versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2019 Epub 23-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190020
Os sarcomas indiferenciados e não classificados são um grupo heterogêneo de sarcomas, que incluem os tumores da família do sarcoma de Ewing (TFSE) e alguns tumores cujas demais linhagens de diferenciação foram excluídas(1). Embora eles apresentem uma sobreposição de características morfológicas ou imuno-histoquímicas, possuem algumas translocações específicas de cromossomos observadas por análise molecular(2-5). Essas características genéticas e morfológicas provavelmente representam entidades clínicas distintas, mas a caracterização exata de cada entidade permanece incerta(1).
Os TFSE englobam sarcomas agressivos em ossos e tecidos moles, que geralmente apresentam intensa imunoexpressão de CD99 e translocações envolvendo os genes EWSR1 e FLI-1(5). Na mama, a ocorrência de sarcomas não é usual, representando menos de 1% das neoplasias malignas de mama e menos de 5% de todos os sarcomas(6). No entanto, esse é um grupo heterogêneo de tumores, com diferentes padrões de comportamento, evolução e resposta terapêutica(5-7). Nesse contexto, os avanços na avaliação imuno-histoquímica e molecular podem ajudar na diferenciação de tumores tipo Ewing de outros sarcomas indiferenciados e não classificados. Entretanto, alguns tumores com a morfologia do sarcoma de Ewing (SE) permanecem com histogênese indiferenciada devido a resultados moleculares negativos ou não informativos, o que pode gerar diferenças no tratamento e no seguimento clínico(5,6,8).
O objetivo do presente estudo é relatar o caso de um sarcoma indiferenciado e não classificado com morfologia de SE, em topografia de mama e de parede torácica, cuja avaliação molecular se mostrou negativa para a translocação t(11;22)(q24;q12).
Uma mulher de 25 anos se apresentou ao serviço em dezembro de 2016 devido a um nódulo volumoso na mama direita, que vinha apresentando crescimento progressivo havia seis meses. A paciente referiu menarca aos 14 anos e um parto cesáreo, negando outras cirurgias, presença de comorbidades e histórico familiar de neoplasia de mama. O exame físico indicou a presença de uma lesão volumosa ocupando praticamente todo o parênquima da mama direita, móvel, de aparência endurecida e superfície regular medindo 18 cm em seu maior diâmetro. A pele na mama direita estava distendida, com uma difusa hiperemia, mas sem aspecto de infiltração neoplásica. À palpação axilar, identificaram-se linfonodos bilaterais móveis e macios, não coalescentes, indolores, medindo aproximadamente 0,5 cm em seus maiores diâmetros (Figura 1).
Figura 1 Exame físico, inspeção - A) fotografia frontal da paciente, com observação de massa volumosa ocupando praticamente todo parênquima de mama direita, associado à hiperemia cutânea e visualização da rede vascular superficial; B) fotografia em perfil, com observação de abaulamento em polo superior de mama direita; C) fotografia frontal, no segundo dia de pós-operatório
A paciente compareceu à primeira consulta portando exames de imagem solicitados e realizados em outros Serviços. A mamografia mostrou parênquima glandular heterogeneamente denso, com uma imagem volumosa nodular de densidade média, circunscrita e bem definida, localizada aparentemente em topografia retropeitoral à direita. O laudo do mencionado exame descreveu a presença de um implante à direita, sem alterações suspeitas de neoplasia. Na ultrassonografia de mama, a lesão apresentou ecotextura heterogênea e áreas anecoicas pequenas em seu interior, com forma irregular e limites imprecisos, sem fenômenos acústicos posteriores.
A ressonância magnética (RM) da parede do tórax mostrou a presença de uma lesão heterogênea sólida e volumosa na região retropeitoral à direita, circunscrita, de 16 × 14,8 cm, em contato estreito com a parede torácica anterior (2º ao 5º espaço intercostal [EIC]). A lesão tinha pequena projeção intratorácica, mais evidente no 3º EIC, mas as margens costais não apresentaram sinais de erosão óssea. Não havia alterações no mediastino nem no parênquima pulmonar. A tomografia computadorizada (TC) indicou formação volumosa expansiva na região do seio direito, medindo 16,6 × 14,5 cm. A lesão tinha sinais de extensão para a parede torácica, com invasão dos músculos peitorais e região intercostal, sem invasão óssea clara, enquanto causando abaulamento do parênquima pulmonar adjacente. O método tomográfico mostrou ausência de linfadenopatia, efusão pleural e outras alterações pulmonares.
A paciente foi submetida à biópsia da mama direita, que revelou neoplasia fusocelular de alto grau, com necrose, atipias e áreas de mitose; e ausência de componente epitelial representado na amostra. Portanto, o quadro poderia corresponder a um sarcoma ou uma área de proliferação de um tumor phyllodes maligno. O estadiamento radiológico da paciente não identificou metástase a distância (Figura 2).
Figura 2 Exames complementares: A e B) mamografia com observação de volumosa imagem nodular localizada em aparente topografia retro peitoral à direita; C, D e E) TC de tórax com observação de formação expansiva em região mamária à direita, apresentando sinais de extensão para a parede torácica, porém sem invasão óssea aparente; F) RM de tórax observando lesão sólida heterogênea localizada em região retro peitoral à direita, medindo 16 x 14,8 cm, sem lesões aparentes em mediastino ou parênquima pulmonarTC: tomografia computadorizada; RM: ressonância magnética.
A paciente foi submetida à mastectomia em dezembro de 2016, com tentativa de ressecção da lesão com margens cirúrgicas amplas. Os músculos peitorais foram removidos, devido à infiltração tumoral. A ressecção parcial da 3º, 4º e 5º arcos costais também foi necessária, com o uso de uma tela de Marlex para a correção primária do defeito na parede torácica. A avaliação macroscópica intraoperatória não identificou extensão do tumor para a pleura ou para o pulmão. A palpação axilar à direita foi realizada e identificou aumento e endurecimento de linfonodos em nível I de Berg, que também foram removidos. Um segmento do músculo peitoral maior foi preservado, o qual foi usado para cobrir a tela de Marlex e a parede torácica. Drenos de sucção foram inseridos no tórax e no sítio da mastectomia. A paciente evoluiu sem intercorrências no pós-operatório, com resultado estético satisfatório (Figura 3).
Um fragmento medindo 18 × 18 cm e pesando 1.865 g foi enviado ao serviço de anatomia patológica. Os cortes do fragmento mostraram uma lesão nodular heterogênea friável, de cor cinza amarronzada, medindo 18 × 15 cm, tocando a margem profunda da parede torácica. Os fragmentos da margem costal não apresentaram infiltração neoplásica.
O estudo anatomopatológico do produto da mastectomia revelou a presença de neoplasia fusocelular e áreas de necrose acentuada. O tumor apresentava células fusocelulares arranjadas em feixes, por vezes com aspecto estoriforme. Em outras áreas, as células exibiam citoplasma claro e, em outras, exibiam padrão em rosetas. Também foram avaliados 15 linfonodos nos cortes em parafina, sendo todos livres de neoplasia.
A imuno-histoquímica (IHQ) da lesão revelou expressão negativa dos seguintes marcadores: actina do músculo liso (AML), HHF35, desmina, S-100, CD34, CD31, CD10 e antígeno da membrana epitelial (AME). Ainda, houve expressão positiva dos marcadores CD99, CD56 e CD57. Portanto, junto com os achados histomorfológicos, o estudo imuno-histoquímico sugere sarcoma de alto grau, sem possibilidade de definição da histogênese. Entre as hipóteses diagnósticas, a possibilidade de SE ou tumor neuroectodérmico primitivo (TNP) se destacaram, em decorrência de observação de lesão fusocelular com positividade para CD99 e CD56, associada a formações em roseta(9). O material foi enviado para um laboratório central e realizou-se a pesquisa de translocações associadas a SE/PNET, por meio de transcrição reversa e reação em cadeia da polimerase (RT-PCR). Foi realizada a pesquisa dos transcritos tipo 1 e tipo 2 da translocação t(11;22) (q24;q12), a qual ocasiona a fusão dos genes EWSR1 e FLI-1(5). O resultado da pesquisa foi negativo para a translocação, o que desfavorece SE. Entretanto, outras translocações menos frequentes podem ser encontradas nesse tipo de sarcoma, o que não exclui a possibilidade de SE e TNP (Figuras 4 e 5).
Figura 4 Imuno-histoquímica: A) expressão positiva do marcador CD99; B) expressão positiva do marcador CD56; C) expressão positiva do marcador CD57; D) expressão do marcador Ki-67 em 70% das células do tumor
Figura 5 Diagnóstico diferencial de SE/tumor neuroectodérmico primitivo. Microfotografias do caso descrito, com observação de células fusiformes exibindo padrões em roseta e células arranjadas em feixes, com aspecto estoriforme SE: sarcoma de Ewing.
O tratamento adjuvante foi iniciado em março de 2017, com quatro ciclos de doxorrubicina e ifosfamida, seguido por radioterapia em parede torácica à direita. Após 16 meses de seguimento clínico, a paciente encontrava-se assintomática e sem evidências da doença.
O tratamento adjuvante foi iniciado em março de 2017, com quatro ciclos de doxorrubicina e ifosfamida, seguido por radioterapia em parede torácica à direita. Após 16 meses de seguimento clínico, a paciente encontrava-se assintomática e sem evidências da doença.
Os sarcomas indiferenciados de alto grau são tumores de comportamento agressivo e diagnóstico desfavorável, cuja apresentação clínica geralmente envolve lesões volumosas de crescimento rápido(6,7,10). No caso descrito, a paciente relatou aumento da lesão de mama em cerca de seis meses, e tal progressão foi maior que o padrão de crescimento geralmente observado em lesões benignas de mama(11). O exame físico, apesar da presença de lesão infiltrativa de 18 cm em uma paciente de 25 anos, não mostrou sinais do envolvimento cutâneo típico de carcinomas de mama, como edema e espessamento difuso. A hiperemia cutânea, por outro lado, era decorrente da distensão causada pela lesão. Juntos, esses aspectos clínicos sugerem a hipótese de algum tumor maligno de componentes estromais, o que se confirmou pela análise anatomopatológica da lesão.
A investigação radiológica de lesões mamárias palpáveis objetiva caracterizar a extensão da doença e investigar lesões sincrônicas na mama ipsilateral e/ou contralateral(11,12). É importante destacar que a história clínica da paciente deve ser incluída na análise dos achados radiológicos, especialmente a história cirúrgica e o risco familiar de câncer(11,12). No caso descrito, o laudo da mamografia descreveu a presença de implante de silicone na mama direita, sem caracterizar lesão nodular. Entretanto, a anamnese poderia ter evitado esse equívoco, uma vez que a paciente negou qualquer cirurgia prévia na mama. A TC e a RM de tórax, em compensação, contribuíram para a avaliação pré-operatória da lesão e o planejamento cirúrgico apropriado, envolvendo cirurgiões de mama e tórax.
Os sarcomas de alto grau podem apresentar várias características ao estudo anatomopatológico, algumas das quais auxiliam na investigação da histogênese do tumor(4,5). Entretanto, devido às dificuldades diagnósticas observadas no presente caso, pedimos ao Professor Christopher D. M. Fletcher, da Harvard Medical School (Boston, Estados Unidos), para revisar o material. De acordo com sua descrição, “em algumas áreas o tumor consiste em fascículos relativamente ordenados de células fusiformes com citoplasma palidamente anfofílico e núcleos finos, distribuídos entre feixes de colágeno hialino enquanto, em outro lugar, há transição para um componente altamente celular mal diferenciado com morfologia celular principalmente redonda e mostrando atividade mitótica aumentada”. Em relação à IHQ, o professor descreveu: “as colorações não mostram evidências de uma linha específica de diferenciação. As células neoplásicas foram inteiramente negativas para proteína S-100, SOX10, GFAP, CD34, STST6, MDM2 e TLE1. A coloração para H3K27me3 foi positiva, isto é normal/retida”. Portanto, o diagnóstico de sarcoma indiferenciado de alto grau foi mantido.
Em relação ao diagnóstico diferencial de SE, foi realizada a pesquisa de produto da translocação t(11; 22) (q24;q12), a qual é observada na maioria dos casos da doença(2,13). Essa translocação ocasiona fusão dos genes EWSR1 e FLI-1, mapeados em 22q12 e 11q24, respectivamente. Não obstante, dependendo dos pontos de quebra nesses genes, podem ser gerados 18 diferentes transcritos quiméricos in frame. Destes, deve-se destacar os transcritos tipo 1 e tipo 2, originados da fusão do éxon 7 do gene EWSR1 com o éxon 6 ou o éxon 5 do gene FLI-1, respectivamente(2,13). Esses transcritos estão presentes em aproximadamente 85% dos casos de SE/PNET com t(11;22) (q24;q12) e em 60% do total de casos da doença(2,5,13). Entretanto, outras translocações menos frequentes podem ser encontradas nesse tipo de sarcoma, o que não exclui a possibilidade de SE e PNET(2-5).
Considerando o tratamento cirúrgico, a paciente do caso descrito submeteu-se a mastectomia devido à extensão do tumor nos exames físicos e de imagem. Apesar da descrição de margens comprometidas, a cirurgia foi considerada adequada pelo fato de a margem ter coincidido com a extensão da parede torácica, não sendo possível sua ampliação. De forma similar aos carcinomas, observaram-se maiores taxas de recidiva local na presença de margens cirúrgicas comprometidas, na abordagem das neoplasias malignas de origem mesenquimal(10,14). No entanto, na ocorrência de margens livres, não se observaram diferenças em sobrevida global e em sobrevida livre de doença na comparação entre cirurgias conservadoras e mastectomias(10,14). Sobre o envolvimento axilar, observou-se que a disseminação linfática para cadeias regionais é rara, dada a prevalência da disseminação hematogênica(15-17). Desta forma, a investigação do status axilar não é comumente indicada na abordagem cirúrgica dos sarcomas de mama(16). Contudo, nos casos de linfonodos axilares clinicamente comprometidos, em pacientes com sarcomas de alto grau e doença localmente avançada, a biópsia do linfonodo sentinela ou a linfadenectomia axilar pode ser realizada(17,18). No caso em questão, apesar da identificação de linfonodos suspeitos durante a avaliação intraoperatória, observou-se apenas aspecto reacional à microscopia.
No caso descrito, a indicação de quimioterapia e radioterapia adjuvante foi individualizada e justificada devido à agressão do tumor e à extensão da doença(10). Não obstante, considerando a heterogeneidade clínica dos sarcomas indiferenciados e a ausência de ensaios clínicos randomizados com essa população, permanecem as controversas acerca dos protocolos de quimioterapia comumente utilizados. Nos casos de SE confirmados, por outro lado, o protocolo vincristina-doxorrubicina-ciclofosfamida (VDC) alterado com o ifosfamida-etoposídio mostrou-se superior ao esquema isolado VDC, com sobrevida global de cinco anos de 72% e 61%, respectivamente(19). Apesar disso, esse é um protocolo de alta toxicidade, com aproximadamente 12 meses de duração, com realização da terapia local (cirurgia, radioterapia ou ambas) após 12 semanas de tratamento(19,20). Portanto, diante do diagnóstico final de sarcoma indiferenciado de alto grau, optou-se pela prescrição de quimioterapia com esquema padrão para sarcomas de partes moles, com doxorrubicina e ifosfamida(21). No caso da radioterapia, apesar da controvérsia em alguns casos de sarcoma, reduz as recorrências locais em portadores de doenças localmente avançadas, com tumores de alto grau ou cuja cirurgia revelou margens comprometidas(10).
Descrevemos um caso de sarcoma indiferenciado de alto grau, cuja histologia e imuno-histoquímica mostravam-se compatíveis com o diagnóstico diferencial de SE. Entretanto, não foram observadas translocações comumente associadas a essa patologia, por meio de avaliação molecular. O presente relato pode contribuir para a investigação diagnóstica de casos semelhantes e na orientação pré-teste da avaliação molecular.