62,9%) | 0,463 |
Tempo de isquemia fria (h) média/DP - (mediana) | 20,54 ± 5,16 (20,50) | - | ||
Função renal tardia (%) | 63 (57,3%) | 61 (73,5%) | 2 (7,4%) | < 0,001 |
Rejeição aguda (%) | 33 (30,0%) | 25 (30,1%) | 8 (29,6%) | 0,583 |
HLA (nº antígenos) média/DP (mediana) | 3,19 ± 1,23 (3,00) | 3,12 ± 1,05 (3,00) | 3,41 ± 1,69 (3,00) | 0,298 |
Teste hipersensibilidade (%) > 50% | 2 (1,8%) | 2 (2,4%) | 0 | 0,568 |
Critérios para limítrofe | 36 (43,3%) | - |
Tabela 2 Dados de alterações histopatológicas gerais
Média e DP | Mediana/Variação | |||
---|---|---|---|---|
Nº de glomérulos | 57,84 | ± | 33,54 | 51,50 (2-145) |
Escore de Remuzzi | 2,90 | ± | 2,13 | 3 (0-8) |
Glomeruloesclerose | 0,80 | ± | 0,64 | 1 (0-3) |
Fibrose intersticial | 0,70 | ± | 0,56 | 1 (0-2) |
Atrofia tubular | 0,65 | ± | 0,56 | 1 (0-2) |
Constrição vascular | 0,78 | ± | 0,83 | 1 (0-3) |
Quanto ao escore histopatológico, houve uma diferença significativa entre o escore total dos enxertos de doadores falecidos e doadores vivos. O percentual de doadores falecidos no grupo com alterações patológicas leves (0-3 pontos) foi de 44,6% (37 de 83 doadores), enquanto o de doadores vivos foi de 85,2% (23 de 27 doadores). Quarenta e um doadores falecidos (49,4%) satisfizeram os critérios para alterações histopatológicas moderadas (4 a 6 pontos) em comparação a quatro doadores vivos (14,8%). Cinco doadores falecidos (6,0%) apresentaram alterações histopatológicas acentuadas (7 a 12 pontos) em comparação a nenhum doador vivo (p = 0,001). Os escores individualizados de glomeruloesclerose, fibrose intersticial, atrofia tubular e arteriosclerose também foram comparados entre doadores vivos e falecidos, explicitando diferenças significativas em cada compartimento isolado.
Os enxertos de 97 dos 110 pacientes estudados ainda apresentavam boa função um ano após o transplante. A distribuição destes receptores segundo o escore de biópsia pré-implante e TFG média para cada grupo é mostrada na Tabela 3.
Tabela 3 Escore estratificado para o grupo todo e taxa de filtração glomerular um ano após o transplante
Escore total | N | % | TFG ml/min (m/DP) |
---|---|---|---|
Leve (0-3)a | 54 | 55,67% | 49,69 ± 16,91 |
Moderado (4-6)b | 40 | 41,23% | 40,69 ± 13,36 |
Acentuado (7-12)c | 3 | 3,09% | 44,30 ± 13,68 |
p = 0,006 a x b; p = 0,358 a x c; p = 0,698 b x c.
A probabilidade de sobrevida acumulada dos enxertos um ano após o transplante na população estudada, estratificada de acordo com os três grupos de escores histopatológicos - leve, moderado e acentuado - (Figura 1A) foi de 90%, 88,9% e 60%, respectivamente (Log Rank p = 0,079). Quando apenas a sobrevida acumulada dos enxertos de doadores falecidos foi analisada para os mesmos grupos (Figura 1B), os valores foram 83,8%, 90,2% e 60% (Log Rank p = 0,132). A sobrevida acumulada dos enxertos de doadores vivos foi de 100% e 75% nos grupos leve e moderado, respectivamente (Log Rank p = 0,016).
Figura 1 Sobrevida do enxerto segundo escores histopatológicos em transplantes com doadores vivos e falecidos. Figura 1A: Log Rank p = 0,079 apenas com enxertos de doadores falecidos; Figura 1B: Log Rank p = 0,132.
A avaliação da TFG um ano após o transplante, calculada pela fórmula abreviada do MDRD nos diferentes grupos de acordo com o número total de pontos do escore histopatológico, apresentou uma diferença estatisticamente significativa entre o grupo com alterações histopatológicas leves (n = 54) e o grupo com alterações moderadas (n = 40) (p = 0,006). Não houve diferença significativa entre o grupo com alterações acentuadas e os demais (Tabela 3).
Quando a TFG foi comparada entre os receptores de rins de doadores vivos (n = 26, TFG = 54,26 +/- 14,52 ml/min) e falecidos (n = 71, TFG = 42,72 +/- 15,34 ml/min), independente de critérios histopatológicos, foi revelada diferença estatisticamente significativa (p = 0,001). A comparação entre grupos de doadores falecidos com critérios expandidos (n = 32, TFG = 38,23 +/- 13,20 ml/min) e critério ideal (n = 39, TFG = 46,40 +/- 16,14 ml/min) também resultou em diferença significativa (p = 0,022).
Os doadores foram separados em grupos com idade menor que 60 anos e idade maior ou igual a 60 anos (n = 15, TFG = 36,26 +/- 14,84 ml/min) e analisados com relação aos valores de TFG. A TFG foi significativamente maior no grupo com idade inferior a 60 anos (n = 82, TFG = 47,56 +/- 15,57 ml/min), (p = 0,011).
Presença de rejeição aguda e função tardia do enxerto apresentaram correlação estatística com a TFG (p = 0,002 e 0,001, respectivamente). Por outro lado, o tempo de isquemia fria e incompatibilidades HLA não apresentaram correlação estatística significativa.
Alterações analisadas nos compartimentos renais (glomeruloesclerose, fibrose intersticial, atrofia tubular e espessamento fibroso da íntima) foram correlacionadas isoladamente com função renal (Tabela 4). Nenhuma biópsia apresentou mais de 50% de glomeruloesclerose e nenhum rim transplantado apresentou escores de fibrose intersticial e atrofia tubular superiores a 2.
Tabela 4 Escore histopatológico dos compartimentos renais e função renal um ano após o transplante
N | % | TFG (ml/min) (m/DP) | p | |
---|---|---|---|---|
Glomeruloesclerose | ||||
0a | 32 | 32,9% | 54,07 ± 15,21 | p < 0,001 a x b; p = 0,104 a x c |
1b | 54 | 55,6% | 40,98 ± 14,98 | p = 0,363 b x c |
2c | 11 | 11,3% | 45,50 ± 13,58 | |
Fibrose intersticial | ||||
0a | 36 | 37,1% | 52,99 ± 15,76 | p = 0,01 a x b; p = 0,118 a x c |
1b | 57 | 58,7% | 41,65 ± 14,82 | p = 0,878 b x c |
2c | 4 | 4,1% | 40,45 ± 11,36 | |
Atrofia tubular | ||||
0a | 40 | 41,2% | 51,93 ± 15,95 | p = 0,002 a x b; p = 0,167 a x c |
1b | 54 | 55,6% | 41,64 ± 14,69 | p = 0,790 b x c |
2c | 3 | 3,09% | 39,23 ± 14,68 | |
Arteriosclerose | ||||
0a | 41 | 44,1% | 52,08 ± 15,52 | p = 0,018 a x b; p = 0,001 a x c |
1b | 36 | 38,7% | 43,73 ± 14,84 | p = 0,171 a x d; p = 0,074 b x c |
2c | 12 | 12,9% | 34,63 ± 15,07 | p = 0,746 b x d; p = 0,457 c x d |
3d | 4 | 4,3% | 41,15 ± 12,82 |
Os escores de glomeruloesclerose, fibrose intersticial, atrofia tubular e arteriosclerose também foram agrupados separadamente em duas variáveis - ausência de alterações ou presença de alterações, sendo a última a soma dos grupos com alterações leves, moderadas e acentuadas. Quando assim considerada, a diferença da TFG média entre todos os grupos foi significativa (p < 0,001, p = 0,001 e p = 0,002, respectivamente). Os escores, da mesma forma, foram também estratificados em dois graus: alterações leves [(0-3), TFG = 49,69 +/- 16,91 ml/min]; e alterações moderadas e acentuadas [(4-12), GFR = 40,94 +/- 13,25 ml/min], (p = 0,005).
Após o ajuste usando o modelo multivariado na amostra total, as variáveis que permaneceram associadas à TFG foram arteriosclerose (p = 0,038), presença de rejeição aguda (p = 0,005), função tardia do enxerto (p = 0,024) e glomeruloesclerose (p = 0,029). A análise multivariada também foi realizada apenas para doadores falecidos, mostrando uma correlação significativa com arteriosclerose (p = 0,010), rejeição aguda (p = 0,020) e função renal tardia (p = 0,049).
No presente estudo foram analisadas biópsias de doadores falecidos com critérios expandidos, doadores falecidos ideais e doadores vivos. As biópsias de doadores vivos foram realizadas de acordo com os protocolos de estudos clínicos.15,16 Todos os doadores falecidos com critérios expandidos do estudo foram submetidos a exame transoperatório de congelação para avaliar a viabilidade do órgão. Por se tratar de um estudo de coorte retrospectiva, a atribuição de escores e a estratificação em grupos foram realizadas após o transplante. Os critérios de Remuzzi não foram utilizados na decisão de se utilizar o rim ou de se realizar transplante simples ou duplo. A decisão de transplante foi tomada com base nos dados clínicos associados às alterações crônicas identificadas e no grau de glomeruloesclerose (ponto de corte de 20%).
Cinco biópsias renais no presente estudo satisfizeram os critérios para descarte de órgãos segundo Remuzzi (escore final acima de 7). No entanto, estes rins foram implantados por apresentarem alterações menos acentuadas no exame transoperatório de congelação e porque um deles não satisfez os critérios expandidos para doação. Dois desses pacientes perderam o enxerto, um por ausência de função e outro por trombose vascular. Curiosamente, os três pacientes restantes evoluíram bem, dois dos quais com função renal aceitável após um ano (56,1 ml/min; de 47,5 ml/min e 29,3 ml/min).
A probabilidade de sobrevida acumulada do enxerto um ano após o transplante não foi diferente entre os grupos com alterações leves, moderadas ou acentuadas na população total, nem mesmo quando a sobrevida dos doadores falecidos foi avaliada isoladamente. No entanto, a sobrevida do enxerto em doadores vivos foi diferente entre grupos com alterações leves e moderadas, por conta da perda ocorrida em um dos quatro doadores vivos com escore histopatológico moderado. O receptor deste enxerto teve um episódio de rejeição aguda tardia, que pode ser um fator confundente.
A variável que teve o maior impacto sobre a função renal em um ano foi a distinção entre doadores vivos e falecidos na análise univariada. A TFG média foi 54,2 ml/min nos doadores vivos e 42,7 ml/min nos falecidos (p = 0,001). Este achado sugere que as alterações imunoinflamatórias associadas a óbito e tempo de isquemia fria podem ser preditores de desfecho pior. Devemos ainda acrescentar que os doadores vivos tiveram escore de dano crônico inferior ao dos doadores falecidos. Mais de metade dos doadores vivos (55,6%) apresentou histologia normal, contra apenas 12,0% dos doadores falecidos (p = 0,001). Na análise multivariada, a variável doador vivo não apresentou diferença estatística para TFG. Isto talvez se deva em parte a co-associações com outros fatores particularmente relacionados a doadores vivos, tais como escores de cronicidade mais baixos, idade abaixo de 60 anos, maior prevalência e menor frequência de função renal tardia. Esta co-associação justifica a realização isolada da análise multivariada para doadores falecidos. A TFG média entre doadores falecidos ideais e aqueles com critério expandido foi diferente estatisticamente (cerca de 8,2 ml/min menor em pacientes com critério expandido, p = 0,022), mas os escores histopatológicos dos pacientes com critério padrão e expandido não foram estratificados por conta do tamanho limitado da amostra. A TFG também apresentou diferença quando a variável idade (acima ou abaixo de 60 anos) foi comparada isoladamente. Por outro lado, na análise multivariada, idade acima de 60 anos não foi considerada como preditor isolado para TFG. Yilmez et al.17 avaliaram protocolos de biópsias feitas dois anos após transplante e relataram que alterações histopatológicas crônicas, nesta fase, estavam associadas com idade, tanto do doador como do receptor. De acordo com Nankivell,18 idade avançada do doador é um forte preditor para falha do enxerto.
A presença de rejeição aguda na análise multivariada foi a variável mais importante associada a piora da TFG média na população total estudada.
A correlação entre TFG e escore histopatológico final foi diferente entre os grupos (0-3) e (4-6). A média do primeiro foi mais favorável (49,7 x 40,7 ml/min), mostrando que os pacientes com escores de cronicidade leves tiveram resultado melhor do que os pacientes com escores moderados. Contra toda a lógica, o grupo (7-12) teve uma TFG média semelhante ao grupo (4-6), 44,3 ml/min, sem diferença estatística em relação aos demais. Nossa principal hipótese para este resultado é o tamanho reduzido de casos nesse grupo (apenas três pacientes), uma vez que os rins com este escore não devem ser utilizados para transplante segundo os critérios da Remuzzi. Como descrito acima, dois dos nossos três pacientes nesse grupo apresentaram função próxima ao nível esperado em receptores de transplantes renais. Lehtonen et al.19 relataram que o escore de cronicidade em biópsias renais pré-implante está relacionado com função do enxerto e desenvolvimento de rejeição crônica em um ano. Snoeijs et al.,8 em um estudo com 199 doadores com idade acima de 60 anos, mostraram que lesão crônica pré-existente foi mais importante do que outros parâmetros clínicos para o desfecho do transplante. A análise multivariada relatada por Arias et al.20 demonstrou alterações crônicas em todos os compartimentos associadas a pior sobrevida do enxerto. Por outro lado, Lubuska et al.21 não encontraram influência negativa das alterações histopatológicas sobre a função do enxerto a longo prazo.
Em nosso estudo, glomeruloesclerose apresentou correlação estatisticamente significativa com função renal um ano após o transplante, com uma diferença de 13,00 ml/min na TFG entre os pacientes com escores de 0 e 1. Na análise multivariada, a presença de glomeruloesclerose foi isoladamente um preditor para redução na TFG um ano após o transplante na população estudada. Para Escofet et al.,22 pacientes com mais de 20% de glomeruloesclerose tiveram pior função renal em um ano. Bajwa et al.,23 analisando 12.129 biópsias pré-implante, observaram que a presença de mais de 5% de glomeruloesclerose estava associada a desfecho mais desfavorável. Por outro lado, Cockfield et al.,24 em estudo com 730 biópsias, não mostraram associação independente entre glomeruloesclerose e prognóstico. Navarro et al.25 mostraram que glomeruloesclerose superior a 10% não foi preditor independente para falência do enxerto.
Nosso trabalho mostrou que fibrose intersticial e atrofia tubular levaram a maior TFG média no grupo 0 em comparação aos outros. Contudo, diferença estatisticamente significativa foi observada apenas entre os grupos 0 e 1, possivelmente devido ao pequeno número de indivíduos no grupo 2. Quando agrupados em duas variáveis (presente ou ausente), pacientes sem fibrose ou atrofia tubular apresentaram melhor função renal em um ano. Este achado não foi confirmado no modelo multivariado. Sulikowski et al.26 observaram que pacientes com melhor função inicial do enxerto não tinham fibrose intersticial.
O número de biópsias avaliadas no item arteriosclerose em nosso estudo é diferente dos outros (93,0 x 97,0), uma vez que quatro biópsias não incluíram artérias e foram removidas da análise. Quatro doadores tinham arteriosclerose acentuada, atingindo o escore máximo (3). Na ausência de arteriosclerose leve ou moderada, houve associação significativa inversamente proporcional com função renal. Isto não ocorreu no grupo com alterações acentuadas, possivelmente por conta do limitado porte de nossa amostra nesta categoria. Na análise multivariada de doadores falecidos, a presença de arteriosclerose em qualquer nível foi a variável mais importante na associação com TFG, também apresentando correlação significativa quando doadores vivos foram incluídos no estudo. A análise multivariada relatada por Kayler et al.12 constatou que arteriosclerose moderada foi um preditor significativo para desfecho do transplante em doadores com e sem critérios expandidos. Cockfield et al.24 descreveram associação entre espessamento fibroso da íntima e redução da função renal em seis meses. Em outro estudo não foi encontrada correlação entre arteriosclerose e função renal.
Em resumo, nosso estudo demonstra que receptores de rins de doadores vivos evoluem melhor, possivelmente devido a outras associações tais como menor escore de cronicidade, menor taxa de diálise pós-transplante e tendência dos doadores de serem mais jovens. Alterações renais crônicas pré-transplante não influenciaram a sobrevida do enxerto após um ano, mas a presença de arteriosclerose de qualquer grau foi fator de pior prognóstico para função do enxerto um ano após o transplante, além de ter sido a variável de maior impacto entre doadores falecidos. Nossa análise não mostrou associação independente com idade do doador. Presença de rejeição aguda foi o único preditor de desfecho menos favorável do enxerto. O presente estudo apresenta algumas limitações. Não podemos inferir pontos de corte histopatológicos devido ao porte limitado da amostra. Um número muito pequeno de biópsias apresentou escores mais elevados de cronicidade, o que pode interferir nos testes estatísticos. Além disso, a heterogeneidade da amostra do grupo de doadores pode interferir na análise multivariada. Vários escores de cronicidade histopatológicos foram propostos. Contudo, pontos de corte precisos para a avaliação de viabilidade renal ainda não foram claramente determinados, o que faz com que a decisão de implantar o enxerto seja tomada individualmente, levando em conta os resultados do exame histopatológico e os outros parâmetros clínicos de doadores e receptores. Os critérios histopatológicos de Remuzzi determinam pontos de corte para a análise de biópsias pré-implante e podem sugerir o possível manejo para o transplante de rins de doadores falecidos. Ainda assim, a biópsia pré-implante tem um papel prognóstico importante e deve ser realizada também em doadores vivos selecionados, já que desfecho do enxerto nesses doadores pode sofrer interferência de alterações crônicas pré-existentes.